Desilusão.

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- Sim, claro... - digo ignorando o escaldar do café na minha mão e esperando que a conversa não se alongue demasiado. - Que contas?

Não é que não goste de Maria, apenas não é a altura adequada para ter uma amigável conversa.

- Ah não é nada de especial, até porque sei que deves ter mais que fazer mas era só para te dizer que a sala de música está demasiado desarrumada neste momento. Uma limpeza a três seria o mais justo...

Desculpa? A minha cabeça parecia que tinha levado um abanão, e recusava-me a acreditar naquilo que esta dissera. Como é que ela sabe da existência daquela sala? E como é que Chad foi capaz de revelar aquele local?
Não é que fosse exclusivo de quem quer que seja, mas sinto-me um tanto possessiva quando se trata de algo tão especial. Depois da noite de ontem, quis mesmo acreditar que ele estava a ser sincero quando disse que não entregaria a ninguém este segredo.

-Como é que tu..?

- Foi Chad. - Autch- Levou-me lá está madrugada, pediu que não falasse deste lugar a ninguém... Mas foi tão querido!

Parece mentira mas esforço-me por dizer algo, tentar demonstrar que não me afetou aquela oferta simpática nem a explicação.

- Podemos tratar disso sim, mas primeiro temos de arranjar uma chave. - afirmei e tentei ser o mais verdadeira possível, escondendo no entanto os meus verdadeiros sentimentos.

- Eu posso fazer isso. Vocês os dois não se preocupem com nada. - sorrindo, saiu do meu campo de visão achando que está descoberta nos iria aproximar aos três.
O que, na minha opinião, é muito pouco provável.
Não posso voltar a confiar no rapaz e quando no relógio, a marcação das 10:30 se procede, bebo um golo do meu café e atiro o segundo para o lixo, virando as costas aquele lugar.

Dirijo-me para a sala de teatro, entro e sento-me no fundo do palco. Olho para a imagem que se estende à minha frente. Cadeiras, vermelhas, e cada uma delas com dois apoios para os braços. Eu quero mais do que um palco, mas por enquanto, chega-me saber que estou a tirar um curso que me levará a algum lugar e a investir na minha formação como é necessário. Mesmo sabendo que não quero ficar por aqui.

- Já te disse para não me voltares a ligar! Mas... Não... Não tenho saudades... Olha... Eu... Eu... Esquece... - uma voz rouca, irritada e profunda fala para uma entidade desconhecida e eu levanto-me num ápice para sair daquele local antes da minha presença ser descoberta.

Mas atirando um cenário ao chão pela minha distracção habitual, faço um estrondo que deve ser audível nas próximas salas e faço um rapaz de cabelo castanho e olhos azuis entrar à pressa no palco para ver quem era.

- O que é que estás aqui a fazer? - atira, numa olhar zangado que eu não fiz nada para provocar. Excepto talvez, estar a ouvir uma conversa que não me diz respeito.

- Eu estava já de saída... Mas se queres que te diga, acho que não te fica bem falares assim com alguém que não te fez nada. - Caminho para a porta e olho para a sua cara ofendida com pena. Como é que alguém pode ser tão desprezível? - Tem um bom dia.

Sinto o braço a ser agarrado e tenho o reflexo de o sacudir para o lado, fazendo-o recuar um passo e um confronto inevitável servir.

- Desculpa... - acaba por pedir e olha para baixo. - Não é nada contigo, a sério.

- Já deu para perceber que não estás bem... - afirmei, sabendo que as pessoas reagem de acordo com elas próprias e não com os demais envolventes. - Se quiseres falar...

- É uma longa história... - argumentou, o que normalmente é código para : não te conheço de lado nenhum e não pretendo contar-te a minha vida pessoal. E por isso, acenei afirmativamente um tanto desiludida porque sempre quis ajudar as pessoas à minha volta, mesmo não conhecendo este rapaz e preparei-me para sair.

- Eu compreendo...

- Mas se estiveres bem acordada... - pela primeira vez vi o seu sorriso, pequeno mas genuíno e fiz sinal para que ambos nos sentarmos.

Não consigo relatar todos os pormenores daquela história uma vez que remete para anos passados e experiências vividas. Mas problemas familiares.

Acho que é completamente injusto quando o ambiente familiar não é o mais propício para um indivíduo se desenvolver em perfeita harmonia. Claro está que também pode ser o indivíduo a criar esse ambiente desfavorável na sua cabeça...

Neste caso não foi assim. Ele sempre sentiu que não fazia parte de lado nenhum, vivendo na sombra de um pai popular e uma mãe inteligente. Não desenvolveu as suas capacidades comunicativas de modo a conseguir expandir a sua própria personalidade enquanto novo.

O telefonema era para o pai. A relação costumava ser melhor mas... As coisas mudaram, os anos passaram.

- Eu acho que a culpa não foi tua. Foi tudo um comportamento inconsciente entendes? - estávamos sentados no meio do palco, uma caixa de uvas no meio e as malas ao nosso lado. - Tu não sabias que te estavas a anular aos poucos e poucos, assim não podes culpabilizar-te por quereres dar-lhes espaço para serem felizes e alimentares-te dessa felicidade.

- Talvez tenhas razão... - afirmou, retirando uma uva, mas não me deixando completamente satisfeita com a resposta.

- E aqui, a falares comigo, estás a ser tu próprio não é verdade? E isso não é mais valioso do que as aparências?

- Parece que tinhas isto ensaiado... - gozou, rindo para baixo e fazendo-me empurra-lo para o lado. - Chamo-me Will, já agora.

- Mary. - e num clima de confissão e cumplicidade, entra alguém num estado furioso empurrando a porta e fazendo-nos a ambos levantar a pressa.

- O que raio estás a fazer?

Oh Deus...

Identidade Perdida.Onde histórias criam vida. Descubra agora