06. Presa perfeita

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Eu fui manipulado (...)
Não coloque a culpa em mim
— John Newman

***

Para variar, minhas irmãs fazem festa bem no dia em que tenho ensaio. Minha mãe me escuta que é uma beleza! Sem contar que a magricela, que meus pais decidiram adotar ("a última"), chega hoje à noite. Eles pegaram só um menino dentre tantas adoções. Fico me perguntando se ter nascido homem foi um erro para a família.

Tomo banho à espera de que elas voltem do supermercado. Cantar no chuveiro é algo que faço para relaxar, apesar de o meu sonho ser esse: cantar sozinho. Não que eu deteste ficar em um quarteto, mas os caras começaram a ir para um lado meio obscuro. Por exemplo: vejo como os pais de minhas irmãs, drogados, não conseguiram cuidar delas, tomando a medida do abandono como única solução.

Não sei muito da história dessa tal Chelsea, mas aposto que é quase a mesma coisa.

Termino com a ducha e saio, cantarolando e deixando o celular sobre a cômoda, decidido a me arrumar o mais rápido possível. Porém, ao chamado de meu pai, vejo que alguém deixou uma das minhas camisetas pretas favoritas sobre a cama. Parece uma vibração boa, então a visto e parto escada abaixo.

Phoebe e Jessie se divertem nas cadeirinhas enquanto Úrsula, sem a menor sombra de dúvidas a mais estranha, masca seu chiclete de cereja insuportável. Mamãe avisa que meus colegas estão me esperando no portão. Vou recebê-los, envergonhado por verem todos os pestinhas destruindo nosso jardim.

— Fica sossegado, Tom — fala Jack, o vocalista. Sua voz está um tom mais grave do que de costume e posso sentir o cheiro de drogado. Ser o capitão do time de futebol não o fazia menos estúpido. — Esses pirralhos não nos darão problemas!

Donnie, o baterista, e Nick, o baixista e meu melhor amigo, o acompanham nos risos. Sei o quanto ele detesta crianças e não foi o melhor dia para ensaiarmos no meu condomínio, mas nãããããããão! Temos apresentação em um dos restaurantes mais populares da cidade. Precisamos de, pelo menos, mais um patrocinador. Eu não poderia acabar com minha carreira por um motivo tão banal.

Atravessamos a trilha de pedras para dentro de casa quando escuto Donnie resmungar. Ele sempre resmunga, porém hoje me pareceu mais fissurado naquilo que estava vendo.

Não adianta, ele nunca conta nada.

Entramos no quarto e tranco a porta. Jack começa acendendo um baseado na minha cama. O vocal dá risada, resultado do grito que soltei, já que não seria a mãe dele cheirando aquela merda antes de entrar em choque total.

Tenho um pressentimento esquisito. É como se estranhos estivessem por aqui.

Pego minha guitarra. Deito na ponta da cama, perto de onde há um pequeno sofá vermelho escuro que mamãe pediu para colocar em todos os quartos. Bom, não sei, mas nosso cachorro gosta deles. Ele está na casa vizinha, porque não querem um Golden rasgando nossa toalha suíça de novo.

Jack volta a sentar no sofá, ignorando que estou apoiando meu corpo ali, depois deita sem se importar se vou reclamar. Don bate com suas baquetas nas próprias pernas e ainda estou curioso para saber por que ele resmungou. Por outro lado, Nick está tranquilo, esperando que abramos a garagem para pegar os instrumentos. Ele é o cara que mais se esforça. É calmo, educado. Gosto dele assim, só não quero que o mau exemplo de Jack o leve para um lugar pior.

Chega a hora do parabéns. Peço para que os três se comportem enquanto desço para ajudar meus pais. Mesmo sendo amigos há tantos anos, não confio totalmente na dupla dinâmica.

As crianças estão prontas no jardim. Fico ao lado de Úrsula, minha irmã mais nova, que parecia bem entediada como de costume, com aquela cara de morta que só ela sabe fazer sem esforço algum. Bato palmas no ritmo em que seus olhos verdes brilhantes piscam em contraste com a sombra preta demais. Tudo nela é preto, para ser franco.

Meus pais, Phoebe e Jessie estão contentes, isso que importa. Uma pena que meus dois irmãos mais velhos não puderam comparecer por causa das provas na faculdade, mas mandaram presentes esta manhã que deixaram minhas irmãs muito satisfeitas: elas gostam de vermelho e unicórnios, no caso, o que foi uma mistura perfeita que as deixou histéricas por todo o dia.

Quero um pedaço do bolo, mas sei que sobrará muito para mais tarde, pois as gêmeas sempre querem mais doces só para si. Seis anos nas costas e ainda não acredito que uma adolescente as tenha abandonado na minha idade. Provavelmente o pai nunca soubera das duas filhas. Pensar nisso me assusta bastante.

Ao que parece, todos estão comendo. É minha deixa. Peço as chaves da garagem para Dmitry, chamo meus colegas e, antes que minha própria mente nos impeça, estamos começando a ensaiar. Jack aquece a voz. Ele nunca me deixa ultrapassar seu tom durante os refrões. Querer ser o centro das atenções era um de seus lemas principais.

Sou o compositor das músicas. Ele não faz nada senão achar a nota perfeita e cantá-la como se fosse um Bruno Mars pobre de dezoito anos. Donnie vai na onda dele para quase tudo. Nick é o meio termo, que não sabe o que quer da vida. Busco a carreira solo por essa razão: acho que tenho potencial, meus parentes seriam meus patrocinadores fixos e não teria que dividir o crédito com alguém que não faz nada além de se gabar por porcaria nenhuma.

Sem ânimo, fecho os olhos e deixo as cordas andarem pela ponta dos meus dedos. Jack canta, misturando sua melodia com os acordes que saem do baixo. Nick deixa a música levá-lo, um bom futuro ao redor dele. Não poderia ser diferente minha certeza em seu sucesso: nos conhecemos há dez anos.

O vento sopra fora das janelas. Os sons ecoam pelas paredes da garagem, iluminada fracamente pelos raios solares. Não vejo se há alguém nos observando, mas meu único desejo é que esse ensaio acabe para que eu possa fazer alguma coisa antes de a novata vir daquele manicômio.

São duas horas seguidas. Trago algumas garrafas d'água, torcendo para Jack pular certas músicas de nosso roteiro. Estou receoso, não quero continuar com ele aqui em meio a tantos moleques que mal sabem o que estão cheirando.

Eles terminam as gravações normalmente. Nos despedimos e o vocalista me entrega uma nota de dez, como sempre fazemos para com o outro. Guardo os instrumentos em um canto escuro para levá-los, na próxima semana, ao restaurante, depois à casa dos tios de Donnie, onde faríamos o último ensaio antecedendo às gincanas e festas nos colégios.

Os convidados se dissipam. Meus pais conversam com amigos e prefiro não incomodar. Se não estou enganado, a menina nova chega por volta das 19h. Tenho algum tempo para ficar sozinho antes de dividir o quarto ao lado.

Subo as escadas com minha guitarra. Posso sentir os batuques vindos da porta trancada de Úrsula. Ao contrário do meu estilo, ela curte algo mais emo ou indie. Não tem muito a ver com o estilo que quer passar através de seu vestuário, mas quem sou eu para julgá-la?

Entrando, deixo a guitarra no sofá minúsculo e deito de bruços por querer manter a raiva presa dentro de mim. Não tinha motivo, mas ensaiar demais me lembrou que tenho que ir ao clube com minha família amanhã. Deve ser porque não há desculpas. É algo semanal, se bem que mamãe preferiria "familiar".

Ah!, penso, sei o que tenho que fazer.

Abro minha segunda gaveta. Vasculho o fundo falso, porém não encontro nada senão madeira. Está vazio. O QUÊ?

Minha mãe nem mexe nas minhas roupas e meu pai não entra aqui há umas duas semanas, mais ou menos. Nenhuma das garotas teria imaginado este esconderijo...

Ótimo dia, Thomas, ótimo dia.

Thomas

Hell Girl | COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora