O vigia estava tendo uma péssima noite. Fora escalado logo para aquele turno, num dia de jogo importante para o seu time do coração. Ele não vira a partida no canal de esportes, não tomara suas cervejas para comemorar a vitória e não tivera oportunidade de rir da cara do Cléber, seu vizinho tricolor. Pra completar, tinha esquecido o aniversário da sogra e agora a esposa mal olhava na cara dele. O vigia estava de péssimo humor.
Bem, ao menos seu time havia ganho o jogo.
Deixou os olhos vagarem incertos pelo teto requintado do museu, notando pela milionésima vez os intrincados padrões dourados do interior da abóbada. Não que o prédio tivesse uma abóboda, mas os arquitetos acharam que seria legal tentar imitar a parte de dentro de uma usando gesso. Espreguiçou-se na cadeira e suspirou alto: saco. Ainda faltavam várias horas para largar e pegar o rumo de casa. E aí precisaria lidar com a esposa, que, se os Céus fossem bons, ainda estaria dormindo.
Um leve zumbido eletrônico capturou sua atenção para a câmera de segurança à esquerda. O equipamento movia-se de um lado para outro, para cima e para baixo, tentando ajustar o foco, como se procurasse alguma coisa. No momento, apontava diretamente para o seu rosto.
"Bando de babacas" murmurou o vigia, cruzando os braços sobre a barriga.
O pessoal das câmeras de vigilância ficava em outro andar, dentro de uma sala com poltronas confortáveis e um aparelho de TV. Deviam ter assistido ao jogo. Viviam conversando, rindo e vendo TV, os malditos sortudos. Mas não ele, ah, não. Ele precisava ficar sentado profissionalmente, sozinho, naquela cadeira de frente pra porta, que era pro pessoal que passava na rua achar que eles estavam prestando atenção.
Mas claro que não estavam: já haviam se acostumado à tranquilidade. Três anos de firma e o vigia não vira nada de interessante acontecer, a não ser aquela vez em que um rato gorducho ficara preso dentro de uma armadura no setor da Idade Média. Tinha soltado o bicho na calçada, coitado, todo estrupiado... Enfim, três anos de vigília pra isso.
O vigia pensava seriamente que mudar de emprego deveria ser a sua segunda meta de vida, logo depois da primeira (que era comprar um presente atrasado para a sogra), quando ouviu duas batidinhas educadas na vidraça da porta.
Cerrou os olhos para enxergar melhor.
Havia um casal de jovens parados do lado de fora, acenando para ele. O rapaz era alto e magro, e a menina rechonchuda e loira devia ser cega, já que usava óculos escuros. Os dois estavam de preto da cabeça aos pés. O vigia achou aquilo um tanto estranho, mas os adolescentes de hoje em dia costumavam ser assim meio amalucados mesmo, certo?
Aproximou-se lentamente do vidro:
"Que é?" rosnou pela fresta que abria-se para a rua.
"Boa noite, moço" foi o rapaz que respondeu. "Será que o senhor poderia nos ajudar? A minha amiga aqui tá passando muito mal...ela precisa de um banheiro. O senhor pode deixar a gente entrar?"
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Mamãe Vai Comer Meu Fígado
HumorUma história honesta sobre bruxas, samambaias e técnicos de tv a cabo.