Mas quem diabos eu achava que era?

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RYAN


Me aproximei dela lentamente, como se fosse uma bichinho arisco. Ela arregalou os olhos, que se destacavam nas olheiras, e deus alguns passos para trás, tropeçando e caindo. O sibilo que ela soltou não parecia uma tentativa de me assustar, e sim uma exclamação de susto.

– Ei... calma aí.

Ela curvou a cabeça, desconfiada. Devia achar que eu ainda atiraria nela. Mas a minha espingarda jazia inerte na minha mão direita. Se ela fosse me atacar de verdade, já teria feito isso. Simplesmente estava no chão, se arrastando para trás, nem atacando e nem fugindo.

– Não vou te machucar - eu disse. Será que ela me entendia? Ou a morte havia lhe roubado a compreensão da nossa língua?

Ela me olhou de novo. Olhos claros, de um azul acinzentado muito claro, que contrastavam com o cabelo preto e curto.

Sua boca se mexeu, como se tentasse responder. Um som rascante, um rosnado selvagem, mas estranhamente agradável, saiu de sua garganta. Sua voz desfigurada era provavelmente quase a mesma que tinha antes de morrer. Ela só disse uma palavra.

– Duvido.

Carregada de sarcasmo e incredulidade.

Como uma humana qualquer.

Sacudi a cabeça, incrédulo.

– Não...não vou te machucar... - repeti, chegando mais perto.

Ela já não se arrastava para trás; havia parado perto de um saco de lixo. Tinha uma expressão tão perdida que uma onda involuntária e inadequada de pena passou por mim. Caramba, parecia uma garotinha que havia se perdido dos pais. Como um zumbi poderia fazer isso?

– Por que... - ela arfou, com o mesmo rosnado baixo - por que não me mata logo?

"Ah, deixa eu ver. Por que em cinco anos de apocalipse zumbi eu nunca vi um como você, que fala, argumenta, é sarcástica e até bonitinha? Não sei...", murmurou meu inconsciente, irônico. Era um dos motivos, provavelmente.

– Você não é normal... - sussurrei - Para um zumbi, pelo menos.

Um novo som saiu rasgando sua garganta, abarcado por uma de suas mãos pálidas. Meu Deus. Não era verdadeira, mas era indubitavelmente a tentativa de emitir uma risada. Zumbis nunca riam. E com certeza nem tentavam.

Foi o que bastou para eu guardar de vez a espingarda. Morta ou não, cruel ou não, humana ou não, eu não ia mata-la. Fim de papo.

Quando eu escondi a espingarda no cano, ela se levantou de um salto. Ficou de frente para mim, á apenas trinta centímetros do meu cérebro provavelmente suculento. Mas tudo o que fez foi rosnar baixinho e me encarar.

– E você? - perguntei - você não vai me comer?

Ela estreitou os olhos.

– Em qual sentido?

Ah, não. Com essa eu não me segurei. Caí na risada ali mesmo, como o maluco que eu estava sendo, conversando com uma zumbi. Definitivamente uma morta-viva que tinha malícia e coragem o suficiente para formular uma frase sarcástica e dúbia era uma peça rara.

Ela arregalou novamente os olhos, surpresa e chocada com meu ataque de risos. E então, surgiu, não sei como nem de onde, um corte em seu rosto que se elevava levemente das bordas.

Um sorriso. Um sorriso torto, selvagem, sem emoção definida, mas um sorriso. Uma resposta inesperada, inexplicável e absurda para o que estava acontecendo ali.

Ela sustentou meu olhar de maneira tácita e, enfim, titubeou:

– Não. Não vou te atacar.

– Por quê?

Ela pareceu furiosa ao responder.

– Não sei... de repente, você... você me fez pensar que... talvez... faz com que eu... me sinta...

– Humana? - eu sugeri, chocado. Claro... todas aquelas reações - a fala, o sarcasmo, o sorriso, a risada - deviam ser tão incomuns para ela como eram para mim. Pareciam ser reações á mim. Mas... por quê?

Ela se aproximou, sem medo, pela primeira vez.

– Talvez...

– E talvez você nem seja tão zumbi assim.

Ela se virou, rosnando para si mesma, e foi em direção á esquina. Estava indo embora. Finalmente.

"E você não quer que ela vá embora", gemeu meu inconsciente, embasbacado. Ele estava certo... o que estava acontecendo comigo?

– Ei... não...!

Ela acelerou o passo - pra um zumbi, até que era rápida - mas se virou para me olhar uma última vez.

– Me diga seu nome, pelo menos...! - exclamei, antes que virasse a esquina. Ela olhou para um muro de tijolos, mexeu a mão direita em um deles e, em alguns segundos, sumiu de vista.

Fui até o local aonde ela se esgueirara para se "despedir". Era um muro pichado, com apenas alguns tijolinhos sem tinta. E, em um deles, numa escrita garranchosa e apressada, estava um nome.

Chloë.


Voltando à ViverOnde histórias criam vida. Descubra agora