Celestina achou que talvez pudesse perder o sono por causa dos resquícios de adrenalina que percorriam suas entranhas. Achou que seria difícil dormir tão fora de hora, e que seu metabolismo iria estranhar.
Lêdo engano.
Nem o carteiro esmurrando a porta, nem Ícaro se jogando por cima dela para uma soneca compartilhada, nem os monólogos de Tilda e nem mesmo o medo de perder o próprio fígado foram suficientes para acordá-la de sua hibernação. Celestina entregou-se a um sono negro e livre de sonhos.
Quando acordou, estava com a cara mais amassada que uma trouxa de roupa suja e completamente desnorteada.
Ah, mas finalmente!
Celestina sentiu o gosto amargo de guarda-chuva na boca. Tentou se mexer, mas seu corpo estava completamente rígido, dolorido e mais pesado que o normal.
"Tilda? Que horas são?" murmurou.
Como posso saber? Sou uma planta! Mas já quase não bate mais luminosidade nas minhas folhas, então deve estar anoitecendo...
"Anoitecendo?" a bruxa perguntou ainda com os olhos fechados. "Como é que eu pude dormir tanto?"
Celestina ergueu-se na cama com os cotovelos. Uma pesadíssima massa branca e castanha rolou das suas costas e caiu por cima do lençol. Ícaro abriu-lhe um sorriso canino, exibindo a língua e deixando escorrer um fio de baba no travesseiro.
"Ah, então é por isso que a minha coluna está doendo tanto. Seu aproveitador barato" disse ela, abraçando o cachorro e voltando a aninhar-se contra o pit bull macio. Suas pálpebras foram se fechando lentamente...
Celestina...não já tá bom de dormir não?
A bruxa arregalou os olhos num único susto.
"Hã?"
Tentar levantar e agir normalmente assim que acabamos de despertar é uma coisa engraçada. Ficamos meio bêbados, tropeçamos do nada e falamos coisas sem sentido na ânsia de parecermos funcionais. Os neurônios de Celestina lutavam para entregar as sinapses em ordem.
"Já acordei, já acordei!"
Você precisa descer com o Ícaro, antes que ele mije na sua cama.
"Certo, certo...eu sei. Deixe-me só...lavar o rosto e...calma, não sei se estou raciocinando direito."
Não está. Nem um pouco.
"Alguma notícia do Horácio?"
Nenhuma. Graças a você, acho que ele colocou meu raminho dentro de uma gaveta ou algo assim. Não escuto nada.
Celestina precisou de cerca de vinte minutos para voltar à se apresentar com dignidade: banho tomado, short, camiseta, chinelo e cachinhos dourados placidamente penteados por trás das orelhas. Não poderia estar parecendo menos com uma bruxa, pensou, olhando-se no espelho. Mas tudo bem: várias bruxas não se pareciam muito com uma. A comunidade mágica sabe que não se deve medir uma feiticeira pelo tamanho de seu chapéu.
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Mamãe Vai Comer Meu Fígado
HumorUma história honesta sobre bruxas, samambaias e técnicos de tv a cabo.