Acho que enlouqueci, estou enlouquecendo ou apenas flertando com a loucura. Perdi minha concepção do tempo, e o controle sobre meus sentimentos, já não sei onde começa e onde termina a minha dor.
Sinto-me vazia, incompleta, entorpecida. Nunca consegui me encaixar nesse mundo, a tristeza era para mim, lugar comum e a loucura sempre me pareceu mais familiar do que minha própria mãe. Clarice e eu nunca conseguimos nos conectar, nunca tivemos cumplicidade materna ou aquela conversa feminina que toda garota precisa ter com a mãe quando começa a amadurecer, ela sempre se manteve distante como se tivesse medo de ser cativada por mim.
Como não tive irmãos e um título de "pai desconhecido" em minha certidão de nascimento, criar laços com as pessoas sempre foi uma tarefa muito difícil, quase impossível para mim.
Crescer sem uma figura paterna deixou marcas profundas em minha vida, e a verdade é que eu nunca soube lidar com a falta do homem a quem eu nunca conheci. Queria um rosto, um cheiro e um sorriso para lembrar. Queria ter feito presentes no dia dos pais, ter ido ao parquinho em sua companhia, ou que ele estive presente na minha festinha de aniversário. Mas nem seu nome eu sabia: "pai desconhecido", isso era tudo, e por mais que eu lesse essa frase mil vezes, ainda assim eu não me convencia.
Segundo a psicologia, a loucura é uma doença da mente humana que devido à perda da razão difere o comportamento do indivíduo dentro da sociedade. Para grandes pensadores e filósofos, a loucura era uma possessão dos Deuses. No início eu acreditava que minha loucura fosse amorosa, pois eu sofria inteiramente a morte do Rafa, cada parte de mim estava abalada. Mas depois eu descobri que na verdade, eu sempre estivesse no limite da realidade. Minha mente estava doente, tinha delírios e alucinações, eu estava caindo em um precipício infinito e nunca alcançava o chão.
Lembro-me da primeira vez que vi Helena, (sim, eu tinha visões de mim mesma), confiante e altiva, sua retórica era decidida a salvar o nosso futuro. Nesse fragmento do tempo Ela ainda tinha fé em mim. Porém, cronologicamente não recordo o momento exato em que enlouqueci. Talvez a culpa tenha sido das drogas, dos antidepressivos ou até mesmo da morfina, ou quem sabe foi apenas uma questão orgânica.
Meu comportamento insano e desequilibrado foi calando a voz da Helena tão eloquente e segura, aquela figura altiva foi ficando cada vez mais obscura, transformando-se em uma sombra, um delírio, uma lembrança. Às vezes, a qualquer hora do dia ou da noite eu a percebia me observando; olhos melancólicos, pele pálida, as mãos no rosto indicavam que estava sempre fadigada, porém o mais enigmático era que aquela expressão no rosto dela era de quem precisava dizer algo muito importante. Encarávamos-nos por um longo tempo, mas ela nunca dizia nada, em gestos lentos e delicados ia embora.
Desde o acidente decidi deixar a escola, no início Clarisse tentou argumentar, mas depois de muita discussão, limitou-se a dizer sem energia que eu deveria viajar, ir à igreja ou fazer novos amigos. Eu preferia ficar sozinha completamente isolada do mundo. Dentro do meu quarto.
O tempo ia passando lentamente, depois do terrível acidente que me deixou em coma por quase três meses, das insuportáveis dores na cabeça e na coluna, era difícil acreditar que eu ainda estava viva. Sintomaticamente eu já não conseguia respirar e tinha sempre aquela sensação de que havia um punhal atravessado em meu peito, e embora eu estivesse sangrando, minha mãe não vinha me ajudar.
Em um dia desses tão iguais aos outros, ouvi Clarice dizer a uma amiga da igreja, que eu deveria estar grata por estar viva e sem sequelas, contudo o que ela não entendia é que minhas sequelas não estavam em meu corpo, mas sim em minha alma.
Às vezes, eu acordava rezando para que o dia 31 de outubro jamais tivesse acontecido. Então eu fechava os olhos e chorava. Desejava de todo coração que eu pudesse voltar no tempo, o que nunca acontecia. Então eu abria meus olhos, secava as lágrimas e me levantava. Ao sentar à beira da janela, deixava que um raio de sol iluminasse o meu rosto pálido, depois eu acendia um cigarro.
Em minha fase de negação, eu acordava e fingia que o acidente jamais havia acontecido, e então me permitia ser feliz outra vez, até tomava um longo banho e um bom café da manhã. Cuidava de minha aparência como antes, pegava minha mochila e ia para casa do Rafa. Tudo ficava bem, até que a mãe dele ou uma das irmãs atendiam a porta, me chamando aos gritos de louca e assassina. Trazendo-me assim de volta à realidade, para crucificar a minha alma. Isso acontecia pelo menos duas vezes por semana, até que um dia a família do Rafa se mudou, levando todas as lembranças dele embora.
Por muitas vezes pensei em acabar com tudo, deixar pra trás toda a dor e a saudade, porque eu simplesmente não conseguia seguir em frente. E por mais que essa ideia parecesse muito interessante, me faltava a coragem necessária, pois quando se cresce ouvindo histórias sobre o inferno, o medo da morte por suicídio pode ser estranhamente assustador.
Certa noite despertei de um pesadelo daqueles que nos levam para longe da sanidade, e mesmo depois de acordados, ainda custamos a voltar para a realidade, eu estava trêmula, suada e com frio.
Chovia torrencialmente e a janela do meu quarto estava aberta, a água da chuva encharcava meu tapete e o vento soprava as cortinas fazendo aquele barulho tenso e ensurdecedor, mas eu não reagia àquela cena.
Estava sonolenta, louca, anestesiada. Pensei em voltar a dormir, porém estava com muita sede, por isso decidi ir até a cozinha para beber um copo de água. Devo confessar que dificilmente eu sentia fome, ou sede. Alimentava-me muito mal e até a minha higiene pessoal estava desleixada, talvez esses fossem os primeiros sintomas da minha loucura, talvez eu precisasse de algum tipo de tratamento, mas Clarice não ouvia os poucos que se importavam, apenas ia para igreja e rezava. Eu estava sozinha, e isso já não fazia a menor diferença.
Naquela noite enquanto caminhava de forma robótica pelos corredores gélidos e escuros de minha casa, senti que não estava sozinha, havia uma presença com a qual eu não me incomodava, os relâmpagos então iluminaram a janela, revelando o meu rosto, o rosto de outro eu, o rosto de outra Helena. Porém a atmosfera daquele encontro estava diferente de todos os outros. De repente estávamos ali frente a frente, Ela estática, vestindo o vestido gótico vermelho, a mesma roupa que usamos no dia do acidente, mas a maquiagem estava borrada, o rímel preto escorria dos olhos para o rosto, os longos cabelos negros molhados, grudavam no tronco e nas mãos dela havia sangue.
Como o de praxe nos olhamos por um longo tempo, mas essa foi a primeira vez que percebi em meus próprios olhos, que Helena estava pedindo a minha ajuda.
Não adiantava inventar subterfúgios, eu havia enlouquecido.
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O Tempo
Mystery / Thriller"Jamais poderemos entender os mistérios do tempo" O Tempo é uma viagem cronológica cheia de suspense e mistério através de uma mente perturbada. Helena não era uma adolescente como as outras da sua idade e todos seus defeitos e qualidades a faziam...