Primeiro Dia.

27 4 0
                                    

"Porque tudo começa com um começo e todo o começo é o início, eu te desejo o melhor começo neste início que é só teu."

A claridade interferiu com o meu ambiente de sossego enquanto sentia o sono ainda a tomar conta de mim. Deitara-me relativamente tarde ontem, visto que fomos comer a um novo e famoso restaurante aqui em Edimburgo. Pelo menos, novo para mim que nunca vira tal requinte. Subimos para a parte de cima do edifício e sentamo-nos na mesa do meio, enquanto por baixo dos nossos pés jogavam snooker e serviam bebidas.

A comida estava maravilhosa e todo o ambiente de calma e tranquilidade me fazia lembrar Porto, à noite. Depois, fomos ao centro comercial do lado que tinha um Starbucks praticamente colado ao cinema, e pedimos todos uma bebida para acompanhar o filme. Mike prometeu que nos levaria ao cinema noutro dia, visto que perdera a aposta com Troy e tivera de pagar o jantar a todos. Eu não quis interferir com os rituais de rapazes, longe de mim, então simplesmente não interferi e repimpei-me a aproveitar aquele maravilhoso banquete com direito a chocolate quente no fim.

Eram 7h30, pelo menos o despertador marcava essa maldita hora e eu virei-me mais uma vez na cama, à espera para acordar finalmente nas Caldas e ficar a remoer este sonho feliz o resto do dia.

Mas estava mesmo em Edimburgo. Entrará mesmo na universidade. Tivera mesmo o dia espectacular de ontem. Não fora tudo um sonho.

Levantei-me e rodei sobre o meu corpo, a felicidade a tomar conta de mim e uma estúpida dança a celebrar. Retirei então do armário, algumas roupas e dirigi-me à casa de banho para um longo banho. Utilizaria café para me despertar se gostasse, mas sendo assim, espero que o humor que tenho se mantenha intacto.

Uma das melhores técnicas para ganhar autoconfiança, e que me foi ensinada por Mariana, uma grande pessoa da minha turma, foi repetir de manhã para a nossa pessoa, as mais bonitas e verdadeiras frases que existem.

Eu sou fixe.
Eu adoro a minha vida.
Eu não tenho problemas assim tão grandes.
Eu sou feliz.
Eu quero ser feliz.

E estas frases, embora aparentemente ridículas, ajudam mesmo a aumentar a autoestima e mantermo-nos positivos. Porque não é arrogância nem "ser convencida" lutar para gostarmos de nós. É a regra básica da sobrevivência.

- Bom dia. - proferi ao entrar na cozinha e vislumbrar um Troy ensonado a comer uma taça de cereais e uma Anne despenteada, apoiada no balcão a beber de uma chávena fumegante.

- Bom dia Mary. - esta disse, os papos visíveis por baixo dos seus bonitos olhos castanhos.

- A Anne teve um pesadelo. - o rapaz afirma, vendo provavelmente a minha expressão preocupada que é demasiado transparente. - Tem acontecido frequentemente e... - Olha diretamente para ela. - Estamos todos preocupados.

- Não há motivos para isso. - Contra-argumenta enquanto eu retiro do frigorífico um iogurte. Ontem antes de jantar, dirigimo-nos a uma loja "Tudo a uma libra" como existe também em Portugal. Comprei produtos pessoais de higiene e alguma comida para ajudar com as despesas da casa. Se vamos viver em comunidade, todos têm de fazer a sua parte.

Ponho quatro torradas a fazer após levantar o saco de pão integral à jovem e receber um aceno de cabeça como resposta. - Isto vai acabar por passar. - Sussurra, mais para si do que propriamente para nós.

-Espero bem que sim. Se precisares de alguma coisa...

-Obrigada Mary. - Sorri, e sai para provavelmente vestir algo mais do que a simples camisa de noite que trouxera.

-Então... Primeiro dia hã? - este diz após suspirar. - Estás nervosa?

Abano negativamente a cabeça sobre o seu olhar duvidoso e desmancho a farsa em seguida. Quem é que eu quero enganar? Estou aterrorizada.

- Eu também fiquei assim.. E quando descobri que ia partilhar casa com estes idiotas ainda foi pior. - Senta-se para trás, parecendo nostálgico por momentos com a lembrança. - Mas depois entras na rotina. - Levanta-se de e dá-me um beijo na testa. - Vais ver.

O meu coração pára ao sentir o ardor deixado pelos seus lábios. Parece que passou tanto tempo desde que recebi um beijo destes. O beijo na testa é para mim, que sou apologista de significados e símbolos, descrito como uma demonstração de protecção, carinho e segurança. E mesmo que para ele o gesto tenha sido básico e este já seja carinhoso por natureza, a mim chocou-me imenso. Mas acho que ele é mesmo assim. Carinhoso por natureza, e as pessoas com quem me dera antigamente, eram frias por natureza.

As torradas saltaram despertando os meus pensamentos, e prossegui a por fiambre de peru nas mesmas.

- Uh torradas! - Megan exclama, entrando na cozinha com Peter atrás de si, e roubando o pão da pequena Anne, que neste momento já se deve ter esquecido das mesmas. - Obrigada, Mary.

-Hum... De nada. - Peter ri-se e eu acabo as minhas torradas, pensando que tenho de me dirigir a faculdade dentro de momentos com Anne. Tento não ficar nervosa, e escondo ambas as mãos no colo quando estás começam a termer sorrindo para Mike, mesmo não ouvindo nada do que este diz.

- Vamos? - a morena finalmente afirma, aparecendo na porta com o saco ao ombro e eu aceno também, dirigindo me a saída e desejando um bom dia a todos.

Ao caminhar para a faculdade, não posso deixar de reparar na bonita mala que Anne possui e em como tudo em Edimburgo parece mais caro do que realmente é. Faço-lhe um elogio à mala e sou recebida com uma descrição completa da loja onde a comprou e que fica num centro comercial ao pé do centro.

Ela tem um espírito tão jovem que rapidamente ganho uma nova energia para aguentar o dia que se segue, fruto da boa disposição que transporta consigo.

- Este é o meu departamento - diz, parando em frente de um dos blocos. - De certeza que não queres que te leve?

-Não é necessário. - relembro mentalmente, o local onde tenho de parar e consulto mais uma vez o mapa da faculdade para ter a certeza que não me irei perder pelo caminho. - Obrigada na mesma Anne.

-Tem um óptimo dia. - afirma, e rapidamente solta um "Hey" para duas pessoas mais a frente que se dirigem na sua direcção, dando-me a deixa perfeita para me retirar.

Caminho então para o meu departamento, o de Artes, e agarro a mala com força ao ombro, tentando respirar fundo calmamente e lembrando-me de palavra de incentivo, que instintivamente, vou dando a mim própria.

Entro no departamento, e imagens de Shakespeare assim como os irmãos Lumière, e tantos outros aparecem nos meus olhos, cobrindo-os totalmente numa felicidade inesperada.
Caminho pelo corredor com as luzes semi ligadas, esperando que de algum modo alguém apareça e me indique a sala.

Paro então em frente a uma grande porta que espero que conduza ao auditório. O som que vem de dentro são conversas múltiplas, e gargalhadas pelo meio que me fazem suspirar fundo uma última vez.

Então, sem esperar, um rapaz dirige-se a porta olhando para trás e rindo. As suas calças de ganga, a contrastar com uma camisa do Hard Rock branca, e o cabelo castanho levantado para cima são os pormenores que melhor capto, não lhe conseguindo ver a face.
Até que este se vira. E aqueles olhos azuis esbugalham e um sorriso iluminoso aparece, deixando-me ainda mais nervosa.

- És nova aqui certo? - baixo a face. - Sou o Chad. - este aproxima-se, deixando as nossas faces a milímetros de distância e suavemente, deposita dois beijos em símbolo de cumprimento que eu me esforço por retribuir.

-Mary. - digo, olhando para ele, o que parece ser uma eternidade.

Ele é realmente bonito...

Identidade Perdida.Onde histórias criam vida. Descubra agora