RYAN
Voltei pra "casa" com uma dor de cabeça estupidamente chata.
A "casa", na verdade, era um shopping abandonado, que os sobreviventes do apocalipse usavam como lar. Tínhamos vedado todos os buracos que haviam com madeiras, e cada família - ou o que sobrara dela - morava em uma loja, com o que haviam conseguido regatar de comida, móveis ou cobertas. Tomávamos banho nas pias do banheiro, ou na fonte que de algum modo ainda jorrava água - mas na fonte, era garantia de algum engraçadinho te ver pelado e começar á dar risadas até o dia seguinte.
Eu morava no que um dia foi uma loja de vídeo-games. Sozinho, por que minha família ficara no Arizona, presa depois da fronteira, e até então nunca mais tinha tido notícias dela.
Minha única companhia era Skype, minha calopsita muda, que literalmente não dava um pio. Ou de repente era por que sua família no pet shop tinha sido degustada bem na frente dela.
Lembrei do dia que a resgatei da loja que ruía. Era o único animal vivo, uma filhotinha ainda pequena e cinza, que estava escondida numa gaiola amassada, tremendo de medo. Levei-a para casa e, desde então, virou minha melhor amiga. Quando eu estava em casa, ela só desgrudava de mim quando eu saía para caçar ou procurar comida. O nome me veio á mente enquanto eu pensava como era um saco não ter comunicação com o resto do mundo.
Pensando nisso, procurei o que sobrara dos biscoitos de cachorro da última incursão e comecei a mastigar um deles. Depois que você passa pela fome, um biscoito de carne começa á ser delicioso. Imaginava que os farelos na minha boca eram fiapos de carne cozida. Ah, assim dava para engolir tranquilamente. Quebrei outro biscoito e ofereci um dos pedaços para Skype, que começou á bica-lo alegremente.
Encostei no balcão, sonolento, observando o imenso buraco que tinha nos fundos da loja. Eu já havia me xingado várias vezes, tentando tomar coragem para tampar aquilo, mas a preguiça sempre falava mais alto. Qualquer dia, um zumbi iria chutar aquela fina camada de madeira até cair e ia me pegar dormindo.
Skype virou a cabeça penosa para mim, como se lesse meus pensamentos. Me divertia imaginando o que ela diria. "Ah, não fique assim, Ryan. Eu vou bicar qualquer um que entrar aí e te arranhar até você acordar e atirar no infeliz!".
Comecei a rir sozinho. Devia estar só á alguns passos de ficar louco.
– Sabe, Skype... e se de repente eles pudessem... sabe... começar á viver outra vez?
"Os zumbis?? Você pirou, garoto?", gritou a Skype da minha mente.
– Não todos... mas um... ou uma. - murmurei, pensando na zumbi bonita e estranha que eu havia conhecido. Ela não era parecida com nada que eu já havia visto... vivo ou não vivo.
A minha Skype mental arregalou os olhos.
"Ai. Meu. Deus. Ryan Connor, você tá... gostando. De. Uma. Zumbi. VOCÊ PIROU."
– De repente pirei mesmo.
"Pronto. Quando vai traze-la para apresenta-la ao Comitê?", indagou meu inconsciente, dando um "chega pra lá" na minha Skype mental, que saiu voando, indignada, e se empoleirou no canto do meu cérebro.
O Comitê. O bando de velhos babões que decidiam tudo o que acontecia dos portões do shopping para fora. Eles iam recebe-la com uma belíssima bala de chumbo no meio da testa. Bala essa que já devia ter enfiado eu mesmo nela.
"Mas você não enfiou. Você a achou fascinante. Diferente. E, não negue, gostou um bocado dela", murmurou meu inconsciente, falando uma coisa realmente inteligente... e chata.
– Ah, não interessa! - falei para minha cabeça. Conversar sozinho nunca foi sinal de coisa boa - eu não vou vê-la. Nunca mais! De repente algum outro grupo já matou ela. Ela é só mais um zumbi!
Uma zumbi inteligente, com sentimentos... quase viva. Mas ainda era uma zumbi.
"Pare de se torturar, garoto" piou Skype do seu poleiro no canto da minha mente. "Durma um pouco. Vai lhe fazer bem, e você esquece esse bicho".
– Boa ideia... - murmurei, bocejando. Me arrumei no ninho de cobertores no canto da loja e caí no sono. Minha Skype mental piou aliviada, colocou a cabeça embaixo das asas e adormeceu também.
Mas naquela noite, tive um pesadelo.
Eu estava numa praça, sentado em um dos bancos. Era familiar... mas não me lembrava onde era. Havia uma garota sentada na grama adiante. Usava um uniforme de camiseta cinza e uma calça de moletom preta. Ela ria e brincava com um filhote de gato que pulava em suas mãos. Quando ela se virou, eu exclamei.
Era ela. Chloë.
Mas estava viva. Saudável. Tinha cabelos castanhos bem claros, olhos azuis - só azuis -, sua pele era branca, de uma forma natural, e era tão ou mais linda do que na forma zumbi. E sorria... um verdadeiro sorriso, claro, radiante e feliz.
Quando ela se levantou, porém, ouvi um tiro de espingarda. O sonho ficou nítido... e virou um completo pesadelo. Chloë estava sangrando. Sangrando muito... e o sangue manchava sua roupa, suas pernas e encharcava o chão. Seus olhos se fecharam e ela caiu numa poça vermelha.
Me levantei para ajudar, mas era tarde. Quando a olhei, estava cinza... o buraco causado pela bala se expandiu até seu tórax e seu coração parou.
Foi quando ela abriu os olhos e me atacou.
Acordei gritando.
Ninguém veio correndo. Era comum termos pesadelos com zumbis... então, ninguém se importava mais com gritos de horror. Apenas gritos de alerta, conscientes.
Skype - a verdadeira, não a imaginária - pulou assustada de seu poleiro, e continuou tremendo.
Abri os olhos, atordoado, na direção do buraco no fundo da minha casa. E o meu pesadelo interrompido recomeçou.
Chloë estava em pé.
Parada. Ali dentro da loja.
Havia passado pela maldita cratera em minha casa, e agora estava ali, á dois metros no máximo, me olhando com uma raiva e confusão arrebatadoras.

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Voltando à Viver
General FictionSinopse: Qual é o limite entre a bestialidade e a humanidade? "Eu podia ter me livrado dela. Podia ter dado um tiro na testa dela e meus problemas nem teriam começado. Se eu não fosse tão burro...(...) Se eu não tivesse me apaixonado... (...)" Num m...