17. Sombras no farol

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Olhe para as estrelas
Olhe como brilham para você
E todas as coisas que você faz
— Coldplay

***

Pessoas são estranhas.

Ao chegar em casa, não disse nada aos meus pais sobre Úrsula ou o que Chelsea descobriu durante as aulas. Ela, por outro lado, começou a lavar os pratos e a conversar com nossa mãe sobre algo que preferiram não contar. Sobre mim, lógico, mas não pensei que fosse começar a missão "Aceitação ao filho pródigo" tão cedo.

Ensaiei um pouco no quarto. As risadas no andar inferior eram perturbadoras, mas tenho que me concentrar na guitarra, no restaurante, no show... ah, que se dane, eu só quero dormir.

A noite chega num piscar de olhos. Meus pais saíram a trabalho, e Úrsula concordou em ficar com as gêmeas por algumas horas. Achei aquele pedido meio forçado, mas não discuti, já que Chelsea não tem cara de saber lidar com crianças.

Pego o carro do Dmitry, que mais parece uma caminhonete arrumadinha, e dou um jeito para que todos os instrumentos caibam ali. As mangas do moletom incomodam meus pulsos, fazendo com que eu fique distraído e deixe uma baqueta cair no chão.

Ao abaixar-me para pegá-la, vejo, do outro lado da caminhonete, algo se movendo. Red está dentro de casa, então o que seria?

Se o vulto não tivesse aparecido na estradinha de pedras, eu teria imaginado que fosse um esquilo ou um gato, o que é bem comum por aqui nesta época do ano. Porém, sabendo que há coisas assustadoras atrás de mim, estou preparado para tudo.

Ou talvez não.

Viro para o lado, dando de cara com minha irmã adotiva mais velha de moletom azul escuro e tênis de corrida. Eu solto um grito e ela me acompanha.

— Seu retardado! — Levo um tapa não tão forte no braço. — O que foi, quer assustar a vizinhança inteira?

— O que está fazendo aqui?

— Vou junto, oras. Ou pensou que eu ia aguentar suas irmãs pelo resto da noite?

Reviro os olhos, mas sei que Chelsea não vai mudar de ideia se eu a proibir. Sentamos nos bancos de couro desgastados e abaixamos o vidro, mas ainda estou duvidoso para saber se foi ela mesmo quem estava do outro lado da garagem.

O percurso demora um pouco. Os semáforos não estão favoráveis, muito menos as sombras provocadas por postes quebrados nas ruas e becos. Avisto lojas de conveniência que meus amigos e eu visitamos no verão passado, a praça onde montam um circo todo final de novembro e anúncios sobre o novo parque de diversões inaugurado na costa.

— Você já foi? — Sya me encara, devendo estar mais distraída que o normal. — Em um parque desses? Com roda gigante, algodão doce, cachorros quentes de meio metro...

— Não, meus pais não tinham dinheiro. Os circos e zoológicos que passavam na cidade assustavam meu irmão, aí fiquei sem opção.

— Bom, sempre vamos nessas apresentações nos finais do ano, depois das festas. Se quiser ir com a gente...

— Verdade?

— Por que está tão surpresa? — Sorrio.

— Sei lá. Não costumam ligar muito para o que aconteceu comigo.

— Eu não sou assim.

Os olhos dela me examinam com um toque de brincadeira, mas não sabem o quanto estou falando sério. O que quer que tenha acontecido não me importa, e sim aquilo que iremos construir daqui em diante.

O restaurante japonês fica ao lado de uma igreja pouco frequentada na parte sudoeste da cidade. É muito procurado em feriados e domingos, apesar de se tratar apenas de mais um lugar onde fazem e vendem peixe cru. Peço para Chelsea cuidar da caminhonete enquanto chamo alguém para ajudar.

As luzes vermelhas e brancas da entrada mostram um peixe e uma lula brigando em cima do logo do estabelecimento, mas isso não diminui a clientela. Alguns casais, em uma fila imensa, esperam as mesas de dois lugares serem esvaziadas. Os chefes dali cozinham gengibre na chapa na sua frente, além de fritarem polvos e colocá-los no espeto em pleno ar! Bom, história para outro dia.

O gerente do lugar me reconhece e pede para dois seguranças me ajudarem a descarregar o carro. Em poucos minutos os instrumentos estão arrumados no palco. Ganho até uma nota para gastar nas máquinas de doce.

Voltando, Sya está olhando para algo além da rua escura e solitária que nos cerca. Minha visão tenta segui-la, mas o que consigo distinguir é um pombo voando raso para pegar um rato.

Os sinos da igreja marcam nove e meia.

— Chelsea — chamo sua atenção. Ela parece ter saído de um transe. — Ainda viva?

— É, estou.

O silêncio volta a nos envolver. Entrego-a as balas de ursinho enquanto uma ideia mirabolante de fazê-la sorrir passa por minha cabeça. Viro o carro em direção às fazendas e terrenos abandonados do estado. Minha irmã aparenta empalidecer a cada novo quilômetro rodado. A lua é a única que nos segue pelo matagal deserto.

— Aonde iremos?

— Você vai ver.

Depois de meia hora, no mínimo, estaciono entre dois montes batidos de terra. A estrada faz uma curva perto do rochedo onde começa o mar, dando, ainda, à avenida popular do parque. Hoje, no entanto, só quero continuar aqui com ela.

Puxo-a pela mão morro acima. A boca de Chelsea forma um "o" perfeito ao se deparar com a praia deserta coberta por estrelas. O farol é pouco visitado, mas estamos com sorte ao encontrá-lo aceso, rodando sua luz incandescente pelo oceano antigo.

— Uau! — Exclama, uma hora para mim, outra para as conchas brilhantes. — Como você achou?

— Nick, Leo e eu encontramos essa parte perdida do litoral há dois anos, mais ou menos. Trazemos as meninas para cá toda vez que elas pedem. Ou quando queremos um tempo só para a gente.

Tomo fôlego e continuo:

— Há uma escadinha de pedra entre esses morros, mas não é muito segura à noite. O parque fica daqui a uma hora, se quiser se divertir mais um pouco.

Ela sorri daquela maneira única.

— Não. Ficar aqui, olhando o desconhecido, é o bastante.

Sentamos sobre a grama rala que começa a crescer. Meu ombro serve de apoio para a cabeça dela durante o tempo em que admiramos o horizonte prateado, as ondas claras se desmontando na areia e as luzes fortes do farol girando sobre nós. Perdidos do mundo.

— Já percebeu? Que os humanos não sabem de nada? Desconhecemos o universo, os mares, tudo o que nos cerca.

— E daí? — Pergunto, sem entender.

— Seu bobo — Chelsea ri de novo. — É que eles temem o universo das estrelas. Eu temo os universos que encontro nos outros.

Respiro fundo.

— Primeiro se contente em desvendar seu próprio universo, Skyler.

Beijo os nós de seus cabelos. Ela me envolve com os braços e aquele poderia ser o momento mais demorado das nossas vidas.

É estranho o farol estar aceso em plena noite aberta. Parece que alguém sabia quais seriam nossos próximos passos.

— Thomas

Hell Girl | COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora