Descobertas

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Após uma peregrinação por farmácias e supermercados fomos para Olaria no carro de Sandra levando alimentos não perecíveis, artigos de higiene, produtos de limpeza para casa, algodão, gaze, cotonetes, esparadrapos... Compramos ainda um presente para Marinalva e outro para Assis. Como não sabíamos nada sobre os velhinhos montamos kits para banho de forma bem neutra para não cairmos no estereótipo de coisa de mulher ou de homem. Chegando na casa fomos muito bem recebidas

Dona Marinalva era uma senhora de exatos 80 anos, morena, cabelos curtos e levemente encaracolados, apesar da idade, pouquíssimos brancos. Magra, da altura de Camz, dona de seios fartos e de ventre um pouco avantajado. Seu sorriso expressava pura simpatia e os olhos negros, como pequenas jabuticabas, eram vivos e alegres. Assis era um rapaz negro, de 23 anos, da minha altura, cabeça raspada e dono de um cativante sorriso. Estudava enfermagem na UFRJ e tratava as pessoas com muito carinho. Em ambos, podia-se sentir a presença de Deus, como se possuíssem um perfume que a tudo impregnava com deliciosa essência.

A casa em que viviam era pequena. Havia cinco cômodos, dois quartos, sala, cozinha e banheiro, decorados com bom gosto e simplicidade. A outra casa nos fundos era bem maior e possuía cozinha, um banheiro e três grandes quartos, onde em cada qual ficavam cinco velhinhos. Como uma espécie de anexo havia ainda outro quarto, onde dormiam duas velhinhas que usavam cadeiras de rodas. A maioria deles era constituída por mulheres: doze.

Ajudamos nos preparativos da ceia e Camz e eu aprendemos com Assis a tratar dos velhinhos que precisavam de cuidados especiais. Eles tinham o mesmo olhar triste e perdido que as crianças dos orfanatos têm, mas há uma dor a mais, porque se vêem sem perspectiva melhor que a morte. Fizemos umas brincadeiras para descontrair, Sandra mostrou um lado dela que nem conhecia, e posso dizer que foi um belo natal onde todas nos sentimos úteis.

Fomos embora às 2:00h, e dona Marinalva nos convidou para voltar quando quiséssemos. Uma das senhoras de cadeira de rodas, dona Célia, nos pediu para ver a árvore de natal flutuante da Lagoa e marcamos de levá-la na tarde do próprio dia 25. Assis disse que dona Marinalva poderia ir conosco, pois ele cuidaria de tudo em sua ausência, e ela aceitou a idéia.

Sandra empurrava a cadeira de rodas de dona Célia e ouvia suas histórias sobre o Rio na década de quarenta. Ela havia sido dançarina de cabarés, e contava coisas interessantíssimas. Camz as acompanhava de perto. A tarde começava a dar lugar a noite. Dona Marinalva e eu estávamos sentadas em um quiosque.

- Vocês são ótimas! Ontem encheram nossa casa de luz e hoje estão aqui mostrando a árvore a Célia. Ela estava louca pra vê-la! – olhava para mim – Quase nunca passeia e deve estar se sentindo nas nuvens.

- Sua casa já tem luz suficiente! A senhora e Assis são pessoas incríveis. A gente se sente bem só de estar perto dos dois. – sorri – Sem contar de que nos aceitaram muito bem.

Ela entendeu sobre o que eu falava.

- Aceitar? Que são vocês senão mulheres que só fazem amar o ser feminino?

"Essa foi a definição mais romântica que já ouvi sobre ser lésbica!"

- E Assis... Aprendi muito com aquele menino. – sorriu – Eu o peguei pra criar quando tinha seis anos. A mãe dele não podia criá-lo e me "deu" – fez aspas com os dedos – e ele sempre foi abençoado. Bom filho, bom amigo, bom aluno. Não é desse tipinho de homem que se vê por aí, que só pensa em sexo, bebedeira e futebol. A mentalidade dele é evoluída demais! Não tem vícios, não vive em farras, sua vida é cuidar dos outros e ele gosta disso. Diz que sua missão é servir. – balançou a cabeça – Às vezes acho que ele é um anjo que Deus enviou pra cuidar dos velhos. – sorriu – Depois dele aceitei Jesus e me tornei uma pessoa melhor. E com isso – seu semblante entristeceu – tive muito do que me arrepender... – olhou para mim – principalmente em relação à sua família, a nossa família...

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