Senhor José Portes - Parte I. "Adeus minha mocinha"

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"Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Muito prazer, ao seu dispor
Se for por amor às causas perdidas"

   -Dom Quixote. Engenheiro do Havaí

Acordei com as luzes excessivas  do sol que invadiram todo o quarto, quando Thiago abriu as cortinas da janela. Eu queria acreditar que a noite passada tivera sido apenas mais um de meus terríveis pesadelos, e fugir daquela  cruel realidade, e por mais que essa fosse uma habilidade intrínseca minha, dessa vez parecia ser impossível, porque haviam dois pontos de uma sutura recém realizada em minha cabeça, uma perna imobilizada, algumas costelas possivelmente fraturadas e um coração totalmente dilacerado.

- Preciso que você se vista e vá tomar o café da manhã! Não podemos nos atrasar para o enterro! - a voz de Thiago soava diferente, sua postura era tensa e seu olhar "vazio".

"Enterro" aquela palavra acertou-me em cheio, provocando uma dor aguda em meu peito.
Levantei-me com muita dificuldade, apoiando o peso do meu corpo em uma só perna. Era difícil encontrar o equilíbrio e ainda haviam dores insuportáveis em meus membros.

- Nem consigo olhar para você Helena, não sei qual de vocês dois foi o mais imprudente!

Caminhei em passos lentos, e mesmo com toda minha dificuldade de locomoção, Thiago não me ofereceu ajuda.

Ao chegar no banheiro, despi meu pijama com cuidado, revelando diversos hematomas em meu corpo, o que confesso ter me deixado bastante nervosa.

Para cada movimento que eu fazia, um flash da sequência cronológica até a morte do senhor José era disparado dentro minha mente.

Olho no espelho: A imagem do rosto do senhor José em meu quarto;

Ligo o chuveiro: O som estridente do tiro sendo disparado, corro em desespero pela casa;

Retiro a imobilização móvel de minha perna: Meu corpo em queda livre pela escada;

Entro no box: Vejo a sombra turva do demônio.

Mas de repente, aqueles flashes foram ficando cada vez mais nítidos, e a graduadamente a sombra foi ganhando formas, detalhes e cores. Revelando um rosto magro de olhos fundos e sorriso perturbador. O rosto de Otto.

Então os flashes se apagaram e me senti culpada, sozinha... consternada. Sucumbi ao pranto de forma desordenada, quase compulsiva. Havia um enorme buraco em minha alma, um vazio que jamais seria preenchido.

Voltei para o quarto e encontrei Thiago sentado na cama totalmente desconectado da realidade, olhando para um ponto fixo e ao mesmo tempo para o nada. Eu sabia bem que a dor estava o consumindo por dentro, mas ele parecia evitá-la. Queria conforta-lo, e também me sentir confortada, afinal compartilhávamos o mesmo sentimento, por que não poderíamos encontrar força um no outro? Tentei abraçá-lo, mas ele recusou o meu toque.

- Vou esperar por você na cozinha!

Meu marido mal olhava-me nos olhos, e por um momento não reconheci aquele rapaz meigo por quem eu me apaixonei, algo no mais profundo do âmago de Thiago mudara. Ele não havia apenas perdido o pai a quem amava incondicionalmente, ele havia perdido a sua
essência.

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