Recuperação.

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Como é que pudemos ser tão tapados?
Olhando para trás, desde que conheço a rapariga ela sempre teve uma tendência para rejeitar comida ou ponderar tudo aquilo que iria ingerir. As diversas vezes que a via analizar os rótulos, as mudanças de humor súbitas, todos os momentos em que saltava refeições, o excessivo ingerir de água... Estava tudo culminado nisto... Nesta doença que cada vez mais é uma realidade na vida de tantas pessoas.

- Temos de fazer alguma coisa! - Peter grita e as duas raparigas entram avisando que se encontra tudo no carro. Este ambiente começa a ser demasiado claustrofóbico para mim mas esforço-me por respirar fundo e tentar manter-me racional, sabendo que Anne precisa de ajuda neste momento.

- Troy , consegues leva-la até ao carro? - pergunto e este parece não me ouvir. - Troy !

-Hum? - este olha para mim por momentos, face miserável, lágrimas a escorrerem e uma angústia constante no olhar. Como pude deixar isto chegar a este nível? - Ah... Sim, acho que sim.. Acho que... sim. - o seu olhar dirigiu-se novamente para a rapariga.

- Vamos todos para o hospital? - Susan perguntou, a única que conseguiu perceber que não cabiamos todos no carro.

- Pensamos nisso lá fora, pode ser?! - Mike, em pânico, pediu. - Vou buscar um saco de plástico.

- Vamos sair daqui, sim. - um a um, começamos a abandonar o local. Troy ergueu a pequena rapariga nos seus braços. A sua face tão pálida, o corpo tão frágil e de certo os ossos a saírem por trás das calças e camisolas largas. Também o jovem parecia derrotado por dentro, eu sabia que nada poderia apagar o sentimento que neste momento ele nutria e por isso simplesmente me limitava a lamentar o que se passava.
Ao fundo, numa mesa abrigada conseguia ver Chad, Rubby, Rob e Michelle. Todos sorriam e mostravam expressões satisfatórias.
O grupo de teatro lembrava-me o início deste jantar que nunca esperamos que fosse terminar desta maneira.
Ele estava lindo. Sei que não deveria reparar neste momento, no entanto não consigo deixar de o fazer. Uma camisola de padrão ocupa a parte de cima do seu corpo, calças de ganga a parte de baixo. Cabelo espetado para cima no seu penteado habitual, sorriso constante nos lábios.
Ele é espantosamente bonito e nada pode mudar isso.

Dirijo-me ao balcão, em parte por me sentir mal por toda a confusão e pedir desculpa, por outro lado por esperar que me veja e venha dar uma palavra de conforto.
Ver a rapariga de olhos claros naquele estado fez-me recordar a maneira como me encontrava há poucos meses atrás. Sinto-me invadida por uma nostalgia maldita, quero que ela vá embora mas sou confrontada com tantas imagens.

As pessoas falam deste tipo de doenças com tanta banalidade que chega a ser ridículo. A parte física é o menos, uma vez que seja qual for o peso, o indivíduo acredita piamente que não se encontra num estado agradável. O pior mesmo é o psicológico, que influência toda esta atitude...
Ela tem de ficar boa e não vai ser uma luta nada fácil.

- Por aqui? - é ele, sinto o cheiro, a voz é inconfundível. O que raio se passa comigo? Viro-me para o encarar e abro a boca, esperando que as palavras saiam mas sem efeito.

- Viemos... Hum, viemos jantar, e... Desculpa mas eu tenho de ir. - Não posso depender dele. Nem pedir a sua ajuda ou compreensão neste assunto. Ele não tem de se envolver na minha vida desta maneira quando mal nos conhecemos.

- Mary...- agarra-me no braço e sinto a face a escaldar de repente. Não, isto não pode estar a acontecer. - Está tudo bem?

-Tenho mesmo de ir... - afirmo e liberto-me, caminhando para a saída e respirando fundo.

(...)

- Como é que ela está? - pergunto, quando vejo o médico aproximar-se.

- Fizemos-lhe uma lavagem ao estômago. - ela não parou de vomitar todo o caminho, admira-me que ainda tenha algo no estômago. - Perdeu muitos fluidos e encontra-se a soro neste momento. Não há maneira fácil de dizer isto...

- Fale Doutor, diga de uma vez. - Troy pede e Peter aperta-lhe o ombro. Também este não parou de chorar todo o caminho, acho que estamos todos na mesma situação.

- Recomendei-lhe um psicólogo e um psiquiatra... - oh não, não o diga... - Anorexia nervosa... Está pior do que pensávamos...

- Vai fazer agora os exames certo? - pergunto, sabendo os procedimentos de cor. - Pesar e passar a justificação de faltas posteriormente.

- Se estiver tudo certo, é só uma questão de tempo até puder ter alta. - este responde quase automaticamente, mas com um olhar desconfiado.

Afasto-me e respiro fundo para evitar que as lágrimas caiam. Contudo, não é possível e ao sentir uma mão no meu ombro, sacudo o corpo bruscamente e oiço a respiração pesada de Peter e a pergunta que se encontra na sua mente. "O que tens miúda?"

- Preciso de estar sozinha - peço automaticamente e caminho para a saída.

Não pretendo deixar a jovem de olhos claros desamparada, quero apenas aclarar as ideias para puder ser racional neste momento. O stress tem estado a tomar conta do meu corpo e não confio em ninguém o suficiente para desabafar sobre o que me vai na mente.
Preciso do João, do Guilherme... Preciso de alguém que me compreenda sem que eu tenha de alongar demasiado o discurso.

O vento entranha-se nos meus poros e eu sinto-me imediatamente a tremer. Aperto a roupa do corpo e penso em dirigir para casa mas viro para o caminho inverso.
A minha casa seria o local mais óbvio para me procurarem. E eu não quero ser procurada. E muito menos encontrada.

Vejo os portões a poucos metros e respiro fundo.
O porteiro não faz questões e eu não me detenho muito tempo a observa-lo.
Vou para a última porta, o caminho estranhamente desenhado na minha mente. A porta encontra-se entreaberta e não posso deixar de pensar que é ajuda divina.

Fecho a mesma por trás de mim e percorro com a vista todo o perímetro possível.
Está sujo, desarrumado, confuso. Está exatamente como eu me sinto neste momento.

Sento-me a um canto e junto os joelhos ao peito. Está escuro demais e bato num instrumento ao enrolar os mesmos.
Não me importo com a dor e parece que tive o incentivo necessário para deixar as lágrimas escorrerem.

E subitamente, ao sentir alguém a bater a porta, grito de raiva e bato no chão, fazendo a mão sangrar com o impacto.

Levanto-me, consciente que este esconderijo, vai deixar de ser algo secreto e vou a porta para encontrar a última pessoa que queria ver neste momento.

-Posso entrar?

Identidade Perdida.Onde histórias criam vida. Descubra agora