Em vez dos sonhos escrupulosos e horríveis que tenho quase todas as noites,eu só possuo um paredão negro,sem vida,sem emoção.A dor no meu ombro some completamente,tenho a sensação estranha de que estou mais forte,apenas por fora,porque por dentro eu posso até dizer que estou a beira da morte.
Nesse momento,todas as lembranças me invadem com uma enorme velocidade,minha família,Lilly com sua luz partindo para a densa floresta,Thomas e toda a confusão e certeza que me faz sentir,Matt e suas palavras tão profundas quanto o mar,o olhar apavorado de Kênia no momento que a matei,Will me chamando de monstro,tudo isso como se fossem fios embaralhados que se chocam e me atingem como milhões de agulhas em todo o meu corpo.
Não consigo chorar,parece que meu estoque de lágrimas está esgotado, mas me sinto sufocada a ponto de me encolher e gemer,tremo como nunca.
Imóvel.Matt ainda grita em minha cabeça.
Quero que fique viva entendeu?
Meus olhos ainda estão fechados,tenho um medo enorme de abri-los,de encarar o que está por vir.
Sei que eles vão me matar.
E vão matar os que ainda restam.
Se já não estão mortos agora.
Estou em uma superfície tão confortável que não ouso acreditar,respiro fundo e cerro os punhos em uma tentativa inútil de ganhar força.
Abro os olhos.
A luz do sol invade meu rosto,pelo visto,é o sol da manhã,estou em um quarto,um quarto amplo e muito limpo,dois criados mudos,uma bancada branca com uma cadeira e um espelho,a janela de vidro larga de onde posso ver o céu azul celeste,a cama é enorme,cabem duas de mim,os lençóis são azuis,as paredes de um verde sereno, o cheiro é como de hortelã,lavanda e algo levemente amargo que não sei distinguir.
Franzo as sobrancelhas e saio devagar da cama,meus dedos deslizam pelo chão escorregadio,não entendo a razão de tudo isso,será que eu estou enlouquecendo de vez? O que vão fazer comigo? O que fizeram com os outros?
É tudo tão milimetricamente limpo e bem cuidado que posso muito bem estar sonhando.
Ou logo virará um pesadelo.
Toda essa perfeição me deixa ser ar,minha cabeça começa a doer,me fazendo colocar as mãos na cadeira em minha frente.
Nunca me encarei muito no espelho,minhas sobrancelhas eram grossas e irregulares,pele oleosa e os cabelos loiros encardidos pela poeira de Nova York.Mas agora pareço claramente outra pessoa.
Pele lisa e suave,cabelos penteados e sedosos,sobrancelhas alinhadas, ferimentos perfeitamente cuidados e alguns quase não consigo ver.
O que estão fazendo comigo?
Os gritos de todos que passaram pelo meu caminho começam a ecoar na minha mente.Tudo começa a ficar borrado,e coloco as mãos na cabeça,perturbada.
Devem estar mortos.
Começo a entrar em um pânico interno.
Mas algo me surpreende.
A porta cinza desliza exibindo uma mulher,de mais ou menos vinte e três anos,ela usa uma blusa azul e uma calça cinza,seus cabelos pretos estão presos em um choque,mostrando claramente os olhos verdes,ela demostra apenas uma emoção,pena.
Não preciso de pena.
Preciso de respostas.Uma saída.
Preciso de ar.
Me afasto,indo para trás do criado mudo,procurando algo que sirva para me defender de qualquer coisa que essa mulher tente.
- Fique calma senhorita Andersan,o conselho cuidou para que não tenha nenhum objeto cortante ou que perfure ao seu alcance.
Queria poder xinga-los agora,mas minha voz se torna quase imperceptível.
- Senhorita Andersan,por favor,sente-se em sua cama,precisa de remédios, ainda está muito danificada.
Ela coloca alguns medicamentos e uma seringa com uma agulha no criado mudo.
Uma idéia se instala em minha cabeça.
Vou lentamente até ela,seu semblante chega a ser acolhedor, mas é isso que querem que eu pense,para me aprisionar mais uma vez,eles tiraram tudo de mim,e de uma forma ou de outra,essa mulher faz parte disso.
Estendo meu braço,ela coloca uma corda de borracha no mesmo e depois dá uma leve passada com o álcool absorvido no algodão,prepara a seringa e se posiciona para colocar na minha veia.
É agora.
Pego a seringa em segundos tão precisos que ela só se deu conta quando a seringa já estava dentro de seu próprio braço.
Ela geme de dor,não dando atenção a minha fuga.
Ela corre atrás de mim,a aflição me domina,fazendo meus olhos irem em direção a enorme janela de vidro que estampa o quarto,empurro a mulher com toda a minha força,ela se desequilibra e cai no chão,é quando abro a janela,para o meu espanto,há uma imensa piscina me esperando lá embaixo.
Não me importo se vou sobreviver ou não,eu só quero parar de sentir tanta dor,quero que tudo se acabe.
Me lanço no ar com os olhos fechados,e tudo o que escuto é o impacto do meu corpo na água,me lembro exatamente de um momento igual a esse,quando eu e Dimitri nos jogamos no rio,os sorrisos de Lilly me invadem quando acho que a água iria me engolir com a sua beleza tão serena e mortal.
Mas sou puxada de volta.
Me debato,esperneio,grito,e quando o borrão da água saí de meus olhos,vejo que são dois soldados dos Eles me segurando.
Eles.
O motivo de tudo isso.
Olho para o ambiente desnorteada,o frio bate no meu corpo encharcado,olhares são lançados para mim,alguns de espanto,outros de desdém, mas são pessoas que eu nunca tinha visto em toda a minha vida.
Observo mulheres,homens e quase nenhuma criança,as pessoas são bem vestidas,bonitas,em total divergência com as pessoas de Nova York,todos exalavam a mesma perfeição fria e sufocante daquele quarto.
Minha mente está começando a trabalhar.
Na fachada de um portão de metal,o brasão de um aperto de mãos e duas armas formando um X aumenta meu ódio em uma escala inatingível.
Sei exatamente onde estou agora.
Estou na Muralha dos Eles.
E esse é o lugar onde eu nunca quis estar em toda a face da terra.
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A I M U N E • 1
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