Acidente

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Novembro chegou e minha defesa de projeto final estava marcada para sexta, dia 10. O período ainda não havia terminado, mas eu sabia que estava aprovada nas duas últimas matérias que cursava, então o projeto seria efetivamente o último passo antes da colação de grau.

Desde o começo do mês eu respirava isso, preparando tudo para que no dia desse tudo certo. Uma semana antes, estava no banheiro quando ouvi duas vozes conhecidas:

- E aí Dinah, qual vai ser a dessa festa na sua casa amanhã? – Vero perguntou.

- Comemoração do final da minisérie. O elenco ficou muito entrosado e mamãe fez questão de chamá-los pra uma social.

- Vai ter gatinho?

- E quando não tem?

Saí da cabine nesse momento. As duas ficaram como se vissem a um fantasma.

- Boa tarde! – disse enquanto lavava as mãos

- Boa! – Vero respondeu. Não ouvi a voz de Dinah.

Saí do banheiro e as duas permaneceram mudas até quando pude ouvir.

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Horas mais tarde eu saía da faculdade. Camz estava fazendo um curso de desenho de perspectivas no Centro e por isso eu não teria carona. Decidi passar no Banco da Faculdade de Letras, quando reconheci Dinah atravessando a rua naquela direção. Não entendi bem o que aconteceu, mas uma Kombi apressada a pegou em cheio e ela foi arremessada a uns 5m de distância. O motorista fugiu e o pânico tomou conta de todos.

Pude ler a placa e memorizei-a. Corri até Dinah e vi que estava desmaiada. Caiu torta e machucou todo o lado esquerdo, desde a perna até o rosto. A respiração estava normal, mas saía sangue do ouvido.

- Ninguém mexe nela! – gritei – Você aí, coloca alguma coisa aqui no chão pros carros não passarem por cima da gente, pelo amor de Deus. Alguém tem celular?

- Eu tenho! – uma garota levantou a mão.

- Liga pros bombeiros!

- Tá saindo sangue do ouvido dela... – disse um rapaz desesperado.

-E enquanto estiver tá bom. O ouvido é a válvula de escape. – peguei sua bolsa e procurei o caderno de telefones – Ai, Dinah, cadê o telefone de sua mãe???

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Os bombeiros vieram e a levaram para o Hospital de Bonsucesso, onde havia atendimento de emergência funcionado. Pude ir junto e preenchi a ficha dela no hospital. Corri para um orelhão e liguei para o celular de dona Malika, buscando falar com jeito. Ela veio correndo.

- Lauren do céu, o que houve com meu bebê??

- Calma dona Malika. Ela foi atropelada por uma Kombi e então eu estava perto e fui ajudar. Os bombeiros vieram e este era o hospital mais próximo com atendimento de emergência. Eles aqui não me deram detalhes, mas não parece nada grave. Parece que só quebrou o braço e dois dentes. Além dos ferimentos na pele.

- Meu Deus, e cadê o motorista dessa Kombi?

- Fugiu, mas eu vi a placa e memorizei. Depois passo pra senhora.

- Eu já entrei em contato com o plano dela e eles mandarão a ambulância pra removê-la. Ai, eu tô tão nervosa! Onde eu acho um médico?

- Vem aqui que eu mostro pra senhora.

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A ambulância chegou depois de duas horas e milhões de telefonemas de dona Malika. Elas se foram para um hospital na Barra e eu fui junto. Dinah teve que operar o ombro esquerdo e o maxilar inferior. Saí do hospital bem tarde da noite e dona Zuzu me pagou um táxi de volta para casa.

Camz e eu visitamos Dinah no sábado e no domingo, que foi quando acordou, decidimos não entrar e apenas conversar com a mãe dela. Vero e Ally também estavam lá e ficaram meio constrangidas diante de nós.

- Não vão entrar meninas?

- Melhor não, dona Malika. A Dinah andava meio sem falar comigo, na verdade a gente andava sem se falar e eu não quero forçar a barra.

- Acho que ela também não gostaria muito de me ver. – disse Camila.

-Eu sei porque tudo isso, ela me contou. E eu disse a ela, mais de uma vez, que no meio artístico há várias pessoas que fizeram escolhas iguais e são maravilhosas, amigas, honestas e competentes. Se a pessoa é boa, ela é, e se é mau caráter isso independe de orientação sexual. Mas ela é como o pai, cabeça dura, e não deu o braço a torcer. Só que mais de uma vez me disse que sente saudades.

- E eu também sinto, mas não vou forçar. Deixa ela ter o tempo dela. Se um dia quiser falar comigo, sabe onde me encontrar.

Camz e eu nos despedimos, e quando já íamos na porta dona Malika disse em voz bem alta:

- Você pagou com o bem a quem não deu valor a sua amizade. Isso é atitude cristã, em falta nos dias de hoje.

Ally corou de vergonha e Vero abaixou a cabeça. Sabiam que era para elas que se dizia isso.

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Conversei longas horas com vovó sobre o acidente de Dinah, que me havia impressionado muito. Na verdade, a imprevisibilidade da vida sempre me fez pensar em como temos muito pouco ou nenhum controle sobre os fatos. Eu havia visto Dinah toda segura de si no banheiro, nem me olhou direito, e depois ela estava ali deitada no asfalto, tão indefesa e machucada. Tudo em menos de 12 horas!

- Mas é isso mesmo, minha filha. Eu levei muito tempo pra aceitar que na vida não existe pra sempre. Tudo muda, tudo passa, só Deus é eterno. E é por isso que eu creio, sem crer, o que sobra?

"Tudo muda, tudo passa..." repeti mentalmente. "O que é ruim, e mesmo o que é bom vai passar..."

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My only love.Onde histórias criam vida. Descubra agora