"Ter saudades é bom. Significa que viveste algo, sentiste algo, gostaste de algo."
-Já te disse que é o melhor que bebi na vida! - Chad afirma, lambendo o pauzinho que acompanha a bebida que lhe entreguei à momentos. Saímos do café e com uma bebida quente na mão, traçamos o nosso caminho (maior que o necessário) em direcção à faculdade.
-Eu já disse que daqui não levas nada! - repeti, bebendo um golo e passando pelo famoso teatro que a cidade têm e que se encontra no final da rua de residências de intercâmbio. Eu vi-o todos os dias quando estava na excursão do ano passado. - Podes tentar o Peter, talvez o convenças.
- Não me parece. Os meus dotes de persuasão são mais fortes nas raparigas. - trocamos um olhar enquanto ambos bebíamos um golo e eu tomei a liberdade de o quebrar com uma tosse seca. Não percebo estas paragens que me dá... Eu conheço-o há um dia. - Então, ele é teu... Irmão?
-Companheiro de casa. - explico, começando por contar todos os detalhes de todos eles, baseados no pouco que conheço das personalidades. Ele ouviu com atenção, com tanta atenção como se realmente quisesse ouvir. E eu gostei da atenção, porque não era falsa ou forçada.
- Parecem espectaculares. - afirma, e puxa a mala para a frente. Vendo-me erguer o sobrolho, sabe que vai ter de justificar. Não há hipótese. - Eu vou guardar religiosamente esta caneca.
-Devias lava-la primeiro! - exclamo, vendo a porta que nos separa à frente.
-E vou, não se preocupe Madame! - desaceleramos o passo até pararmos ambos, a milímetros dos degraus. - Obrigada pela bebida e companhia...
-Eu é que agradeço. Sentir-me-ia muito sozinha se não fosses tu... - deixo escapar e vejo a expressão surpreendida que adorna os seus bonitos traços. Vou poupar-lhe a história embaraçosa de como quando chegar lá a cima, terei de lidar com a solidão de não estar em Portugal.
Durante o dia, todos tínhamos as nossas rotinas e planos diferentes mas à noite, quando nos sentavamos na mesa de jantar após um longo dia, éramos uma família. Unida e cada um de nós sabia que o jantar era sagrado e único porque era o final de um dia de cansaço, passado no conforto dos mais próximos. - Até amanhã.-Até... Até amanhã Mary. - o moreno diz, acenando-me e sorrindo fraco.
Subo para o andar de cima, consciente de que me encontro com um sorriso parvo na cara. Sorriso este que gosto de possuir mas que me assusta ao mesmo tempo.- Ninguém me quer ajudar com as batatas? Não? Okay.
- Se queimas esse cozinhado, eu mato-te. - Troy ameaça, com uma espátula da cozinha na mão.
- Matas nada. - Anne contrapõe com um sorriso trocista. - Já pensaste como seria se tivesses de mudar de pais?
- Não, nunca ponderei muito isso. Acho que precisava de um grande par de bolas!
-Troy!!
-É verdade! - este ergue as mãos no ar e dirige-se ao lado da morena, colocando um pouco de sal nos bifes. Eu dou um passo em frente pensando em ajudar com o jantar mas paro quando oiço a resposta da morena. - Ela teve de ter muita coragem.
- Completamente. Deixar a família, os amigos, assim... Parece loucura.
Viro para o quarto e fecho o mesmo encostando-me na porta por momentos. Dirijo-me à mala de ombro, com a lembrança da prenda que João me deu. Vasculho por momentos, o pânico de ter perdido algo tão importante a despertar em mim. E voilá, ali está ela e todas as memórias que a acompanham. Colo imediatamente a fotografia na parede em cima da secretária. Quero olhar para eles enquanto estudo. Relembrar-me que estou aqui a lutar por mim mas que eles estão lá a torcer por mim.
E quando me sento na cama, joelhos encostados a barriga e mãos a fazer pressão, penso o quão realmente me encontro sozinha. Eu sabia que estar sozinha ia levar a que todos os assuntos que tentei evitar todo o dia viessem ao de cima realmente é por mais que queira evitar, agora é impossível. Relembro os jantares de família onde contávamos como tinha sido o dia e maioritariamente, os treinos no clube de ginástica dos meus pais, relembro o olhar cansado do meu pai, o sorriso da minha mãe e os olhares do meu irmão. Relembro a maneira como a minha irmã desabafava os problemas e perguntava o tipo de carne que estávamos a ingerir. Relembro as conversas noturnas antes de adormecermos, e os bons dias ensonados. Relembro as ruas das Caldas e como Edimburgo é tão diferente e penso no clima onde não era necessário usar colãs por baixo das calças para suportar o frio.
A primeira lágrima faz o seu caminho até ao colchão e mais umas quantas se seguem que não consigo controlar. A minha sensibilidade vem ao de cima sempre nas piores alturas e tenho mais consciência disso agora, do que nunca.Batem a porta e eu limpo rapidamente com a manga da camisola o estado lastimável em que provavelmente se encontra a minha cara e pronuncio um leve "entre" com o meu inglês imperfeito.
- Mary, queríamos saber se estás pronta para jantar? - Anne pergunta com uma voz carinhosa e entra, fechando a porta em seguida.
- Oh... - saio da posição em que me encontrava e ajeito as calças de uma maneira desconfortável, percebendo que esta olha fixamente para a minha face.- Estou pronta sim.
- Senta-te. - ordena calmamente e senta-se em seguida. - Ouviste a nossa conversa não foi? - imediatamente aceno com a cabeça e as lágrimas correm novamente. - Mary, desculpa! - abraça-me e eu não a afasto porque
estava a precisar de um abraço.- Está tudo bem. - a frase sai cortada e com respirações descontroladas, o que é irónico enquanto atriz. - É só um ataque de nostalgia.
- Eu... - a porta é aberta e Troy entra com a travessa na mão, seguindo-lhe todos os os nossos companheiros de casa e montando a mesa de jantar na minha secretária.
-Não conseguimos deixar de ouvir. - Megan afirma, e senta-se no chão à frente da cama.
- Não precisas de passar por isto sozinha. - Mike passa-me um prato e talheres, sentando-se por trás de mim e encostando-se a cabeceira da cama. Quero mandá-los a todos de volta para a cozinha mas não sou capaz.
- Pessoal, eu estou bem a sério...
- E ainda vais ficar melhor, tens de provar esse molho especial. - Peter entusiasticamente, aponta para o meu prato enquanto os olhos brilham como uma criança. - Fui eu que fiz!
- Com muita ajuda. - Susan passa-me um copo com água. - Isto é um novo começo Mary.
- Connosco. - Anne fala, colocando a mão na minha perna em sinal de carinho.
- Convosco. - confirmo, olhando para todos.
Com eles.
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Identidade Perdida.
Teen FictionQuando Mary é forçada a fazer uma mudança, tudo o que parecia certo na sua vida deixa de existir. Os amigos que conhecia, a casa que frequentava, a família que tinha e ainda por cima, é o primeiro ano de faculdade não só numa cidade mas num país dif...