Coloquei o apartamento a venda.
Olho para as paredes e nelas estão os quadros que andei pintando estes últimos quinze anos. São 15 ao todo. Pintei portanto um quadro por ano. Fiz assim para a pintura não tomar todo o meu tempo. Senti necessidade de pintar desde que levaram meus dois quadros, mas a minha atividade principal é escrever.Minha coleção consiste em cinco reproduções e dez variações do quadro Figuras Invertidas, pintado por aquele que considero o Papa dos trogloditas da pintura de vanguarda , Joan Miró.
Trata-se das figuras estilizadas de uma jovem e um cachorro, deitados tomando banho de sol. A maioria das pessoas que viram está obra devem te-la interpretado assim, imagino eu. A obra é conhecida mundialmente por dois títulos : Figuras Invertidas ou pessoas e cães na frente do sol.
Fiz cinco reproduções o mais fiel possível da imagem original na tentativa de não poder diferenciar um do outro. Não deu certo, para minha visão todos são diferentes.
Então experimentei fazer o contrário, fiz dez variações, com as mesmas figuras, mudando só as suas posições e tamanhos. Por exemplo: numa tela a garota é enorme e o sol e o cachorro muito, muito pequenos. Em outra tela dar-se exatamente o oposto.
Fiz assim para iludir os meus olhos fazendo-os pensar que aquelas imagens eram diferentes do quadro original de Miró. Minha experiência deu errado novamente. Meus olhos não acreditaram que aquelas figuras eram diferentes.Mais uma coisa que afeta nosso pensamento visual acontece
quando invertemos a posição do quadro de Miró, tudo muda. A jovem continua a mesma, o cachorro também, só que agora a jovem está de pé e o cachorro parece está suspenso no ar por se agarrar em seu corpo ou qualquer coisa assim. Porém alguma coisa mudou profundamente. O sol deixou de ser o sol e é agora um inquietante círculo vermelho.Não levarei essas telas para a Itália. Lembrei que o ceramista, velho conhecido meu, uma vez me pediu um quadro. Nunca atendi o seu pedido. Chegou a hora de poder fazê-lo. Vou lhe oferecer também o armário e a pistola.
Não lhe falarei da influência profunda que a sua arte exerceu em minha psique, não saberia como dizer coisas que não podem ser ditas somente com palavras.
Lembro agora de tê-lo visto duas ou três vezes nas antigas festas do Clube.
Suas cerâmicas surrealistas já eram famosas naquela época agora tão longínqua. É vinte e cinco anos mais velho do que eu. Visitei sua página e vi que ele agora está parecendo um venerável patriarca dos tempos bíblicos com sua cabeleira vasta e uma comprida barba branca.
Já faz uma eternidade que nos encontramos no Clube e falamos de arte rupestre. Não espero que ainda se lembre de mim. Não faz muito tempo adquiri-o uma das quatro réplicas existentes no mundo do David de Michelangelo. Quando passar em Firenze não verei o David, não gosto desse tipo de arte. Se eu levo a pistola 40 comigo, juro que atiraria nessa estátua.Mas o que deu em mim para pensar assim? Deve ser a expectativa da viagem, a excitação.
Visito sua página, envio um foto da sua pedra de cerâmica, digo do quadro que me pediu, e que enviarei para seu endereço uns quadros que andei pintando. Finalmente digo meu nome e de onde nos conhecemos. Não mencione-i o armário de aço e nem a pistola 40.
Ficaria esquisito presentear uma pessoa, que afinal, só vi duas ou três vezes na vida, com um móvel com marca de tiro e uma arma dentro.
Com um lápis comecei a desenhar um David de Michelangelo, no estilo de Miró, na parte da frente do arquivo.
Sou bom em copiar o estilo dos grandes mestres, não tenho estilo próprio, sou um falsário nato.Acabei a composição desenhando o coração do David traçando um círculo em volta do ponto atingindo pelo tiro, desenhei dentro do círculo o mesmo arco e seta que o ceramista usa como assinatura nas suas criações artísticas. Comecei a pintura com esmalte sintético em spray. Pintei o coração de vermelho e o arco e seta de preto (os caçadores das cavernas faziam isso, marcavam com precisão o lugar do coração do animal à caçar, fazendo uma marca vermelha atingida por uma flecha). Terminei a "minha pintura rupestre" pintando a cabeça do David igualzinha a cabeça do cachorro de Figuras Invertidas.
Agora é a vez da pistola 40 receber um "banho de arte"antes de ser oferecida como ex-voto aos deuses.
Pintei um lado da pistola de preto e o outro de branco e coloquei dentro da gaveta baleada.Tirei uma foto desse David primitivo
e estava prestes a envia-la quando parei para refletir sobre o que fiz. Sou um revisionista incorrigível. Voltei às latas de tinta. Cobri aquela cabeça de cachorro(cabeça que nada mais é que um triângulo) com tinta branca. Desenhei em seu lugar, aquela cabeça que aparece na ponta da cauda do animal do Pessoas e "cães" perante o sol.
Pintei a nova cabeça do David, inclusive com aquela "dicotomia" que começa a aparecer em uma das suas faces, provocada pela sobreposição parcial daquele rosto sobre o sol.Abri a gaveta da "quarentona" e revise-i sua pintura desenhado e pintando os rostos da pessoa feminina do Pessoas e cães... com tinta preta no lado branco da pistola, e o da pessoa masculina com tinta branca no lado preto da arma, respectivamente.
Absolutamente certo de o velho artista surrealista iria apreciar muitíssimo estes presentes surreais,
me apresso em enviar-le as fotos dessas obras juntamente com uma longa mensagem explicando passo a passo o significado de cada coisa, e de como me veio a percepção de que, inconscientemente, o grande artista que ele é, se inspirou no Figuras Invertidas (prefiro mais este título que o outro. Na verdade não gosto de títulos verbais para esse gênero de arte) para confeccionar aquela pedra de cerâmica de que tanto já falei e nunca poderia disser tudo.Até que enfim ele me respondeu. Foi uma mensagem curta. Disse que nunca me conheceu, e que aquela pedra de cerâmica não é obra sua.
" Tem gente por aí falsificando com intenções inconfessáveis, aquilo que fiz exclusivamente com a finalidade de embelezar um pouco mais a já imensamente bela natureza. Peço por favor que as pessoas responsáveis por essa pirataria, parem imediatamente ou sofram as medidas penais cabíveis. "
Quanto aos presentes ele recusou considerando que não havia espaço disponível em sua residência para guardar.
Num movimento realmente impensado, puxei a arma do fundo da gaveta, peguei tinta rosa, e pintei toda a arma nessa cor emblemática e escrevi o nome do ceramista nos dois lados: Brendo Blolenas.
Enviei a foto da 40 cor de rosa com os dizeres '' PODE ATIRAR!".
Foi simplesmente coincidência eu sei, dessas que acontecem todos os dias mas que também podem acontecer uma única vez na vida. Dias depois de enviar aquela foto, soube da notícia de que, o conhecido internacionalmente, mestre da antiqüíssima arte da cerâmica, havia cometido suicídio aos 95 anos. O que me deixou perplexo foi a maneira com que ele se matou. Introduziu o cano de uma pistola na boca e apertou o gatilho.
Não gosto da morte, decerto ele já vinha querendo fazer isso a muito tempo, só estava a espera de um pretexto para isso, e esse animal aqui, irresponsavelmente, lhe deu de bandeja esse pretexto.
Estou mesmo chateado comigo, vou até o bar da esquina respirar um pouco daquele ar marinho que sopra da praia bem na nossa cara.
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História sem Título
Ficción GeneralUma história sem nome pode não ser uma grande história, mas as coisas anônimas também podem ser universais.