02. Garota louca

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Uma juventude confusa
Dopando-se em seu perfume suave e sedoso
Glass Animals

***

Saí da instituição psiquiátrica doze meses após o acidente. Não me lembro do que aconteceu naquela noite, mas de uma coisa tenho certeza: ninguém sobreviveu.

Pelo meu progresso ter sido de 100%, desde aulas de ioga às terapias de choque e medicamentos controlados, perceberam os médicos que meu caso não era um dos piores. Nenhum dos que estudaram detalhadamente o caso encontrou uma resposta, então fui inocentada por "falta de provas". Não houve qualquer indício apontando que eu tivesse problemas mentais ou sociais, nem uma fotografia sequer em jornais, sites ou reportagens na televisão. Tudo fora bem calculado pelos policiais para que o incidente não viesse à tona.

Meu psiquiatra particular, Dr. Munhoz, veio até mim em nossa última consulta. Nos encontrávamos todas as quintas e sextas, apesar de eu não gostar nem um pouco da decoração natalina do consultório dele durante o ano inteiro.

— Preparada para voltar à ativa, minha querida? — Diz, como se estivesse consultando uma criança inocente às vésperas da Páscoa.

— Lógico que não! — Falo meio que cuspindo, mas essa não foi minha real intenção. Seria difícil me acostumar com uma nova família senão a minha.

Ela, porém, está em outro lugar. Não há como voltar atrás.

— O que achou deles? — Pergunta o psiquiatra.

— Estranhos. Aquela mãe parece uma participante de luta livre casada com um professor de fisiculturismo nerd.

Dr. Munhoz sorri.

— E seus futuros irmãos? Devem ter algo em comum, não?

O fato é que esse casal adota quantos filhos puder porque sua conta bancária permite, além de terem boa lábia nos tribunais. O método deles é tão eficaz que são sete, contando comigo: dois estudam em uma faculdade popular estadual, outro frequenta o mesmo colégio onde já estou matriculada, mas o restante não se deu ao trabalho de me entreter.

Digo isso a Munhoz, assentindo.

— Sabemos como a senhorita é, pegue leve. À sua situação atual, serão os melhores tutores.

— Prefiro não ter tutores.

— O único não adotado é o que estudará com você — Munhoz ignora o comentário sarcástico mais uma vez. — Espero que cause boa impressão no primogênito, pelo menos.

Dou um sorrisinho assanhado, não percebido pelo psiquiatra. Termino a conversa dizendo que sentirei saudades das aulas separadas, da comida na cama e de quantas refeições eu quisesse. O médico ri e aperta minha mão ao sair de uma maneira estranha, idêntica à dos meninos mais velhos que frequentavam minha antiga escola.

Em meu quarto, arranco os pôsteres de bandas velhos e os jogo nas lixeiras separadas. Minha companheira do beliche, Liz, parecia querer fazer sexo comigo enquanto eu dormia, por isso tiveram que transferi-la e acabei com tudo só para mim. Não que meu consciente ficasse incomodado, mas, já que os terapeutas insistem, temos que seguir o regulamento.

A única roupa que tenho é a do corpo: camiseta, calças largas e tênis de couro branco. Munhoz arranjou um conjunto completo para mim nos achados e perdidos, e as médicas de plantão fizeram com que eu o vestisse às pressas antes que a vã viesse me buscar. Até parece que haveria um rodeio nos esperando.

Antes de tudo começar, vou ao banheiro lavar o rosto. Pensei, o ano todo, se esse dia chegaria e como reagiria às mudanças, e ele finalmente chegou. Teria que mostrar para minha nova família que não sou nada deles. Meu verdadeiro sangue se foi há tempos.

Eu preferia ser reconhecida como uma amiga ao invés de uma membra próxima, mas o pior é que não sei como convencê-los de que não serei outra garota adotada, filha ou irmã, somente a figura de uma visita, chegando e desaparecendo logo em seguida. Mas de que maneira? Como mostrarei ser Chelsea Skyler?

Minutos depois, rebolo de propósito pelos corredores. Alguns pacientes beijam as paredes envidraçadas de suas aulas de relaxamento, me bajulando com qualquer elogio que lhes venha à cabeça. Solto um risinho ao ver Liz conversando sozinha no refeitório. Os lábios dela tremem ao notar que estou saindo daquele inferno, e a correspondo ao morder a língua. Não estou nem aí para o que vão pensar, pois nunca mais os verei.

A vã preta me espera no estacionamento. Uma das enfermeiras dirige o ferro-velho e diz que devo ir à frente, para o caso de tentar uma fuga programada. Se bem que não há motivo para fugir. Arrumo minha bolsa de remédios, algumas anotações e a arminha de choque, se algum otário tentar me pegar na saída, e, logo que o portão é aberto, me vejo livre nas ruas.

Liberdade. Quase me esqueci de como pronunciá-la.

Há prédios por todos os lados. Não consigo ver a luz do dia e são poucas as árvores ainda restantes. Devemos estar no centro, pois lembro que, até ano passado, havia milhares de carvalhos, jardins e parques ecológicos pelo meu bairro mais afastado. Percorremos alguns semáforos. Vejo pessoas se exercitando em um novo calçadão junto aos seus cães e fico imaginando se minha nova família teria algum bichinho. Espero que sim, porque meu pai de verdade jamais permitiria que eu tivesse uma chinchila após o acidente.

Uma cochilada rápida já é suficiente até chegarmos ao destino inusitado. Literalmente está havendo uma festa. Não para mim, mas para duas garotas de nomes estranhos. Devem ser as filhas mais novas do casal. Bom, menos pior.

— Moça, venha cá — informa a enfermeira antes de sair. — Nossas regras valem aqui também. Um fiscal do instituto virá uma vez por semana durante seis meses para garantir a guarda com a família. Telefonaremos caso eles fiquem em dúvida. Nem pense em fazer besteira... ditamos tudo, dissemos tudo, devo estar me esquecendo de algo...

— Que tal parar de me encher?

Corro para fora, batendo a porta na cara dela com força. Estou cheia de tantas regras, me deixem viver! Munhoz e minha terapeuta disseram que eu deveria falar direto com a "mamãe", apresentada por fotos. Naquela festa, contudo, nada seria tão fácil quanto imaginávamos.

Avisto um fiscal com prancheta me observando. Vou até ele e o acompanho pela enxurrada de crianças, já que a dona da casa não poderia nos atender no momento. Damos a volta na grama verde e passamos por estradinhas de pedra, com tantas cores em sua superfície que perco a conta.

Meu novo pai está na área da piscina a encher balões temáticos para dezenas de baixinhos loucos pelo gramado. Estou amedrontada. E se ele não gostar de mim e eu tiver que voltar para aquele quarto branco do instituto? Vou ter um surto!

O segurança esbarra em alguns convidados antes de chegar ao senhor de óculos fundo-de-garrafa. O homenzinho quase cai para trás, mas, ao me reconhecer, esboça um dos maiores sorrisos que vi na vida.

— Chelsea?!

Tão grande quanto os óculos só o alargador desnecessário preso em sua orelha esquerda. A barba escura chama a atenção sob o sol escaldante, mas minha antiga opinião prossegue, no entanto, sobre parecer um nerdão aparentemente doido.

— Olá, senhor Halder.

— Me chame de Dmitry. Você é mais bonita do que nas fotos, admito.

— Ah, obrigada — sorrio, incomodada com tanta atenção desnecessária. — Parece que a senhora... digo, Vicy, não está.

— Ainda não, infelizmente. Ela foi com as três mais novas à procura das velinhas de aniversário da Jessie.

Agora estou me recordando do nome de seus filhos: Phoebe e Jessie, abandonadas em um aterro de esquina, eram as gêmeas loiras. A menina poucos anos mais nova do que eu se chama Úrsula, que foi deixada aos cinco perto de um abrigo para animais. Thomas, o filho do casal lunático, é o cara que estudará comigo no colegial e, pelas fotos, não muito atraente e acima do peso. Os dois mais velhos cursam faculdade na cidade vizinha (acho que são Brad e Suzanna; um prematuro, outra que os parentes morreram em um incêndio).

Somos todos sobreviventes de desastres mentais.

Chelsea

Hell Girl | COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora