O novo cafofo dos zumbis

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RYAN


Depois da malfadada "reunião" entre Chloë e Carl, eu e Gail decidimos alguns pontos simples para nosso cotidiano dividido entre a Clínica, as incursões e nossas casas.

Duas vezes ao dia, íamos até a Clínica para verificar se tudo estava bem com Chloë e seu pai. Nas duas visitas, usávamos o "estoque" de corpos na geladeira para alimenta-los, reabastecendo quando era necessário - Gail se encarregou de procurar corpos durante as incursões.

Naturalmente, para não levantar suspeitas, ficávamos a maior parte do tempo em casa e ainda íamos uma vez por semana nas caçadas. Porém, Gail e eu só andávamos a esmo ou, quando encontrávamos zumbis, não atirávamos em nenhum.

Nós decidimos que, enquanto Carl não demonstrasse mais sinais de que estava se curando, por precaução, nós continuaríamos mantendo-o preso. Deus sabia que minha preocupação com Chloë só se tornava mais doentia a cada dia.

Chloë parecia estar reagindo mal ao fato de seu pai, o provável herói de sua infância, estar acorrentado ali na sua frente, como uma fera bestial. Eu também não me sentia bem ao ver a cena, mas imaginar Chloë ferida outra vez era mil vezes pior.

Gail suspirou ao meu lado, na nossa quinta visita á Clínica, observando Chloë olhar o pai, encostada na parede aonde ficava o poleiro de Skype. Chloë não tinha nenhuma expressão no rosto - parecia completamente zumbi quando estava desanimada.

– Se ele reagir bem ao "tratamento" aqui, a gente podia trazer mais zumbis com o tempo - Gail comentou.

– Claro - respondi. Não era esse o nosso objetivo?

Na última incursão, Gail achara algo fantástico: uma televisão de plasma conectada á um DVD Player, ambos funcionando perfeitamente. Sorrateiramente, nós havíamos instalado aquela belezinha na Clínica, para entreter Chloë e - quem sabe - fazer Carl ter alguma lembrança de sua vida humana. Eu tinha dado um jeito de arrumar alguns DVDs em uma locadora abandonada da cidade.

– Olha - eu disse, estendendo os CDs para Gail - qual a gente coloca?

– Por que não deixa a sua namoradinha escolher? - brincou Gail, indicando Chloë com a cabeça.

Ela estava mexendo com Skype, que estava confortavelmente acocorada no pescoço de Chloë. Notei, para minha surpresa, que Chloë estava reaprendendo a assoviar. Era um sopro esquisito, mas estava quase lá. Skype parecia concordar, pois cada vez que Chloë assoprava, ela dava um piado estridente.

– Choë? - chamei-a.

Ela levantou a cabeça, e, com Skype ainda enfiada em seu ombro, se aproximou de mim. Tinha uma nova expressão no rosto, que concluí, chocado, ser de sono. Será que ela ia dormir pela primeira vez depois de morrer?

Definitivamente vararia a noite ali naquele dia para descobrir. Valeria a pena.

– Oi, Ryan... - para o choque de Gail, ela suspirou fundo, numa versão zumbi de bocejo.

– Você quer... ahn... escolher o filme?

Ela inclinou-se para os DVDs em minha mão. Passou desinteressada por E O Vento Levou, piscou um pouco para Crepúsculo e parou estupefata no próximo. Ela deu um pulinho engraçada e começou a cutucar animada a capa do CD.

– Você gosta de Sonic Underground? - ri ao ver seus olhos arregalados.

Ela assentiu com a cabeça. Não pude deixar de sorrir. Minha namorada zumbi gostava de desenho animado.

Gail balançou a cabeça, rindo também, e foi colocar o DVD no aparelho.

Chloë sentou-se no sofá surrado que eu estava e encostou a cabeça em meu ombro, observando hipnotizada o tema de abertura do desenho.

Gail voltou ao sofá com a cabeça virada para Carl. Me virei na direção que ela olhava, e vi, agradavelmente surpreso, o zumbi se virar para o televisor e começar a assistir silenciosamente ao DVD.

Não era uma demonstração de total humanidade - aliás, minha mãe brincava, anos atrás, ao dizer que a TV "zumbificava" as pessoas, e não o contrário - mas já era alguma coisa.

Chloë também percebeu a mudança de postura do pai, e pareceu mais feliz ao aninhar os braços em meu peito.

– Sabe - comentei com ela - Sonic Underground parece um pouco com nossa vida agora.

– Como assim? - murmurou Chloë, me olhando.

– Bom, não tem as pessoas que o Robotinik robotiza? Elas nem sempre querem fazer o que fazem realmente... estão só obedecendo instintos. Se não fosse o Sonic e os irmãos dele, com o poder dos medalhões, por exemplo, o Argos não teria recuperado parte da sua humanidade, mesmo por um tempinho, enquanto eles procuravam a mãe. Tipo, um fator externo possibilitava aos robotizados retornar ao normal por algum tempo.

Chloë ficou absurdamente calada por um tempo. Por fim, murmurou:

– Eu sou uma robotizada? - ela riu baixinho pelo nariz.

– Tipo isso - também ri, beijando sua bochecha. Observei, de esguelha, Carl encarando a gente com um misto de confusão e raiva no rosto. Se aquilo era o ódio natural de um sogro pelo namorado de sua filha, pensei rindo, isso era um sinal de que ele estava se tornando humano até demais.

Chloë me olhou, e deu um sorriso leve, quase misterioso.

– Ryan?

– O quê?

Ela esfregou o rosto no meu pescoço, parecendo bizarramente preguiçosa.

– Você é o meu medalhão...

Aquela frase mexeu comigo em cada centímetro do meu corpo e da minha mente.

Ela tinha razão. De certa forma, eu havia desencadeado tudo isso.

Mal acreditei quando senti seu corpo afrouxar-se em meu ombro. Seus olhos fecharam-se e, dali á alguns minutos, um suave ressoar saiu de sua boca.

Gail nos observada espantada.

– Ela.... está...

– Dormindo - sorri, aninhando o corpo de Chloë no sofá, para lhe dar mais espaço. Chloë... minha zumbi maluca e sofredora. Balancei a cabeça, acariciando levemente seus cabelos.

Carl ainda nos observava, mas com uma expressão até agora desconhecida em seu rosto.

Por um momento, vi ali a contemplação paternal de um homem velho e cansado que observava sua filhinha dormir.


Voltando à ViverOnde histórias criam vida. Descubra agora