CHLOË
Eu não fazia a menor ideia do que diabos eu estava fazendo ali.
Aquele cara era só mais um humano. Com um cérebro que eu já devia ter digerido. Mas desde o nosso encontrão na viela, eu vinha me remexendo de dúvidas.
Quando ele havia abaixado a arma, e eu estava pensando por que raios eu ainda não o atacara, senti um baque estranho no peito, como se alguém invisível tivesse me dado uma bofetada.
E outra. E mais outra.
Ah. Aquilo não era externo. Estava dentro de mim.
Coração... era meu coração morto... batendo outra vez.
Como era possível?
Fiquei tão confusa que só pude registrar o momento em que ele se aproximou quando já estava á alguns centímetros de mim.
Tudo o que aconteceu depois parecia uma lembrança muito humana para meu cérebro de zumbi. Era como se tudo voltasse a ser real... ou irreal, no caso.
Após aqueles pequenos três baques dentro de mim, desde então eu só remoía dúvidas.
Por que eu reagira como uma mané - mané, tipo, mais do que já era como um zumbi - enquanto conversava com aquele cara? Céus, por que eu estava conversando com ele? Era para ficar rosnando e gemendo, e come-lo. Só.
Me lembrei da minha frase bizarra. "Em qual sentido?". Eu não tive intenção de ser engraçada. Me escapara num lapso de confusão e medo. Mas ele riu. E, caramba, já fazia um tempo que eu não ouvia esse som. Outra lembrança humana.
O que me fez fugir da refeição? Ou por que eu fui louca o suficiente para deixar meu nome no muro? Não, eu não fazia a menor ideia. Mas aquele garoto... me fez reagir involuntariamente... eu ri, eu sorri, pela primeira vez depois de morrer.
Como?
Eu tinha que saber o por que. O que fazia dele tão especial entre os humanos que fazia com que eu mesma agisse como uma?
Eu tinha que descobrir.
E aí eu faria minha merecida refeição interrompida.
Foi por isso que eu segui seu cheiro até o outro lado da cidade. Qual é, nenhum dos meus amigos perderia tempo perseguindo um único humano. Eu era uma deslocada mesmo entre os mortos.
"Você não é normal".
Estaquei ao me lembrar do que ele dissera. Eu nem perguntara o nome dele. Se eu ia conversar mesmo com ele, era melhor eu chama-lo de outra coisa que não fosse "você".
O cheiro dele era suave, bem fraco, mas familiar. Lembrava sabonete líquido de banheiro público. Eu me lembrava do cheiro por que uma das poucas lembranças humanas que não me incomodavam era a dos passeios que eu fazia com minhas amigas - as mesmas que estavam mortas como eu agora - no shopping da cidade.
Claro. O shopping. Ninguém ia lá havia anos.
Ninguém morto, pelo menos.
O rastro do cheiro terminava numa cratera de um dos muros do antigo shopping. As entradas originais estavam todas lacradas, então os humanos deviam estar entrando por outro lugar.
Para não deixar suspeitas, empurrei a fina camada de madeira que tampava a a cratera e, em seguida, ao passar, recoloquei-a no lugar.
Quando me virei para frente, eu o vi.
Estava dormindo, enrolado num emaranhado de cobertas velhas. Um alvo fácil demais.
Meu instinto, que havia ficado enganchado em algum canto da minha mente, implorava por uma refeição.
"Ainda não", murmurei para mim mesma. "Tenho que saber o por que estou reagindo assim. O por que não me sinto tão zumbi quanto devia ser".
Ao baixar os olhos para o rapaz outra vez, vi seus lábios se mexerem... um suspiro distorcido, mas que eu reconheci o som.
Chloë.
Estava falando meu nome.
O baque silenciado de horas atrás voltou com mais força.
Fiquei observando aquela estranha reação em meu peito. O baque perdurou por mais algumas vezes, e parou de novo.
Absorta, me assustei quando o garoto acordou gritando. Ouvi um farfalhar de penas que não havia percebido antes. Havia um pássaro amarelo num poleiro tosco de madeira no canto da loja, que parecia estar tão assustado quanto eu.
Ele se levantou, bambo, e olhou direto para mim.
Sua boca tremia; os olhos, aterrorizados, me encaravam.
Mas não estavam aterrorizados por me ver.
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Voltando à Viver
Fiksi UmumSinopse: Qual é o limite entre a bestialidade e a humanidade? "Eu podia ter me livrado dela. Podia ter dado um tiro na testa dela e meus problemas nem teriam começado. Se eu não fosse tão burro...(...) Se eu não tivesse me apaixonado... (...)" Num m...