Diário dos mortos-vivos - parte 3

1K 110 15
                                    


RYAN


Um mês depois, me peguei olhando para nosso ridículo mas útil relatório de "pacientes", que começou a ser redigido desde que Carl se lembrara de Chloë. A partir daquele dia, não prendemos mais Carl ás correntes. Como dava para ver no relatório, foi o início de uma melhora que só aumentava a cada dia.

DIA 1

Primeira melhora de Carl. Ele se lembrou da filha e a abraçou. Seus ferimentos continuam do mesmo jeito.

Quinta melhora de Chloë: ela demonstrou tolerância a comida humana: foi introduzida para ela uma dieta metade necrófaga, metade normal. Ela agora dorme toda noite, mas nunca mais sonhou desde a primeira vez.

DIA 2

Carl começou a falar de modo mais articulado, mas continua tão vivo quanto a bilheteria do filme Manuelita. Desde sua expressão de afeto no dia anterior, não esboçou mais nenhuma reação. Continua comendo os corpos estocados e não dorme nem a pau.

O ferimento toráxico de Chloë se fechou, mas o ferimento no braço ainda se mantém aberto.

DIA 4

Gail trouxe mais um zumbi para a Clínica: uma garota e cerca de dezenove anos, loira e magra, que apelidamos de Julia. Julia não se lembra de seu nome, mas já tem avanços significativos para um zumbi: chegou na Clínica com um vocabulário bem articulado como o de Chloë, o que leva a concluir que não é a primeira vez que tem contatos "civilizados" com humanos ou que talvez tenha tentado se desenvolver por conta própria. Há um ferimento grande em forma de X na perna esquerda. Julia ainda age de modo arisco e desconfiado, mas não nos atacou... ainda.

Chloë passou seu primeiro dia sem comer nada dos corpos; ingeriu apenas dois pasteizinhos crus de frango e bebeu água.

Carl me olhou de um jeito quando cheguei perto de Chloë que eu só posso descrever como um olhar do tipo "sai de perto da minha filha". Para meu alívio e surpresa, ele dormiu pela primeira vez desde que deu entrada.

DIA 7

Carl chamou Chloë de "pardal" - segundo Chloë, era como ele a chamava quando ela era criança. Chloë só faltou ter um piripaque e abraçou o pai.

O ferimento no braço de Chloë começou a fechar Ainda está muito pálida, como uma folha de papel, mas começou a corar - ou pelo menos eu acho, já que ela pareceu menos branca quando disse que ela tinha pernas bonitas.

O buraco na mandíbula de Carl parece menor. Mau sinal. Vai que ele resolve me morder quando se curar... esse cara tem um problema muito sério com ciúmes da filha. Isso não vai sarar. Nunca. Só enquanto ele ainda está dormindo, talvez.

Julia surrupiou uma balinha do pacote de Gail e comeu com papel e tudo. Chloë deu risada, e Julia surpreendentemente riu também - apesar do riso ainda parecer um rosnado. Carl deu um sorriso fraco em resposta a cena, o que é uma surpresa - pelo menos para mim, Achei que esse mala não tinha senso de humor.

Voltando a Julia... ela parece um tantinho menos cinza, e seu buraco na perna está diminuindo gradativamente. Ela anda dando uns surpreendentes cochilos durante o dia, mas ainda não dormiu durante um tempo realmente longo.

DIA 8

Mais um zumbi deu entrada... uma menininha de oito anos, apelidada por Gail de Pim, que é tão zumbi quanto os que o Comitê sempre descreve. Não tem nenhuma linguagem além dos rosnados, e tivemos que acorrenta-la, pois quase arrancou o pescoço de Julia enquanto tentávamos passa-la pela claraboia. Apesar de tudo, não tem nenhum ferimento de morta-viva como o de Julia.

Segundo Gail, a convivência social entre os zumbis na Clínica provavelmente está aumentando em muito a evolução da cura e humanização deles. Carl já fala de modo articulado como quando Chloë chegou a loja no shopping. Seus ferimentos diminuíram em muito de tamanho. O grandalhão agora dorme toda noite.

Os ferimentos de Chloë desapareceram completamente, só restando uma cicatriz enrugada no braço, de quando Carl a mordeu. Ela anda revezando os dias de alimentação: em um dia, divide a dieta entre necrófaga e humana, e no dia seguinte está tentando se alimentar apenas com comida humana - o que parece estar dando certo.

Julia reagiu mal a bala - ou à embalagem desta - já que vomitou em todo o estofamento do sofá da Clínica, tendo que repor tudo com uns dois rins. Agora Carl, Gail e Chloë tem que assistir à segunda temporada de Lost em pé, enquanto a cândida no sofá não faz efeito.

Bocejei enquanto lia o último registro. Desde então, haviam se passado quinze dias, e eu tinha boiado tanto com a evolução de Chloë que esquecera de atualiza-lo. Comecei a rabiscar o que ocorrera durante as últimas duas semanas no livrinho surrado.

Julia estava equiparada à Chloë quanto à linguagem e a cura dos ferimentos, mas, desde o episódio da bala, talvez por ter ficado traumatizada, ela só estava comendo do estoque outra vez; Chloë estava a mesma coisinha linda e morta de sempre; Carl ainda gemia e rosnava muito, mas já começara a se comunicar de um jeito aceitável no grupo, e Pim surpreendentemente havia começado a balbuciar algumas palavras compreensíveis, além de ter começado a brincar com uma almofada que, segundo Gail, chamava de "agulu".

– Ué, ela só geme isso quando abraça a almofada - brincou Gail, rindo, quando eu indaguei que porcaria era aquela com o olhar.

Terminei de escrever, morrendo de sono. Em pouco mais de cinco meses, nós havíamos recuperado um tantinho de humanidade de quatro zumbis. Mas eu não podia deixar de me perguntar algumas coisas... quanto tempo levaria até que Chloë e os outros voltassem a ser humanos? E para tratar tantos outros zumbis lá fora que ainda não haviam ido para a Clínica, fazendo isso embaixo do nariz do Comitê?

Senti uma mão fria pousar em meu ombro. Virei-me para dar de cara com a expressão curiosa de Chloë.

– O que... é isso? - ela ergueu os olhos prateados para o caderno.

– Hum... - sorri - é tipo um prontuário dos pacientes.

Ela deu uma risadinha rouca quando terminei de falar.

– Você fala como se... ser zumbi... fosse uma doença...- Chloë pausou em lugares bem estranhos enquanto falava.

Fiquei um tanto envergonhado quando analisei sua frase. Será que ela havia ficado ofendida?

– E não é? - perguntei, tímido - dá para curar... não e definitivo.

Chloë se abraçou, e seu olhar vagou como se estivesse insegura. Resisti ao ímpeto bobo de me levantar e abraça-la.

– Eu nunca... agradeci por você estar... fazendo isso - ela olhou para mim.

– Tentando ajudar vocês? - funguei, balançando a cabeça - se ainda resta um pouco de humanidade nos zumbis lá fora, vale a pena faze-la brotar. Devemos fazer o que é bom para o bem maior, não acha? Não sente falta do mundo como era? - olhei para baixo, pensando em minha família do outro lado do país - bom, eu sinto.

– Eu também sinto - ela gemeu, parecendo aflita.

– Chloë, está tudo bem? - estranhei a insegurança dela. O que Chloë estava sentindo? Queria dizer alguma coisa?

Ela não me respondeu. Para minha surpresa, sentou-se em meu colo e abarcou meu rosto com as mãos frias. Olhar em seus olhos mortos, prateados e belos era como cair no mais fundo poço de águas cristalinas.

Meus braços já haviam se afivelado em sua cintura entes mesmo que ela me beijasse.

Pude perceber, no meio daquele beijo maravilhoso, o quanto seus lábios haviam ficado mais tenros, o quanto sua língua antes gélida havia esquentado, o quanto seu corpo magro ganhara mais peso e maciez. Pude quase ouvir as batidas caquéticas de seu coração maltratado aumentarem em vigor em comparação à última vez.

E pude perceber o quanto eu faria qualquer coisa por aquela zumbi que devorava meu coração de um modo deliciosamente cruel, mais cruel do que se o devorasse fisicamente.

Sim, eu faria qualquer coisa por minha zumbi. Por que, no fim, das contas, agora sua morte era minha vida. E, quem sabe, sua humanidade também seria.


Voltando à ViverOnde histórias criam vida. Descubra agora