RYAN
Fiquei estático, observando-a em sua reflexão selvagem; meus lábios anestesiados se mexeram e disseram simplesmente:
– O que você faz aqui?
Seu rosto se contorceu; o olho em que faltava uma pálpebra olhou para baixo, e formou uma imagem bem desagradável, como a de uma clara de ovo que escorresse pela casca quebrada, sem porém pingar no chão.
– Não sei - ela rosnou baixinho enfim.
– Você está confusa - afirmei estupidamente. Santo apocalipse, claro que Chloë estava confusa. Uma criatura que só devia pensar em matar e comer estava tendo reações completamente humanas, como se estivesse se recuperando da doença zumbi.
Algo que devia ser impossível... pelo menos segundo o Comitê.
Ela devia ver naquilo uma esperança de ser mais do que um corpo vagando por aí. Devia estar tão ávida de informações sobre isso quanto eu. Por isso tinha me procurado.
Ás vezes eu era tão burro que ficava inteligente.
– Ah... você quer... sentar?
Minha Skype mental se recuperara do susto em seu poleiro e começou á cuspir sarcasmo em mim. "Ah, é... onde você largou aquele livro de etiqueta de como se portar com uma visita zumbi em casa?"
Chloë parecia tão surpresa com a gentileza quanto meu inconsciente. Ela se sentou numa banqueta suja atrás do balcão, sem tirar os olhos de mim.
– Eu... - ela sibilou - quero saber... o que... por que... tudo isso aconteceu...
Olhei para a porta fechada da loja, subitamente consciente de que tinha um zumbi em casa. Caramba, se alguém a visse, acabaria com ela. E comigo também, provavelmente.
– Chloë - chamei-a, ficando surpreso ao ver ela tremer levemente quando eu disse seu nome - se alguém te vir, vai... você sabe.
– Me matar - murmurou ela, sem emoção alguma no rosto.
– Isso... então, você... bom... não pode sair daqui agora.
Ela bufou. Ainda sem transparecer emoção - pela primeira vez, de um modo completamente zumbi - Chloë disse:
– Estou com fome.
Olhei para ela, curioso. Ela realmente parecia não ter decapitado mais ninguém desde o nosso encontro. Seu rosto estava bem mais encovado do que quando a vi pela primeira vez.
Mas eu não podia chegar para alguém e dizer "olha, tem uma zumbi lá em casa que não pode sair pra caçar... você arranjaria um cérebro pra mim?".
"Exatamente", disse meu inconsciente, com desdém.
Ou seja, eu teria que arranjar um corpo. Tipo, um corpo morto mesmo. E entrar com um cadáver dentro do shopping e manter Chloë escondida, sem atacar ninguém, parecia ser tão fácil quanto o Comitê deixar zumbis circularem no shopping.
Ela perecia estar pensando no mesmo que eu; olhou de mim para a porta, e rosnou algo que era bem inteligível... quase um comentário receoso.
– Vou ficar quieta aqui... prometo.
Meus Deus... era como uma criança dizendo que ia se comportar.
Por uma estranha e insana razão, acreditei nela. Ela não parecia estar blefando. E, pela primeira vez, tive certeza de que Chloë não era perigosa... pelo menos, não naquele momento. Porém, a ameacei só para garantir que ela não daria uma de curiosa.
– OK... você precisa ficar aqui, Chloë. Quieta. Se sair daqui, tem duzentas e vinte pessoas armadas lá fora... você não vai ter chance alguma de fugir. Vou deixar a loja trancada por enquanto...
Ela me olhou de novo, e uma emoção perceptível, um tanto forte, passou pelo seu rosto. Por um delirante segundo, na careta que deveria ser um sorriso, Chloë pareceu quase... amigável. Grata. Satisfeita por eu estar "preocupado" com ela.
"Você está preocupado com ela, imbecil. Você não quer que a machuquem", piou minha Skype mental, quase agoniada. "Não, não minta. Você não quer mesmo. Admita".
"Droga", respondi mentalmente, enquanto trancava a loja, vendo a silhueta magra de Chloë pelo outro lado voltando á sentar-se na banqueta. "Acho que não quero mesmo. Estou ficando maluco".
Vou contar um segredo: agora eu já tinha uma vaga, medonha e aterrorizante ideia do por que eu não havia puxado aquele maldito gatilho. Era um fato: eu podia ter me livrado dela. Podia ter dado um tiro na testa dela e meus problemas nem teriam começado.
Se eu não fosse tão burro...
VOCÊ ESTÁ LENDO
Voltando à Viver
Ficción GeneralSinopse: Qual é o limite entre a bestialidade e a humanidade? "Eu podia ter me livrado dela. Podia ter dado um tiro na testa dela e meus problemas nem teriam começado. Se eu não fosse tão burro...(...) Se eu não tivesse me apaixonado... (...)" Num m...