Às 8h em ponto, um furgão preto caindo aos pedaços estacionava na calçada em frente ao prédio descascado.
Celestina alisou pela última vez a frente do vestido florido e jogou um casaquinho azul por cima dos ombros. Tentara deixar os cabelos apresentáveis, modelando as ondulações loiras com cuidado para que emoldurassem suas bochechas gorduchas. Abriu a porta do carro e acenou para o rapaz no banco do motorista.
Horácio estava bem diferente sem a jaqueta pavorosa da empresa. Usava uma camisa xadrez com calça jeans e óculos de armação grossa que caíam muito bem em seu rosto. Celestina pensou divertida que, caso não estivessem em busca de um artefato mágico ancestral a bordo de uma van de tv a cabo, a situação estaria bastante parecida com um encontro.
"Ainda dá tempo de você desistir, viu?" Celestina entrou no carro e afivelou o cinto de segurança.
Horácio sorriu pra ela:
"Sou Hórus, o Escolhido, lembra?"
A garota soltou uma gargalhada. No final das contas, era bom tê-lo por perto. Estava nervosa com a missão que tinham pela frente. O rapaz conseguia deixá-la mais calma. Enfiou a mão dentro da bolsa de lona e tirou um vidrinho opaco, que estendeu para Horácio. Parecia uma velha embalagem de filme fotográfico.
"O que é isso?" ele perguntou, destampando o frasco. Lá dentro, havia um ramo de samambaia, com três folhinhas dependuradas.
"É Tilda" Celestina explicou, mostrando o próprio raminho preso ao pingente no pescoço. "Se você carregar um pedacinho dela com você, ela será capaz de escutar tudo o que acontece ao seu redor e me avisar caso ocorra algum problema. Pena que é um meio de comunicação de via única: você não vai poder receber as minhas respostas porque não pode escutá-la. Mas...é o melhor que temos."
Horácio colocou o fragmento de Tilda no bolso da camisa xadrez, bem junto ao peito.
"Agora ela pode me ouvir também?"
Celestina assentiu.
"Pelo menos enquanto o ramo não estiver seco. Mas isso leva dois ou três dias, se você mantiver o fragmento longe do calor. Tenho que ser econômica, sabe, para não escalpelar a coitadinha... Tento tirar o mínimo possível para que Tilda tenha tempo de crescer."
"Entendi" ele apertou o raminho na camisa. "Vou cuidar bem dele."
"Tilda? Está nos ouvindo bem?" a garota testou.
Positivo e operante, capitã.
Horácio deu partida no furgão. O veículo engasgou e sacolejou ruidosamente. Alguns instantes depois, estavam em uma das principais avenidas da cidade, liberando uma nuvem de fumaça cinzenta pelo escape.
O vento entrava zunindo pela janela, fazendo cócegas no rosto de Celestina enquanto a menina observava a metrópole, os grandes edifícios que sucediam uns aos outros. Já desistira do cabelo, o furgão não tinha ar condicionado, e as mechas agora voavam livres ao sabor da ventania. Reparou que Horácio lhe lançava alguns olhares furtivos.
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Mamãe Vai Comer Meu Fígado
HumorUma história honesta sobre bruxas, samambaias e técnicos de tv a cabo.