Quando Ela Ainda Tinha Fé em Mim

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"O dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente"
- O Teatro Mágico

Certa noite eu estava no meu quarto ouvindo   "O anjo mais velho", música do Teatro Mágico, tinha acabado de fumar um baseado, e agora estava ali em meu estado de dormência, segurando aquele porta retrato contra o meu peito, na foto Rafael sorria.

"Só enquanto eu respirar vou me lembrar de você"

De repente senti uma súbita raiva, Rafael havia ido embora e não me levara com ele, as juras de amor jamais deveriam ser quebradas. Arremessei o porta retrato contra a parede e Clarice preocupada entrou no quarto.

- Que barulho foi esse?
- Que merda é essa de entrar no meu quarto sem bater?
- Isso é jeito de falar com a sua mãe? Você prometeu que ia à igreja comigo! Nossa que cheiro estranho!
- Que cheiro? Tá maluca?

Tentei esconder meu outro cigarro de maconha, mas Clarice foi mais esperta.

- Helena, o que é isso aí na sua mão?
- Na minha mão?! Nada! - menti cinicamente.
- Dá-me isso aqui! - Clarice retirou o cigarro com força de minhas mãos. - Mas o que significa isso?
- Um cigarro?
- Isso é maconha?
- Sim é um baseado? - confessei - Satisfeita? O que você esperava?

Clarice olhou-me tão decepcionada, quanto eu estava envergonhada.

- Minha filha, você não precisa disso...

Sim eu  precisava, Clarice jamais entenderia, mas o que eu já não precisava era que ela me dissesse o que era certo ou errado, eu fazia as minhas próprias leis.

- Clarice faz um favor pra mim? Saí do meu quarto! - gritei.
- Helena isso é muito sério, e eu não vou admitir esse tipo de comportamento...
- Eu é que não vou admitir lição de moral sua agora!
- Sabe há quanto tempo você não saí de casa durante o dia? Não se alimenta direito, já não vai à escola! Minha filha você só tem dezesseis anos!
- E o que você esperava que eu fizesse?
- Eu não vou deixar que você destrua a sua vida!
- Vida? Que vida? Às vezes eu acho que também morri naquele acidente! Nada mais me importa...
- Não diga uma coisa dessa! Você precisa confiar em Deus!
- Deus? O seu Deus que me tirou o Rafa? Que tipo de Deus faz isso? Perdoe-me, mas não acredito em mais nada disso!
- Minha filha, nunca mais repita isso, Deus é maravilhoso! Mesmo que a gente não entenda os seus desígnios, ele é perfeito em tudo que faz!
- Ele só tinha dezoito anos!

A dor estava exposta como uma ferida que sangrava sobre minhas palavras.

- Eu conheci a dor da perda bem de perto Helena... não deixe que ela destrua a sua alma como destruiu a minha!

Clarice tinha lágrimas nos olhos, eu estava surpresa por ela enfim expor seus sentimentos.

- Então me ajuda! Fale sobre a sua dor... Você já amou alguém assim como eu amei o Rafa? Você amou o meu pai?

Clarice estava pálida, seus lábios sem cor tremiam, eu havia cruzado o limite e tocado em nosso assunto proibido. Mas eu não esperava por uma resposta. Nesse momento, meu telefone tocou, profanando o gélido silêncio.

- Fala Cara! - atendi - Lógico que vou! Vocês vêm me pegar que horas? Combinado! Não se preocupe, eu vou levar a "parada"...

- Aonde você vai?
- Não é da sua conta?
- Filha por favor, não saía!

Eu não estava entendendo porque Clarice havia resolvido dar uma de mãe  naquela noite, mas já era tarde demais. Esperei por muito tempo que ela confiasse em mim, e dividisse seu fardo comigo, mas ela fora incapaz.

- Cala a boca! - gritei - A sua voz está me irritando, não quero ouvir mais nada!

Clarice estava muito perturbada, nós nunca havíamos discutido naquele tom.

- Você nunca falou assim comigo!
- Cara na boa, saí do meu quarto, eu não quero mais falar com você! Preciso terminar de me arrumar!
- Você não vai sair dessa casa hoje! Eu sou sua mãe e você precisa me respeitar!

Bati palmas para atuação dela, estava perfeita: uma mãe firme, zelosa e preocupada.

- Ok Clarice, como você quiser! Mas saia do meu quarto! Eu quero ficar sozinha!
- Helena...
- Saí!

Clarice então saiu, pensei em ir atrás dela e pedir desculpas, mas não o fiz.

Fiquei ali parada, nem sei por quanto tempo, quando recuperei minha consciência, havia uma moça em meu quarto, e ela era exatamente igual a mim, mas seu olhar de reprovação revelava imenso disposto pela minha existência.

- Quem é você?
- Eu que pergunto Helena, quem é você? Já não a reconheço mais.
- Como assim? Mas que brincadeira é essa? Clarice! - gritei, confesso que estava com um pouco de medo.
- Ela não vai te ouvir! Está no quintal chorando enquanto reza por você! Podre mulher, um dia você se arrependerá de ter sido tão cruel com ela.

Permaneci em silêncio, não havia resposta. Eu dava a Clarice tudo aquilo que havia recebido dela. Éramos exatamente iguais: carne e sangue.

- Fique sabendo que eu não tenho medo de fantasmas, nem dessas minhas alucinações que acontecem quando estou "brisada".
- Olhe bem pra mim Helena! Eu não sou um fantasma... eu sou você!
- Você espera que eu acredite numa loucura dessas?! - disse e depois sorri de forma exagerada.

- "Pai desconhecido"- Ela disse depois de um longo silêncio - Você pode não ter medo de fantasmas, mas essa frase vem lhe assombrando por toda a sua vida!

Senti um frio na espinha, meu tormento mais obscuro havia sido revelado, e ninguém poderia saber de algo que só estava dentro de mim.

- Eu estou  enlouquecendo?

Era como me olhar no espelho, apesar de parecer uma versão minha dez anos mais velha, tínhamos o mesmo rosto, os mesmos movimentos e o mesmo olhar.

- Por que você está aqui? - perguntei no momento em que eu realmente acreditei nela.
- Já não suporto mais esse sofrimento! Eu te vejo nos meus sonhos... Você está em todas as minhas lembranças! Eu sinto a sua dor! Então eu finalmente percebi que se você continuar a agir dessa forma, eu não vou continuar a existir, desse jeito como eu existo!
- Mas eu não entendo. Você não é o meu futuro?
- Não Helena, eu sou a história que foi escrita pra você! Mas como qualquer outra pessoa, você é livre para fazer suas próprias escolhas e mudar o seu tempo futuro.

- Eu não espero mais nada do futuro, desde quando o Rafa se foi, nada mais faz sentido!- Eu não vou mentir para você, essa saudade nunca vai passar! Mas se você fizer as escolhas certas, teremos uma chance para ser feliz! Novos horizontes e recome...

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- Eu não espero mais nada do futuro, desde quando o Rafa se foi, nada mais faz sentido!
- Eu não vou mentir para você, essa saudade nunca vai passar! Mas se você fizer as escolhas certas, teremos uma chance para ser feliz! Novos horizontes e recomeços! Acredite em mim Helena o tempo pode nos curar.
- O tempo pode me fazer esquecer o Rafa?

Ela não respondeu.

O telefone voltou a tocar, era a Milena, uma das pessoas com quem eu iria sair naquela noite. Enquanto eu decidia se deveria atender, Ela se foi, levando consigo todas as resposta. Então eu disse para mim mesma, e sei que dentro de mim ou em algum lugar no tempo Ela pode ouvir.

"Se o tempo pode me fazer esquecer o Rafa,  então que amaldiçoado ele seja"

Atendi o telefone.

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