O aroma de gerânios me despertou. A porta do armário dela estava aberta.
Eu me levantei todo sonolento e aborrecido, e fechei o armário novamente. Não consegui evitar sentir o maldito perfume, ainda impregnado nas roupas que Simone nunca levou embora. O cheiro fez a saudade e a raiva queimarem no meu peito. Como raios a porta do armário foi se abrir sozinha?
Eu respirei fundo, e decidi não me abalar com isso. O campeonato infantil de Orla das Sereias aconteceria naquela tarde, e fui convidado a fazer o discurso de abertura, além de abrir as apresentações com algumas manobras. Nunca imaginei que me tornaria tão famoso, a ponto da minha presença decidir ou não o sucesso de um campeonato local.
Exibir meus truques para algumas crianças não me preocupava, claro. O problema seria deixar Gabe sozinho, durante toda a tarde. Na semana anterior ele pareceu ter sofrido um colapso nervoso, e desde então não saiu de casa nem para trabalhar.
Droga, a preocupação estava acabando comigo, e eu sequer sabia o problema! Aflito, eu vesti um conjunto casual de bermuda e regata e fui até o quarto do Gabe. A porta continuava trancada, então eu bati.
"Gabe, já está acordado?" Perguntei, avistando o céu cor-de-rosa pela janela do corredor. Talvez fossem umas seis da manhã. "Gabe?"
"Quero ficar sozinho." Ele disse.
Eu estalei a língua nos dentes. O que a mamãe faria, numa hora dessas?
"Vou fazer panquecas de café da manhã. Você prefere com mel ou manteiga?"
Gabe nem respondeu. Eu continuei olhando para a porta fechada e coçei atrás do pescoço, pensativo.
"Que tal calda de chocolate, aquela do sorvete?" Insisti. "Deve ficar uma delícia com panqueca, não acha?"
Gabe continuou quieto, então eu apenas suspirei e desci as escadas. Quando descia o segundo degrau, enfim ouvi a voz dele.
"Calda de chocolate parece bom." Falou Gabe, e eu ouvi a porta destrancar.
Me assustei com a aparência do Gabe. A cada dia ele parecia mais com um zumbi, emagrecendo nos braços e com olheiras cada vez maiores. Contribuindo para o olhar sombrio ele vestia roupas grandes demais para ele. Aquela camiseta preta parecia um vestido.
Eu forcei um sorriso.
"Panqueca com calda de chocolate, vai ser!"
Eu espalhei a massa na frigideira, assistindo a primeira panqueca dourar sobre as chamas. Gabe adorava assistir eu jogar as panquecas para o alto, pois eu nunca errava a mira. Mas dessa vez ele apenas deitou a cabeça na mesa de jantar e se fingiu de morto.
Bem, pelo menos ele aceitou comer, dessa vez. Eu fiz uma grande pilha de panquecas e levei à mesa, com pratos para nós dois. O cheirinho gostoso de panqueca fresca tornou-se ainda melhor quando espremi a calda de sorvete em cima, inundando o ar num aroma adocicado.
"Que tal, não ficou lindo?" Perguntei, apontando para a nossa refeição como se fosse uma obra de arte.
Gabe ergueu a cabeça da mesa e me deu um sorriso quieto. Ele pescou as panquecas de cima com o garfo e comeu devagar, sem o menor ânimo.
"Tá gostoso. De verdade." Falou ele, num tom meio mórbido. Mas qualquer palavra vinda do Gabe me aliviava profundamente. Eu já não sabia o que fazer.
"E então... já quer me contar o que aconteceu?" Perguntei, com todo o cuidado. "Não precisa contar, se não quiser."
Gabe olhou pra mim por um segundo, e voltou a comer seu café da manhã.
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O Amante Do Tritão (AMOSTRA)
RomanceAMOSTRA - 75% DA HISTÓRIA DISPONÍVEL Livro completo disponível na Amazon! Gabe odeia a nova cidade. Todos são surfistas, ou donos de loja de surf, e antes de Gabe se mudar ele nunca havia visto o mar. Mas ele precisava tentar fazer amigos, não que...