O único enterro que eu participei foi o da minha querida bisavó, mas eu era muito nova na época, o evento não me afetara. Agora, cá estou eu no segundo.
Estávamos todos em pé no morro mais escondido da fazenda, todos os escravos reunidos naquela manhã acinzentada em torno das quinze lápides que habitavam a grama seca. Fechei meus olhos, deixando a tristeza tomar conta do meu corpo pela décima sexta lápide colocada no local. Eu fazia de tudo para não chorar, para me sentir menos culpada pela morte do bebê, mas a dor encravada no meu peito era mais forte que qualquer outro sentimento.
– Olívia– era Dante.
Ainda com meus olhos fechados, eu pude sentir a mão pesada do meu novo melhor amigo se apoiar no meu ombro. Olhei para o lado, no fundo dos olhos dele e o que eu vi me deixou ainda mais triste, pois ele não estava abatido. Seu olhar era como se aquele dia fosse um dia qualquer.
– Sei como está se sentindo– afirmou Dante.
– Ao contrário de você– lamentei– Estou muito mal, não sei o que fazer.
– Não há nada que possamos fazer.
– Eu poderia ter salvado o bebê!
– Não Olívia, pare de se lamentar, pare de se culpar. Você não tem nada a ver com isso, talvez ele já estivesse morto quando você chegou ontem à noite. Você mesma disse que ele morreu asfixiado.
– Olha isso– Apontei para Lurdinha, que se encontrava escorada em uma árvore, conversando alegremente com um dos escravos– Nem a própria mãe está tão abatida quanto eu. E outra, eu sei que alguns deles me culpam, ouvi boatos.
– Olívia, eu não faço a mínima ideia de onde você veio, mas está vendo todas essas lápides? São escravos que morreram nessa fazenda. Nosso cemitério é muito maior que o da família Macedo, nosso cemitério carrega a dor de cada um que está enterrado sob esse solo. Infelizmente, estamos acostumados com mortes assim, é muito mais doloroso ver um senhor de idade morrendo do que um bebê que nem chegamos a conviver. Lurdinha está sim muito triste porque carregou esse filho durante nove meses, mas ela não vai se abater por algo que já presenciou inúmeras vezes. Entende?
– Pois eu posso presenciar mil mortes, mas eu nunca me acostumarei com isso Dante, nunca vou me acostumar em ver um ser humano morto nos meus braços. Isso está tão errado.
– Não estou pedindo que se acostume, eu só quero que entenda que a maneira que lidamos com certos assuntos aqui é bem diferente da maneira que você está acostumada– Dante suspirou– Eu sei que alguns escravos te culpam Olívia, mas quem estava presente naquela senzala, quem viu com os próprios olhos o que aconteceu, jamais te culpariam.
Fechei meus olhos novamente, esforçando-me para não chorar, porque se eu começasse talvez não conseguisse parar. Depois de respirar fundo repetidas vezes eu entreabri meus olhos úmidos cautelosamente e vi uma figura bastante familiar aproximando-se. Álvaro Coimbra.
– O que você quer?– perguntei bruscamente.
– Preciso falar com você– ele inspecionava-me de todos os ângulos.
Percebi que todos desviaram o olhar na nossa direção e eu fiquei ligeiramente envergonhada pela presença de Álvaro em um momento tão inoportuno.
– Dante– olhei para ele e ele entendeu de imediato o recado, afastando-se.
– Fiquei sabendo o que aconteceu ontem à noite– ele estava tentando me reconfortar? Eu não fazia ideia– Eu lamento muito o que aconteceu.
– Lamenta?– interroguei.
Ficamos em silêncio durante prolongados minutos antes dele começar a falar seu propósito para essa inesperada visita.
– Eu vim aqui apenas para falar com você. Convenci Augusta, minha irmã, a manter-se em silêncio. Foi difícil, mas ela permanecerá calada sobre o que aconteceu na sala de reuniões.
– Uau, e eu realmente pensei que você iria se desculpar pelo ocorrido– bufei.
Ele riu.
– Você que deveria me agradecer.
– Você fez isso pensando apenas em si, Sr. Coimbra, deixe de ser cínico.
– Deixe você de ser abusada. Já fiz o favor de vir aqui transmitir a notícia pessoalmente.
– Você veio porque queria me ver. Admita isso primeiro para si mesmo– Virei-me de costas, sem vontade de olhar aqueles belos olhos azuis novamente.
– Olívia– ele colocou a mão na minha cintura, eu estremeci, ao mesmo tempo em que olhava para o lado para confirmar que a gente não possuía plateia.
– Descobriu meu nome, Sr. Coimbra?
– Sempre soube.
– Quero que vá embora.
– O que aconteceu naquela sala de reuniões foi efeito da bebida.
Cruzei os braços e suspirei fundo. Eu sabia que não era apenas efeito da bebida, podia sentir que havia alguma coisa entre a gente, alguma coisa que me deixava inquieta com a sua presença.
– Sr. Coimbra, eu quero que vá embora– afirmei– quero vá embora e que nunca mais volte a me procurar.
– Acha que manda em mim, negrinha?
Virei-me novamente para ele e vi o meio sorriso que tomara conta do seu rosto.
– Eu não quero e nem você, que aquilo se repita. Enquanto você for essa pessoa sem coração, egoísta, que só pensa em engrandecer diminuindo os outros, que tem vergonha de mim, não poderemos manter contato. Eu convivo e faço amizade com aqueles que gostam de estar comigo, com aqueles que sabem colocar os outros em primeiro lugar, com aqueles que sabem ser solidários. Sr. Coimbra, eu não consigo entender as suas atitudes, eu sinceramente vejo que no fundo você não é essa pessoa que diz ser.
Ele me estudava sem dizer nada.
– Eu não queria ter que dizer isso, mas eu sei que o que aconteceu entre a gente não foi apenas efeito da bebida como você teve a ousadia de afirmar– eu estava quase gritando– Você mente para si mesmo o tempo todo, todas as suas atitudes são mentiras daquilo que você realmente é. Eu preciso ir embora.
– Negr...
– E olha– comecei antes dele terminar a primeira palavra– Pare de me dar apelidos que me desmereçam, o meu nome é Olívia Ambrose e quero que você me trate como tal. Vai embora Sr. Coimbra e não me procure mais.
Nos encaramos por alguns segundos. Eu não conseguia ler a sua expressão, mas sabia que a minha era de raiva e impaciência.
– Caso não tenha percebido, estou em um enterro– sibiliei.
– Foi um prazer conhecê-la, Srta. Ambrose.
Ele acenou com a cabeça e começou andar na direção de onde viera. Acompanhei seus passos rígidos com o olhar até não ser possível enxergá-lo mais.
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Negra
Historical FictionOlívia Ambrose Barros é uma estudante de Arquitetura que enfrenta com garra o dia a dia como qualquer outra garota de vinte e dois anos. Mas no dia 20 de Julho o inesperado acontece: ela volta no tempo e para no ano de 1871. E o maior problema nem f...