Dor

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"Tudo tem sem tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu."

Amanheceu o domingo e na hora do café reparei que as dispensas estavam praticamente vazias. "Melhor fazer umas comprinhas antes de sair com Camz. Vovó pode precisar de alguma coisa!"

- Ei, vó, que tal a gente descer pro supermercado e fazer umas comprinhas? Tá faltando coisa a beça.

Vovó estava ajoelhada no quarto de frente para a santa.

- Não minha filha, eu vou ficar aqui. Vou até aproveitar que você vai sair pra agradecer a Deus e a Nossa Senhora por tudo. Eu tenho que pagar minhas promessas.

- Tá bom. Daqui a pouco eu tô aí.

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Na volta do supermercado eu subi as escadas carregando um monte de bolsas. Cansei e parei no seu Neneco, aproveitando para beber um guaraná. De repente um movimento me chamou a atenção e ouvi tiros e gritos vindos de lá de cima. Corri para a porta e vi a polícia subindo com fuzis em punho. Pessoas corriam apavoradas e algumas choravam. Meu coração desesperou.

- Seu Neneco olha minhas compras que eu vou subir.

- Subir o que menina? – gritou desesperado e correu em minha direção

Não esperei e corri subindo as escadas. Alguns policiais me gritavam coisas que não compreendia. O tiroteio comia solto e parecia que explodiam bombas aqui e ali. Não sei explicar como consegui chegar em casa, e nessa hora vi dois homens saindo de lá, pulando por sobre a cerca. Atiraram contra eles e tive de me jogar no chão. Eu ouvia gritos e vozes por toda parte, mas minha garganta estava presa. Abri a porta correndo e chamei por minha avó. Fui até o quarto e vi as pernas estendidas no chão.

"Ah, não! Ah, não!"

Cheguei mais perto e a cena forte me marcou a memória. Ainda lembro muito bem do que vi. Estava deitada no chão, de lado, segurando a Bíblia e o terço. Na cabeça, na altura do ouvido direito, o buraco da bala, e um mar de sangue banhando o quarto. O projétil havia atravessado seu crânio.

"Não, isso não é verdade! Não é verdade!" Ajoelhei-me a seu lado e percebi que não respirava e o coração não batia. "Não isso não é verdade!"

- Nãããããoooooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Tudo se passou muito rápido. Outras pessoas morreram no Cantagalo e foi comoção geral na favela. A imprensa comentou alguma coisa, mas nem sei dizer o que foi. Minha memória como que apagou alguns fatos, ou sou eu que não gosto de descrevê-los, mas apenas sei que vovó realmente já estava morta quando cheguei. O tiro foi letal. Camz pagou as despesas do enterro, mas foi Dolores que providenciou tudo. A família de Ally cuidou da parte religiosa da coisa, dona Malika e dona Maria providenciaram coroas de flores. Vero arrumou umas mulheres para limparem minha casa e um homem que consertou a cerca. Seu Neneco passou muito mal do coração e teve que ser internado.

No enterro apareceram muitos conhecidos, do morro e da faculdade, além do pessoal do vôlei e da capoeira. Pessoas falavam comigo, me abraçavam e beijavam, mas eu não dizia coisa alguma. Aliás, fiquei calada desde que um bombeiro socorrista me informou que vovó estava morta, coisa que eu já sabia, apenas não queria aceitar. Camz me levou para sua casa e nem sei quem foi no barraco pegar coisas minhas para arrumar nas mochilas. Sua mãe também esteve no enterro e pela primeira vez me pareceu humana. O pai estava em Brasília a negócios. E tudo isso aconteceu na segunda-feira. Não sei explicar como tantos foram avisados e como tudo se resolveu tão rápido.

Caí na cama às dez da noite e dormi sem vontade de acordar no dia seguinte.

Fiquei uma semana no apartamento de Camila e ela me deu um suporte emocional incrível. Sua mãe não me agrediu em momento algum e respeitou minha dor com sinceridade. Dolores ficou muito comovida com tudo. Fui para a festa da premiação do concurso com Camz, e apenas porque ela me convenceu de que vovó não gostaria que eu não fosse. Tive que discursar, e muitos se emocionaram com minhas palavras. Recebi cumprimentos de muita gente e nem saberia dizer quem seriam aquelas pessoas. Fui entrevistada por uma revista da área de siderurgia e por uma emissora de TV sem muita fama. Meu orientador e o chefe do departamento pareciam os donos da festa. O segundo colocado foi um rapaz de São Paulo, e o terceiro foi da UFF.

Voltei para o morro no dia seguinte a festa, porque eu precisava, e encontrei a casa limpa e arrumada. Mexi nas coisas de vovó e isso me fez derramar muitas lágrimas. Separei roupas e coisas para dar aos mais pobres, e decidi ficar com a Bíblia e uma blusa de frio da qual ela gostava bastante. Separei a Nossa Senhora e o terço para dona Maria, que foi uma patroa amiga. Encontrei um bauzinho escondido dentro do armário e, ao abri-lo, pude ver três fotografias antigas e uma carta, do tal Juvenal que ela amou. Nas fotos pude vê-la, ainda criança, e provavelmente meus bisavós, em uma bela fazenda. Em outra, uma jovem de uns doze anos, muito parecida comigo, talvez minha mãe. Vi também um pequeno desenho de um cacau bordado em um pano grosso, amarelado pelo tempo, com o nome de uma fazenda ao lado. Alguns santinhos e um pingente de ouro com um dentinho de criança.

"Coitada! Esse era seu pequeno tesouro!" Guardei o baú com carinho e decidi que também ficaria com ele. Abri a Bíblia em uma página qualquer e a primeira frase que li foi a seguinte: "Vinde a mim vós que estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei..."

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My only love.Onde histórias criam vida. Descubra agora