Capítulo 27

53 8 3
                                    

"Estou bem. O Ricardo também. Só está meio grogue. Saímos da Supercarretera e viemos para um lugar que se parece com uma roça, mas não é interior, tenho certeza. Não andamos muito, mas agora estamos em movimento novamente. Ouvi as conversas dos caras. Tem brasileiro entre eles. Deu para entender que vão levar o Ricardo para um tal de Pelo, El Pelo, Peludo, cabeludo... sei lá"

– Olhe essa mensagem do Dani – disse o César. – Eles estão em movimento novamente.

Tirei meu celular do bolso e comecei a digitar. – Vou ligar para o Fabiano. Espero que ele me atenda.

Ainda eram quatro horas da tarde. Era fácil nos orientarmos quanto ao horário mesmo em outro país pelo fato de o fuso horário paraguaio ser o mesmo do Brasil. Já havíamos passado por muitas coisas naquelas últimas quarenta e oito horas e, mesmo que ainda fosse cedo para dormir, comecei a sentir um tremendo sono, pois estava exausto psicologicamente. O Fabiano não me atendia de jeito nenhum, então decidi esperar alguns minutos antes de tentar novamente, pois ele estava em sua motocicleta e sei o quão complicado é atender a uma ligação enquanto se está em movimento. O César dirigia pela faixa direita da Supercarretera e olhávamos por todas as saídas na tentativa de identificar qualquer uma que levasse a alguma área rural. Não consegui me concentrar e meio que cochilava hora ou outra, mas lutava contra o sono e aquela foi uma das únicas vezes que o venci de forma que não dormi profundamente. Estava desligado do que estava acontecendo e em minha mente apenas recordações das últimas vezes que andei tanto de carro como durante aquela viagem. A minha primeira lembrança foi de quando eu ainda estava aprendendo a dirigir. Passei horas no volante adquirindo prática e tentando perder o medo. Fiz uma curva e esqueci de voltar o volante, então o carro foi para a calçada. Quando virei de volta para a rua era tarde demais, pois o pneu dianteiro do lado esquerdo subiu pela guia logo pela quina, estourando-se por culpa minha. Uma moça que passava me olhava e dizia "tinha que ser homem". Achei chato e desagradável o comentário, mas imaginei ser assim que uma mulher se sente quando ouve "tinha que ser mulher". Estava com as mãos travadas agarrando o volante e assustado, afinal, foi um tremendo susto.

As outras lembranças que tive foram relacionadas a noitadas de cerveja ao lado do meu fiel escudeiro, o Gordão. Uma vez íamos para a praia para curtir a um churrasco com uma galera que conhecemos em uma feira de automóveis, mas não conseguimos chegar, pois o carro que estávamos quebrou e não passamos do primeiro túnel da rodovia que liga a região metropolitana ao litoral paulista. Como tínhamos cerveja e gelo em uma caixa de isopor no porta-malas, acabamos tirando tudo de lá e levando para uma saída lateral do túnel para uma área verde com vista para uma cachoeira que caía pela montanha e mais à frente, já anoitecendo pudemos apreciar à vista das luzes dos prédios e casas da baixada santista. Uma bela "pintura" diante de nossos olhos. Pensando nisso, também me veio a lembrança de uma cervejada na praia. Na manhã seguinte acordei montado no leão exposto no calçadão da orla de Santos enquanto o Gordão acordava distante dali, caído por de trás de uma pequena mureta e com as pernas para cima dentro do estacionamento onde estava o seu carro. Ainda me veio a memória de uma noite indo de bar em bar conforme fechavam depois de nos oferecer as saideiras, as que costumávamos chamar de "expulsadeiras". Numa noite na calçada de um bar da avenida Paulista, provamos a nossa imensa capacidade de fazer amizade quando estamos para lá de Nárnia. Viramos melhores amigos do garçom, de algumas pessoas que frequentavam aquele lugar e até de um mendigo que fazia poesias que pedia algum trocado para comprar algo e que com a gente queria beber.

Percorro pelas artérias da metrópole

Atrás de mim, lembranças de um espectro liberto

Memórias de um estranho universo humano descoberto

Experiências vividas intensamente

De forma intensa guardadas em minha mente

A minha arte, palavras partilhar

A satisfação alcançar

À vocês, imenso prazer em conhecer

E com vocês querer beber

Vossa alegria poder sentir, por alguns instantes também poder viver

Mas com vocês, quero mesmo é beber

Beber...

O Gordão o perguntou se era para bom uso mesmo ou se era para tomar uma birita e a resposta vinha acompanhada de um imenso sorriso: "é rapaz, tomar uma agora pra esquentar seria a melhor coisa". Olhávamo-nos e em seguida dizíamos "então chega mais que hoje você vai beber com a gente por conta da sua sinceridade e de sua criatividade com esse poema. Garçom, outro copo, por favor.". Claro que não pude deixar de lembrar das centenas de vezes que fomos ao Bar do Bahia, mas infelizmente a única lembrança que martelava em minha mente naquele momento sobre o bar, foi a da aparição do Big Chris Rock na última vez que estivemos lá ainda antes de nos jogarmos nessa viagem maluca. Sujeito inconveniente.

Depois de tantas lembranças, finalmente o Fabiano atendeu a minha ligação.

– Pode falar, Eduardo...

– Conseguiu comunicar a Polícia?

– Sim, mas nada podem fazer se não há uma boa prova de que o Ricardo foi mesmo sequestrado. Devo retornar à delegacia caso ele não apareça em 24 horas. Pelo o que entendi, ele não estava com vocês no momento de ser raptado e foi assim que relatei aos policiais. São as regras. Precisamos esperar até termos certeza de que ele não irá retornar. Foi isso o que me disseram.

– Caramba. É como no Brasil. Regras das autoridades e inutilidade de mãos dadas às vezes, não é mesmo?

– Pois é. Vocês terão de procurar por eles por conta própria. Vou dá-los o maior apoio inclusive nas buscas. O Daniel falou mais alguma coisa?

– Sim. Apenas comentou que estavam em algum lugar que mais se parecia com uma área rural e com convicção de que perto daqui, pois não andaram tanto até que parassem. Também falou sobre um tal de Peludo, Cabeludo – o codinome de Amado Pereira, El Pelo, passava por um tremendo processo do telefone sem fio. Daquela forma cheguei a imaginar que o Fabiano acabaria contando sobre tudo aquilo para alguém referindo-se a ele como Bigode –, algo assim. Será que alguém já ouviu falar sobre alguém com esse apelido?

– Aguarde um momento por favor...

Ele voltou ao balcão da delegacia para atualizá-los sobre as últimas informações que o passei de acordo com a mensagem do Dani. Alguns instantes depois, voltou a falar comigo.

– Eduardo. Parece que o apelido correto dessa pessoa é El Pelo. É um amador e aspirante a grande traficante. Não dão muita atenção a ele, mas o consideram como alguém com tremendo potencial. Ninguém sabe como ele é, mas sabem que é parceiro de um tal de Santos, um Juan Farías, Alejandro Torres, Juares Fernandes, Ramon e Vincent que são de diversos países da América do Sul. Acreditam que devem ter algum tipo de pacto de fidelidade com este rapaz, o El Pelo. Sinto em lhe informar, mas me disseram que se realmente esses homens estão com o Ricardo, são poucas as chances dele sobreviver, pois vítimas são consideradas como um atraso para eles. Sempre livram-se das vítimas matando-as, mas não vamos desistir.

– Sim. Vamos até o fim do mundo atrás dele. Ele precisa abonar os nossos atrasos do mês.

– Caramba. Foram duros comigo quando eu me preocupei com a competição de pôquer, mas também só o querem por conta de seus atrasos em aberto. – Disse ele rindo. Do meu lado da linha eu já estava rindo também. Meu riso e bom humor duraram até o momento que o Guto começou a gritar e tive que desligar o celular.

– Olhem lá. É a van daqueles filhos das putas. O Dani e o Ricardo estão lá com eles.

O Gordão ficou agitado e começou a gritar: – Preparem-se, retardados. Vamos pegá-los!

– Vai pensando que é fácil assim, seu gordo – disse-lhe o César.

Por afobação ou por burrice, o César acelerou até demais e pareou o carro lado a lado com a van, o que os fez ver as nossas caras dentro da zafira. Reconhecendo-nos, o capanga brasileiro abaixou o vidro do passageiro e apontou uma arma em nossa direção. Ao olharmos, quem diria. Aquela não era uma pistola ou outra arma qualquer. Era uma Tommy Gun, a arma favorita dos gângsteres da década de 30. O Gordão mostrou-lhe o dedo do meio. Um autêntico retardado. Aquele gesto me fez pensar no quão loucos somos naturalmente, mesmo quando sóbrios.


Rumo ao ParaguaiOnde histórias criam vida. Descubra agora