9- Beijos comprometem a razão.

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Coloquei minha mochila apoiada no ombro da cadeira e me sentei novamente tentando não soar tão insatisfeita quanto estava. Marcelo sentou ao meu lado e para minha surpresa pediu um cerveja sinalizando que continuaria na mesa junto a mim e Maria.

Let e Vicente pegaram as fichas no balcão e escolheram a mesa de sinuca de frente a nós para jogar. Marcelo puxou uma conversa perguntando como foi na empresa Heim hoje e tive que inventar uma mentira do tipo "eles falaram que talvez liguem". Ele e Maria me olharam com pena como se soubesse que nunca ligariam. Mal imaginavam que o culpado de verdade estava escolhendo os tacos junto a Letícia. Inclusive, os dois pareciam rir de alguma coisa que só eles entendiam. Enturmados. Observei.

- Não vão jogar?- questionou Vicente nos encarando.

- Talvez mais tarde- Marcelo foi o único a responder.

Vicente pareceu ponderar a resposta observando o amigo e em seguida a mim. Mas logo voltou à atenção a Letícia que arrumava as bolas sob a mesa verde. Maria tomou o último gole da cerveja e começou a rir da falta de habilidade de Letícia em organizar as bolas. Mas ela tinha a Vicente. Que correu para ajudá-la. Eca.

- Mayara. Acabei de ter uma ótima ideia para te ajudar. O Vicente é filho do dono da Heim, ou seja...

- Ah, não precisa- o interrompi prevendo seu pensamento- Obrigada, de qualquer forma.

Maria mexeu no piercing sem entender minha resposta e Marcelo falou:

- Pensei que realmente quisesse trabalhar lá.

- Acho melhor me dedicar aos estudos no momento. Mais tarde eu faço estágio.

Ninguém questionou, mas com certeza me julgaram em pensamentos por recusar a oportunidade. Felizmente Maria jogou uma piada no ar e todos nós rimos esquecendo o assunto. Enquanto conversávamos sobre a faculdade na mesa, Let não parava de gargalha com as bobeiras que Vicente fazia ao acertar a bola no buraco. Revirei os olhos.

Maria acabou por encontrar o garoto do qual ela estava falando com a gente horas antes e foram embora juntos. Não pude deixar de rir com o pensamento dos dois... Fazendo o que ela falou que eles fizeram.

- Quando você sorri fica ainda mais linda. Como pode?- Marcelo sussurrou perto do meu rosto me despertando do meu devaneio.

Ele é realmente muito bonito e se eu fosse uma menina normal estaria derretida. Mas ao invés disso me assustei e olhei para a mesa de sinuca. Vicente tinha acabado de acertar mais uma bola e comemorava com um soco no ar quando me viu próximo ao rosto do Marcelo. Seu sorriso deu uma muchada ou foi impressão?

Vi-o jogando o taco na mesa, vindo à nossa direção e como num filme de ação não pude pensar duas vezes antes de fazer o que fiz. Se pensasse não faria. Então eu beijei o belo homem na minha frente.

Marcelo reagiu com susto sem esperar aquilo. Nem eu esperava. Ele apoiou as mãos nas minhas bochechas já com os olhos fechados e eu notei que mantinha os meus abertos. A última imagem que vi antes da escuridão foi Vicente chegando a nossa mesa.

- Oh casal- era a voz dele.

A mesa mexeu ao nosso lado e desgrudei meus lábios de Marcelo. Nervosa. Ele se distanciou relutante e encarou o amigo.

- Po, vocês não vão jogar nem uma rodada? Vamos começar um novo jogo agora- ele se apoiava sobre a mesa realçando os dois braços.

- Ah Vicente! Depois dessa eu te mato- por um instante pensei que Marcelo falasse sério, mas ele riu. Alívio.

- Vocês dois hein- Letícia apoiou-se no taco rindo- E isso é porque a Mayara disse ontem...

- Let!- a repreendi.

- O que ela disse?- Vicente perguntou passando a mão pela cintura da minha amiga e a puxando junto a si.

- Nada- respondi.

- Vamos jogar então May?- Marcelo propôs.

Concordei com a cabeça. Eu certamente estaria morrendo de vergonha senão fosse a presença do outro agarrando a Let. Mas para sobrepor esse sentimento tinha a raiva, o ódio, a mágoa e tantos outros sentimentos que ele despertava.

Dividimos-nos em dois times. Eu e Marcelo, Let e Vicente. Durante toda a minha vida só joguei sinuca uma vez e foi um dos piores dias dela. Eu tinha catorze anos e fui acompanhada do meu pai e minha tia a um bar considerado famoso na minha cidade por ter mesas profissionais de sinuca.

Lembro-me do meu pai estar alegre, comprando guloseimas para mim e pagando bebidas para os amigos. Eu por minha vez ficava boba da vida e entrei no jogo de sinuca com os adultos. Meu pai foi me instruindo e nossa dupla venceu a da minha tia e meu primo. Tudo parecia festa e alegria, mas ninguém imaginava ser uma despedida.

Depois da festa, ele sumiu deixando um breve bilhete para nos poupar preocupações. Fui do amor à raiva pelo meu pai depois daquele dia.

Era a minha jogada. Posicionei o taco na mesa sem jeito e Marcelo veio ao meu socorro. Ele encaixou o corpo no meu me causando calafrios e ajeitou a posição do taco sem deixar transparecer nenhum tipo de maldade. Ele tinha essência boa. Quase um príncipe. Mas o sapo do outro lado da mesa tinha o poder de minar tudo. De apagar o brilho das pessoas. Mesmo que tivesse bem posicionado eu errei e nossa dupla inimiga comemorou.

Por fim, perdemos para Let e Vicente. Por pouco. Mas perdemos.

Peguei minha mochila, o celular e eram quase onze da noite. Os homens insistiram em pagar a conta enquanto eu e Let esperávamos do lado de fora do bar.

- Meu Deus May! Ele é maravilhosamente gato.

- Quem?

- O Vicente. Claro! Assim, o Marcelo também. Mas o Vicente supera- disse abanando o próprio rosto.

Ela tinha razão. Mas ela não podia gostar dele. Não podia gostar. Simplesmente não podia porque ele não presta!

- Ele me parece muito arrogante e acho que tem namorada.

- Oi?  Ele tem namorada? Não parece. E ele foi gente boa com todo Mundo.

Apenas concordei. Não queria discutir. De fato o Vicente tem muitas facetas. Comigo ele gosta de usar a mais cruel e arrogante. Já com Letícia ele usou a de fofo? É isso mesmo? Ah, e com Rebeca o de namorado fiel. Deu até pena da vaca. Só que não.

- Então vamos embora meninas?- Marcelo indagou chegando ao meu lado.

Concordei na mesma hora.

- Vou pegar meu carro- disse Vicente.

-Sem chance de eu ir embora com você depois de ter bebido-falei deixando Let boquiaberta.

- Eu te acompanho no ônibus até em casa- sugeriu Marcelo- Todos nós bebemos ne.

- Não. Você não vai com ela até o alojamento- Vicente falou com um tom alterado.

Todos o encararam incrédulos com a firmeza de suas palavras. Pode ter sido impressão minha ou ele foi extremamente possessivo.

- Quer dizer- ele se corrigiu- Eu vou junto com vocês em caso de qualquer coisa.

Soltamos um suspiro aliviado e Marcelo riu.

- Você andando de ônibus? Acho que nunca vi isso- caçou do amigo.

Caminhamos até o ponto apenas eu e Marcelo visto que Let e Vicente pararam mais atrás para "conversar". O flash que cisma em permanecer na minha cabeça é o dele deslizando as mãos pela cintura dela segurando seus cabelos e tascando um beijo na sua boca. Exatamente do mesmo jeito que fizemos hoje de manhã. Não deveria incomodar. Mas aquilo feriu bastante porque em seguida do beijo ele foi gentil com ela.

Marcelo, coitado. Continuava a falar alguma coisa comigo enquanto eu remoía a cena e ainda via mais ao vivo por cima do ombro dele. Para mantê-lo quieto me aproximei de seus lábios e ele encontrou os meus. Infelizmente, de novo, só pude pensar no casal que se beijava atrás de nós.

Ao chegar ao alojamento os dois nos deixaram. Em nenhum momento eu troquei alguma palavra com Vicente. Afinal, quem era ele para me despedaçar em um dia só. Meu pai pelo menos tem meu sangue para ter feito isso. Não sei o que é pior.

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