É agora que a bodega ficou séria!

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RYAN


Fiquei tão chocado que nem ouvi o sonoro palavrão que Gail deixou escapar. Faltou pouco para a espingarda cair de minhas mãos.

– Pai? - arfei, olhando de Chloë para o zumbi que havíamos capturado.

Exceto pelo corpo mais troncudo e um estado bem mais lastimável - faltavam dois dentes, três dedos e havia um buraco no tórax bem maior que o de Chloë - a semelhança era evidente. Tão evidente que eu me perguntei como não reparara naquilo antes. O zumbi tinha os mesmos cabelos pretos, os mesmos trejeitos e os mesmos olhos acinzentados de Chloë.

Santo Apocalipse. Era realmente o pai dela.

Mas o mais fascinante foi Chloë te-lo reconhecido. Ter se lembrado dele de verdade.

Para nossa decepção, aquilo não parecia ser compartilhado pelo zumbi que encarava minha arma. Ele não nos atacara nem recuara - bom sinal - mas também não esboçara mais nenhuma reação.

– Papai..? - murmurou Chloë outra vez. Uma angústia aflitiva cortou seu rosto - sou eu... Chloë...

Ela se aproximou. Eu não devia estranhar... ela não estaria em perigo perto de outro zumbi, afinal, ainda era uma. Zumbis só atacavam humanos. E aquele cara ali era o pai dela...

Mas algo me dizia que Chloë devia recuar.

– Chloë volte aqui - pedi, ainda erguendo a arma.

Chloë olhou para mim; seu rosto tinha uma leve indignação.

– É o meu pai.

– Eu sei, Chloë - eu não estava gostando do modo que o zumbi acompanhava os movimentos dela - mas se afaste um pouco... nós ainda não...

– Papai... - ela ergueu o braço, tocando o peito do zumbi.

Ele estacou, parecendo assustado. Até ali tudo parecia correr bem.

Foi aí que ele a atacou.

Gail saltou para frente, com sua pistola erguida para o zumbi, que se afastou rapidamente. Chloë estava ajoelhada no chão, segurando o braço. Joguei minha espingarda na pilha de almofadas.

– Chloë! - gritei, correndo para levanta-la. Quando ela se ergueu, arfei ao ver seu braço. Um ferimento em forma de mordida ficara demarcado ali, brotando alguns filetes de sangue. Céus, Chloë agora sangrava também. Ela contraiu o rosto quando fiz menção de mexer levemente em seu cotovelo.

Chloë olhou para o zumbi, com os olhos marejados de vermelho e uma expressão de mágoa angustiante.

– Papai...

– Ele não se lembrou de você, Chloë... - segurei-a pelos braços, encostando minha testa em seu rosto - ele não se lembra...

– Não - ela sacudiu a cabeça, soluçando. Tentava se desvencilhar de mim tão pateticamente que era perceptível sua necessidade de consolo, embora ainda tentasse se aproximar outra vez do zumbi.

– Não, Chloë... tudo bem, calma - fiquei completamente aflito quando ela começou á chorar de novo, aninhada em meu peito.

O ferimento dela não era fundo, mas ainda sangrava. Rasguei uma tira da minha camiseta e a enrolei ali. Chloë nem se mexeu enquanto eu improvisava um curativo.

Gail ainda estava com a arma apontada para o zumbi. Porém, algo chamou nossa atenção.

Ele piscou exageradamente ao erguer a cabeça para frente, olhando para o abraço entre mim e Chloë. A confusão retorceu seu rosto sem feições, e então uma nova reação surgiu ali, enquanto ele inclinava a cabeça para o lado, parecendo intrigado.

Para nossa surpresa, ele ajoelhou-se e sentou no chão, como um cachorro adestrado.

Gail tremeu, mas continuou apontando a arma.

Chloë olhou de esguelha para seu pai,

– Chloë - murmurei, olhando para o zumbi - qual nome dele? Qual o nome do seu pai?

Chloë franziu a testa, tentando lembrar.

– Carl...

– Ei! - eu disse para o zumbi, que pareceu sobressaltado - Carl! Carl!

Nas duas vezes que eu disse o nome, o zumbi arregalou os olhos e franziu o rosto, como se algo o incomodasse.

– Carl! - Gail disse. Ele se virou para ela.

– Ele reconhece o próprio nome, pelo menos - murmurei para Chloë.

– Você... - Chloë ainda chorava - acha... que ele vai se... lembrar?

– Talvez.

– E talvez não - disse Gail categoricamente.

O zumbi não parecia que iria atacar novamente, mas não podíamos continuar com essa dúvida. Caso nós saíssemos, Carl poderia tentar atacar Chloë outra vez. E dessa vez, não queria nem pensar no que ele poderia fazer com ela.

Pensando nisso enquanto nós adaptávamos a Clínica, eu e Gail havíamos trazido correntes adaptadas com algemas; as correntes eram do antigo playground da área de lazer do shopping, e as algemas eram do acervo da sala dos seguranças; Gail usara um soldador para atrelar as algemas nas correntes, e, por fim, para solda-las na parede da loja.

Soltei Chloë e puxei uma das correntes que estavam mais próximas.

Gail conseguiu distrair Carl tempo o suficiente com a arma para que eu algemasse seu tornozelo. Quando o zumbi deu-se conta, já estava preso, e, mesmo sem avançar ou recuar, sibilava ameaçador para nós três.

Chloë estava com as mãos no rosto, parecendo quase horrorizada. Me olhava com uma expressão completamente desolada.

– Desculpe, Chloë - coloquei minha mão em seu rosto, numa tentativa de acariciar sua bochecha - me dói a alma ter que prende-lo... mas... - Gail se aproximou, também um tanto condoída - não posso correr o risco dele te atacar outra vez. Ou atacar Skype. Não dá...

Chloë assentiu com a cabeça, soluçando.

– Eu... sei, Ryan... só achei... que ele se lembraria...

– Nós vamos tentar. Prometo, Chloë... nós vamos fazer de tudo para você e seu pai ficarem bem e voltarem ao normal outra vez.

Ela me abraçou, fungando. Pobre Chloë... nem mesmo um zumbi merecia passar pelo que ela estava sofrendo.

Beijei sua testa, acariciando seus cabelos. Gail suspirou atrás de mim, antes de se virar para o zumbi que nos observava.

Algo em seu olhar parecia gritar que ele, Carl, o humano, ainda estava ali, lutando para sair, e implorava de certa forma para que não desistíssemos do humano preso dentro dele. E nem de todos os outros.

"Não vou", prometi a mim mesmo "Não vou desistir".

Algo no aperto do abraço de Chloë me fez pensar em como a esperança em geral não era inteira. Estava dentro de cada um de nós.


Voltando à ViverOnde histórias criam vida. Descubra agora