Celestina estava novamente sacolejando em um avião, novamente cruzando o país de ponta a ponta.
Haviam comprado quatro passagens às pressas na beira do balcão, após uma breve visita ao hotel onde puderam recuperar as malas. Seu pai estava paranóico demais sobre usar o próprio cartão de crédito, então Horácio acabou tendo que pagar todas as despesas em 10x sem juros e vale refeição, enquanto sua mãe choramingava que uma boa bruxa deveria ter uma varinha para transformar paralelepípedos em barras maciças de ouro pro caso de emergências. Celestina somava todos os valores mentalmente, jurando para todas as divindades existentes de que devolveria cada centavo ao já quase falido técnico de tv a cabo.
Encontrava-se sentada na janela, ao lado de Javier, enquanto Horácio e Artemisia ocupavam os assentos ao lado, separados pelo corredor. A mãe folheava uma revista enquanto o garoto cochilava. Ou fingia cochilar, desconfiava Celestina, encabulado demais em ter de passar tantos minutos na companhia da quase sogra. Ela o vira entreabrir um único olho para espiar quando um comissário de bordo passou oferecendo balinhas.
Não que a situação de Celestina estivesse muito mais fácil. Ela e o pai haviam trocado cerca de meia dúzia de palavras desde a decolagem, a maioria delas acerca do formato das nuvens. Apesar de andar em camelos e escalar picos nevados, Javier não era o cara mais confortável dentro de um avião. Felizmente, o vôo estava praticamente vazio.
"Então..." a menina pigarreou. "Vocês se conheceram num congresso, não foi?"
Javier olhou-a com uma expressão de dar pena. Descobrir uma filha perdida não é um momento mágico como se mostra nos filmes, onde se aprende a ser pai num passe de mágica. Apesar de 50% biologicamente compatíveis, o professor enxergava na menina uma completa estranha. Era difícil saber como proceder.
"Tudo bem se não quiser falar sobre isso..." Celestina desviou os olhos para o chão de carpete.
"Sim, nós nos conhecemos num congresso" era a voz de Artemisia que surgia no lugar da do pai. A mulher tinha os braços cruzados sobre o colo e virara de lado na poltrona para poder encará-los de frente. Seu olhar era penetrante e firme. "Eu havia acabado de me tornar a líder do clã."
"Eu...eu era recém formado na época" Javier tentava encontrar palavras adequadas. "Havia acabado de ser recrutado pela Ian Woods por causa das minhas notas. Eu era jovem, tolo e me sentia invencível. Uma combinação bem perigosa."
"Você ainda se sente invencível, Javi."
Ele riu:
"Sua mãe era a garota mais linda daquele lugar. Os caras caiam aos montes em cima dela, e como eu era jovem, tolo e invencível, fui tentar minha sorte também."
"Aí de repente me aparece um cara loirinho e excessivamente confiante, falando um monte de asneiras."
"Ela me chamou de panaca e disse que minha carreira era fadada ao fiasco."
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Mamãe Vai Comer Meu Fígado
HumorUma história honesta sobre bruxas, samambaias e técnicos de tv a cabo.