8- Odeio você.

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Os lábios dele tinham gosto de menta irritantemente delicioso. Queria parar. Empurrá-lo para longe de mim. Mas seu braço forte enrolado na minha cintura não me deixou lutar. Ou talvez, servissem como a desculpa perfeita para que não o fizesse. Deixei meus dedos deslizarem pelas suas costas, os fincando em sua carne cada vez que ele puxava meu cabelo para comandar a dança entre nossos lábios.

A corrente elétrica de seu toque percorrendo minhas veias incomodava. Mas era inevitável. Diferente da pouca experiência que provei. No entanto, um minuto flutuando em dimensões inexploradas e em outro, lábios molhados ansiando por mais. Abracei meu corpo meio que me protegendo do frio, meio que com vergonha do que havia rolado. Cadê ele?

Ouvi um instalar de interruptor e as luzes se acenderam. A claridade me cegou por um instante. Depois revelaram Vicente em pé ao lado do interruptor. Recompus-me rapidamente tentando não deixar na cara o nervosismo, a surpresa. Falhei.

Esperava qualquer coisa dele menos esse sorriso idiota percorrendo o seu rosto. Talvez tivesse se dado conta do que acabou de fazer enquanto namora Rebeca. Afinal, ele com certeza namora ela. Mas sinceramente, esse peso na consciência não o pertence. Ele me parece um caçador feliz ao se deparar com sua presa. E nesse caso eu sou a presa. Odiei.

- Você é boa- ele falou ainda me encarando- Quer dizer, para o povo do interior. Certinha. Dá para o gasto.

Eu ouvi isso? Não sou uma mercadoria barata que ele pode beijar se esfregar e depois esnobar. Meus pensamentos quase me fizeram chorar. Não esperava nenhuma declaração de amor depois de um beijo fogoso e sem importância, mas o corpo dele reagiu. Não reagiu? Não sentiu? Um balde de água fria no que seja lá que senti.

Soltei uma risada engasgada quase choramingando, mas resisti.

- Por que me beijou se me odeia?

- Porque você queria ser beijada. E não. Eu não te odeio.

Quis chorar outra vez pela minha impotência e ele percebeu.

- Se eu te odiasse não teria te dado o que você queria.

Deslizei a mão no cabelo incrédula. Quaisquer resquícios de outro sentimento que não fosse raiva por ele desapareceram. Era impossível esse impotente ser filho do dono da Heim. Ele não sabe nada de mim. Nunca saberá. Porque meu mundo é diferente, nossas ilusões são distintas. E quando ele olha para mim e ousa falar que sabe o que eu quero. O que desejo. Ele alimenta minha raiva.

- Você não olha mais para mim. Não toca mais em mim. Não se dirija a mim.

Dei as costas para ele e forcei meus pés a irem até a porta.

- Como vamos trabalhar? - ele riu.

- Com você, não vamos.

Fechei a porta atrás de mim tentando não chamar atenção de ninguém e percorri o corredor vazio dando de cara com a secretária. Ela me olhou de cima abaixo antes de estender alguns papéis em minha direção. Recusei. Não vou trabalhar na Heim. Não vou ter a oportunidade de complementar o meu currículo, de trabalhar com os melhores, de garantir uma vaga futura. Tudo por causa dele. Nunca senti tanto ódio de alguém em tão pouco tempo.

O ônibus não demorou a passar. Sentei numa cadeira ao lado da janela e deixei minha cabeça descansar de encontro ao vidro. Os prédios eram belos, as árvores davam o ar da graça a uma selva arrogante que eu mesma acabei de provar. Um beijo pode ser só um beijo para muitas pessoas, mas não deixa de simbolizar um contato físico diferente. Capaz de transbordar sentimentos além da carne ou apenas nela. De qualquer maneira é forte e envolvente podendo causar danos.

Enquanto meus olhos vagavam sem foco pelas ruas da zona sul, um grafite passou tão rápido que fiquei em duvida se havia lido corretamente. Mas minha mente não me enganaria. Lá estava em letras artísticas incomuns "Ilhas de Ilusões". Logo em um outdoor que tinha como fundo uma gigantesca favela.

***

O quarto do alojamento estava vazio. A cama de Letícia bagunçada como sempre e a minha parecia chamar:

"Venha Mayara, deite sobre mim o dia inteiro e deixe cair suas lágrimas sob o meu lençol que eu não me importo."

Teria cedido, se eu não tivesse aula. Sentei em frente ao espelho de Let e meu rosto demonstrou a realidade que tentara fugir. Por mais que tivesse lutado algumas lágrimas desceram. Uma base sem tampa dava mole em cima da mesinha, peguei-a e apliquei sobre as bolsas pretas embaixo dos olhos. Tapinhas de leve no rosto e eu já não estava com cara de choro.

Com as alças da mochila caindo dos meus ombros, saí correndo escadas acima para chegar no horário. Detesto estar atrasada, mas fazer o que se o polo de arquitetura é longe pra caramba. Percorri o corredor rapidamente e infelizmente meus olhos embarraram com os dela. Rebeca.

A íris cor de azul claríssimo com certeza apaixona muita gente, mas a mim causa ânsia de vômito. Tratei de tirar os olhos da cobra e entrei na sala sem professor ainda.

Horas mais tarde, doutor Carlos nos liberou. A faculdade estava praticamente vazia quando meu celular vibrou. Era Let me convidando para sair. Eu iria recusar, no momento em que ela falou que Lúcia daria uma pequena social no quarto ao lado. Poderia ser mentira, mas também poderia ser verdade. Melhor não arriscar.

O ambiente era tipicamente boêmio e universitário. Sim. Só havia alunos naquele lugar.

- May!- disse Letícia acenando para que eu a localizasse do lado das mesas de sinuca ao fundo bar. Maria se sentava ao lado dela sorrindo para mim.

As duas se levantaram me cumprimentando e fazendo com que eu sentasse à mesa junto a elas. Pedimos uma cerveja para três e eu quase coloquei tudo para fora com apenas um gole. Aquilo era muito ruim, mas as meninas pareciam apreciar.

Elas riram da minha cara de nojo e Let pediu uma Skol beats. Distraída com a bebida e o bar barulhento, Maria nos contava detalhes sobre a última noite dela sem a mínima vergonha. Por um momento me peguei com a bochecha vermelha por ela. Mas as duas lidavam com aquilo muito bem enquanto eu ria daqueles pensamentos obscenos. Eu era verdadeiramente inocente.

Mas de repente elas pararam de falar e encanaram sorrisos bobos vazios. Olhei por trás dos ombros e encontrei os motivos. Fechei a cara na hora voltando a olhar para meninas. Eles não devem estar ali para juntar-se a nós. Pelo menos eu rezava por isso.

- Oi meninas- disse Marcelo de forma educada na ponta da nossa mesa.

- Oi- elas responderam em corinho. Let não fez questão nenhuma de pesar o olhar para a companhia de Marcelo. Eu estaria sendo muito cega se não visse o mega interesse dela surgindo ali. Permaneci quieta.

Vicente encarou meus olhos e pousou o olhar por um momento como se estivesse me identificando. Depois encarou as meninas, abriu o maior sorriso e as cumprimentou como um galã. Que nojo dessa hipocrisia.

- Você está bem Mayara?- Marcelo apoiou a mão no meu ombro com olhar preocupado e Vicente o encarou juntando as sobrancelhas. Ele não esperava que conhecesse um homem bonito como aquele ne.

- Hum. Estou bem. Tenho um trabalho para terminar acho que vou indo- disse buscando pela minha mochila e levantando.

- Você não pode voltar sozinha essa hora- ele retrucou.

- É verdade amiga. Deixa isso para amanhã- disse Letícia.

- É vai. Só hoje- reafirmou Maria.

- Não dá- disse passando o olhar por Vicente.

- Então eu te acompanho. Sozinha essa hora no Fundão é perigoso- Marcelo falou pegando minha mochila.

- Acho melhor ela ficar- Vicente interferiu pela primeira vez- A gente não veio jogar sinuca?

Letícia foi a primeira a concordar e Vicente foi comprar as fichas da mesa. Tentei ir embora sozinha, mas ninguém deixou. Era perigoso voltar por minha conta. Só não era pior ficar aqui na presença dele.

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