Uma bomba que queria explodir...

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RYAN


Era um assovio.

De pássaro.

Skype...

Skype estava cantando.

Ela nunca havia assoviado. Nunca.

Dei dois passos para frente, entorpecido, a arma congelada em minhas mãos.

Skype estava empoleirada no dedo indicador de Chloë, olhando para ela, sem medo algum. Assoviava balançando a cabeça, completamente alienada do que ocorria.

Skype estava cantando como se fosse a coisa mais natural do mundo. E uma zumbi, mortificada, me encarava naquele momento, olhando para a arma em minhas mãos com uma expressão estranha.

Os olhos de Chloë se arregalaram, mas não de medo. Demorei para descobrir aquela emoção que fervia em seu rosto.

Mágoa. Desapontamento.

Aquilo foi o bastante para eu definitivamente deixar a arma cair no chão.

Skype subiu pelo moletom puído de Chloë e se aninhou em seu pescoço, como um gatinho.

A voz de Chloë saiu estrangulada, mas nem por isso pareceu menos humana.

– Você vai me matar?

Um choramingo de criança. Magoado como nenhum adulto conseguiria ficar.

Balancei a cabeça, ainda atordoado. Chloë não havia feito nada com Skype. Havia ficado escondida, como prometera. Simplesmente se alimentara e ficara com minha calopsita, admirando-a. Como uma garota humana qualquer.

Se os zumbis que o Comitê descrevera eram verdadeiros, não tinham nada a ver com Chloë.

– Não. Não, eu não vou - consegui murmurar após meu torpor diminuir.

Eu quase a havia matado á toa, por acreditar no Comitê. Minhas mãos tremiam.

Se fosse qualquer outro zumbi, eu não estaria sentindo aquele remorso inadequado pela simples tentativa de matar .. mesmo que Chloë fosse mais humana que outros zumbis, a consciência de que eu quase havia atirado nela me aterrorizava, como se eu tivesse tentado assassinar alguém da minha família.

"Meu Deus, Ryan", murmurou meu inconsciente. "Você gosta de verdade dela. Não só por ser humana. Você gosta da humana que você vê nela..."

Ah, não.

Santa Agonia...

Com cento e três garotas humanas sobreviventes com quem isso poderia ter acontecido...

Engoli em seco ao me dar conta do que estava acontecendo...

Eu estava me apaixonando.

Por uma zumbi.

Aonde o mundo ia parar? O meu já congelara.

A simples ideia era tão chocante, tão absurda, que me fez rir.

Chloë recuou ao ouvir minha risada insana. Sua expressão magoada agora estava confusa e levemente ofendida. Ela puxou Skype de seu moletom e a colocou de volta no poleiro com uma gentileza desnecessária.

– Você veio aqui para me matar - Chloë rosnou baixinho - não vai.... terminar o serviço?

Eu não ia mentir para ela. Resolvi abrir o jogo.

– Não. Eu vim fazer isso, mas não vou.

– Por quê? - de novo, aquela pergunta curiosa, só que com um tom chateado na interrogação.

Isso eu não ia falar. Não agora. Aliás, talvez nunca.

– Não sei - sussurrei enfim, mentindo descaradamente nestas duas únicas palavras..

– Então descubra... como vou saber... se qualquer hora você... não vai resolver atirar em mim?

O tom de sua voz era tão petulante, tão desbocado, que me surpreendeu.

– Tenho certeza que não vou.

Ela estremeceu, mas não foi pelo que eu disse. Chloë virou o rosto, irritada. Pelos seus dentes cerrados, ela resmungou.

– De novo não...

– O quê?

Ela se aproximou de mim. Tipo, muito perto mesmo.

Mas desta vez não havia nenhum traço feroz em seu rosto. Aliás, não havia traço algum.

Ela simplesmente puxou minha mão e a pousou em seu peito.

Eu já ia perguntar o que diabos ela estava fazendo, mas uma palpitação estranha atingiu a mão que estava nela. Parou. E, segundos depois, voltou, latejando mais três vezes antes de parar novamente.

Caramba...

Era o coração dela. Estava voltando a bater.

Como??

– D-desde quando? - gaguejei, chocado.

Chloë fez uma careta.

– Desde quando... a gente se encontrou no beco.

Quando ela contorceu o rosto, pude notar algo que não havia percebido antes. O olho que faltava uma pálpebra...

Ela estava ali.

– Chloë! - exclamei, puxando-a em direção ao espelho rachado no fundo da loja.

– O quê? - murmurou ela, assustada.

– Olhe no espelho... seus olhos!

Ela se encarou no espelho, confusa. Quando tocou o olho aonde devia estar faltando a membrana, deu um gemido baixinho que, apesar de tudo, era de arrepiar a nuca.

– Está aqui... - arfou ela, chocada.

– É como... - murmurei - se você estivesse... se curando, de verdade...

– Ahh... - Chloë me olhou, e vi uma emoção forte atravessar seu rosto pálido.

Era a coisa mais próxima que um rosto de zumbi podia exibir de uma expressão feliz. Verdadeiramente feliz. Era contagiante... não pude deixar de sorrir também.

Mas foi aí que me surpreendi de novo.

Chloë se jogou em meus braços, num desajeitado abraço de zumbi. Como se zumbis estivessem acostumados á abraçar...

A outra loucura cometida naquele momento foi minha.

O que me levou á retribuir o abraço? O que me fez segurar sua cabeça com uma das mão e sua cintura com a outra? Por que, de repente, ela me pareceu tão magra e indefesa? Por que, quando ela ergueu a cabeça, com os olhos prateados me fuzilando, eu queria aquecer seu rosto com o meu?

Qualquer que fosse a resposta àquelas perguntas, eu não fiquei pensando muito nelas. Simplesmente inclinei a cabeça e a beijei.

Sua boca era macia, apesar de levemente ressecada. Ela pareceu congelar por um momento, mas, para minha surpresa, retribuiu de um jeito completamente suave. Seus braços se engancharam no meu pescoço e, quando a puxei um pouco para cima, percebi que seu corpo era curiosamente leve, como a de uma pré-adolescente. Seus lábios se moldavam tão perfeitamente aos meus que fiquei um tanto chocado. Outra vez, o palpitar do outrora morto coração em seu peito apareceu, mais forte do que nunca... uma bomba contínua que parecia desesperada para explodir.

Aquele momento fantástico só foi interrompido por que Gail socou a porta da loja.


Voltando à ViverOnde histórias criam vida. Descubra agora