MEU DEUS PAN DA CLOROFILA. Eu já gritei de tudo quanto é jeito e esse inútil não consegue me ouvir!
Celestina sabia disso. A planta estava quase estourando seus ouvidos com aquele escândalo mental.
HORÁCIO! HORÁCIO!
A garota queria dizer que não adiantava, que era inútil continuar tentando, mas não podia arriscar. Manter Inocêncio desinformado sobre o raminho de samambaia em seu bolso era uma prioridade no momento. Era o único trunfo do qual o careca parecia não saber.
Sua mãe pegou a caixa, a varinha está logo ali e vocês...vocês...HORÁÁÁÁÁCIOOOO! O imbecil está lá parado como um dois de paus? Você tá bem? Está ferida? Eu não consigo ver, só ouvir!
Celestina não podia responder. Engoliu em seco, preparando-se para o pior. Quando fora descoberta por Inocêncio e levada à força de volta ao galpão, conseguira esmurrar o homem e derrubar um dos guardas com as próprias unhas e uma boa dose de elixir de urtiga espirradeira direto nos olhos. Deixara o pobre homem rolando na grama até cair desacordado. Pela altura dos gemidos e pelo barulho da confusão como um todo, imaginou que Horácio logo viria ao resgate. Mas ele não aparecia, e agora seu pai fora algemado. Estava tudo perdido.
AH! É ELE! Percebeu que algo está errado! Não faço ideia de como, mas ele disse que está vindo!
O coração da menina disparou e o sangue fugiu de sua face. Devia estar branca como um papel, e o aperto de Inocênio começou a machucar seu pescoço. Ouviu quando o homem disse algo e quando sua mãe saiu do caminhão e gritou em resposta. Mas não registrou nada daquilo. Sua mente forçava ao máximo o elo com Tilda, prestando atenção a cada palavra.
Está vindo, está vindo! Disse que vai pegou uma tábua no meio do caminho, não sabe exatamente pra quê. Ah, Horacinho, meu querido, eu queria tanto que você pudesse me ouvir! Obrigada, deusa Danu!
A samambaia ia narrando cada uma das frases de Horácio, intercalando-as com exclamações e agradecimentos a todas as divindades existentes. Celestina acompanhava os acontecimentos calada, apenas torcendo.
Assustou-se quando o pai chamou seu nome. Parecia fazer uma pergunta. Ela lembrou-se vagamente de que alguém havia perguntado se estava tudo claro.
"T-tudo" arriscou, rezando para ter dito algo coerente. Notou que o pit bull ao seu lado havia virado para trás e estava abanando a cauda: provavelmente sentia a presença de Horácio. Precisava dar um jeito de alertar os pais. Inocêncio e os dois capangas não podiam de modo algum olhar para trás.
Forçou o olhar em Javier, tentando fisgar a atenção do pai.
*****
Tudo começou como uma intuição. Um sentimento de que algo no plano dera errado. Um comichão, como Celestina costumava dizer.
Depois, veio a voz. Uma vozinha feminina, irritante e estridente, perdida lá nos confins do seu cérebro, quase inaudível. Uma voz que ele nem tinha certeza se havia mesmo escutado, mas que chamava seu nome.
Em outras épocas, Horácio duvidaria de sua sanidade. Provavelmente estava sofrendo os efeitos da privação de sono. Mas naquele dia, especificamente naquele minuto, Hórus, o Escolhido, estava disposto a acreditar em seus instintos:
"Tilda, está tudo bem por aí, não está?"
O silêncio e a escuridão da noite, quebrado apenas pelo cricrilar dos grilos, fez com que o pressentimento ruim subisse novamente pela boca do estômago. Celestina já deveria ter voltado, certo? Não era uma caminhada tão longa do galpão até o lugar onde ele aguardava, sentado atrás do furgão. Já haviam se passado alguns minutos desde que ela soara o apito para cães.
"Eu não sei se estou fazendo a coisa certa, talvez eu estrague tudo, mas avise Celestina de que estou indo!"
Atravessou o terreno baldio sem grandes problemas. Mesmo no breu, bastava seguir uma linha reta até o galpão. Ao se aproximar da cerca, cujas tábuas pendiam de maneira estranha como se um ser muito gordo e pesado houvesse passado por ali, sentiu a ponta do sapato prender em um corpo estranho e inerte.
"Mas que porr..." lutou para manter o equilíbrio, catando cavaco pelo matagal ao mesmo tempo em que o corpo inerte soltava um gemido sentido.
Horácio aproximou o visor do celular da massa disforme: era um dos guardas, claramente nocauteado. O homem, gigantesco, ressonava com a mente em alfa, os olhos vermelhos e inchados com brotoejas ao redor das pálpebras. O garoto não fazia ideia de que tipo de substância seria capaz de produzir um estrago daqueles, mas não duvidava se tratar de uma obra de Celestina. O preocupante era ela não estar lá para se vangloriar do fato.
Por via das dúvidas, arrancou uma das tábuas da cerca. Tirando o smartphone, não tinha absolutamente nada que servisse como arma, então era melhor improvisar.
Adentrou o galpão ouvindo vozes lá dentro. Deu a volta para que o caminhão o encobrisse e foi avançando. Quando os vultos entraram em seu campo de visão, precisou conter os palavrões.
Horácio sabia que tudo estava nas mãos de Tilda. Sua vida, a vida da quase-namorada e dos quase-sogros, a vida do quase-cachorro-de-estimação. Tudo estava nas mãos, ou folhas, de uma samambaia que assistia Glee. Era uma pena não haver muito tempo para refletir sobre a singularidade irônica da situação.
O rapaz aproximou-se devagar, estudando cautelosamente cada passo. Precisava fazer com que nem o solado do tênis produzisse ruído.
Murmurava para Tilda, tão baixo que duvidava que mesmo a planta pudesse ouvir.
"Vou me aproximar de Celestina e vou tacar essa tábua na cabeça do careca" disse. "Existem dois guardas de pé, um segurando Ícaro. Javier e Artemisia estão algemados. Avise pra ela que vou precisar de ajuda com os guardas...principalmente se eu levar um tiro."
*****
Durante todo o tempo, a mente de Artemisia só tinha lugar para um único pensamento:
"Eu vou MATAR esse grandissíssimo filho da puta."
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Mamãe Vai Comer Meu Fígado
HumorUma história honesta sobre bruxas, samambaias e técnicos de tv a cabo.