Capítulo 27 - "Algos (dor)"

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Enquanto o avião realiza as manobras na pista, minha mente divaga em memórias. Toda minha vida passa diante dos meus olhos. Procuro os momentos bons e eles são escassos. Preciso recolhê-los, fragmento por fragmento. O resto eu separo por capítulos e os guardo, afinal fazem parte de mim. Sinto as turbinas acelerarem, na medida inversamente proporcional ao meu coração. É chegada a hora. Um impulso breve e estamos no ar, subindo. Sinto um vazio sem precedente. Adiante irei preenchê-lo. Não antes de acertar as contas comigo mesmo. Preciso matar o que me mata e abrir as porteiras da energia represada ao longo deses trinta anos agora completos. Dor, medo, solidão, ira...Essa parte de mim morrerá. Sei que existe algo além disso, existe no fim das contas ela, Luna: a melhor parte de mim. Chega de fugir. Encararei meu maior dragão: eu mesmo. Não tenho mais nada a perder. Espero que o meu lado morto não me comprometa por completo. 

—Dion, tudo bem? — Ariadne pergunta, com um ar de preocupação. Está bem ao meu lado, me segurando forte. Conseguimos trocar de lugar.

— Medo de voar doutora? — respondo, com um traço sutil de sorriso no rosto.

— Muito! Caramba. Meu coração está a mil. 

— Bem diferente do meu..— penso, contemplando-a.— Estou refletindo sobre nossa aventura chamada vida. percorrendo todo o labirinto! Pretendo abrir todas as janelas da minha alma. Deixar a luz entrar. — respondo em tom baixo e cadenciado.

— Assim que chegarmos, iniciaremos a terapia. Vou te apresentar um cara que trabalha com analise, um parceiro. Pode confiar nele. Sei como você é em relação à confiança, segredos, intimidades..mas tem que ser assim. 

—Ainda não estou preparado pra iniciar o processo. Preciso resolver uma particularidade.

— Como assim? Qual? —Ela pergunta incrédula.

— A energia recalcada...eu preciso devolvê-la ao caos. 

—Acharemos um jeito de canaliza-la. Eu sei que existe muito rancor, muita ira e muita raiva nessa sua cabeça dura, Doutor fantasma. Mas, isso todos temos..

—Tens razão. Todos temos. Mas não sou como a maioria. Eu me conheço. Sem liberá-la do meu jeito, não existirá recomeço, não existira metamorfose. 

—E quando você deseja começar a mudança Dion? Se permita, meu amor...

—Não é questão de se permitir, Doutora. É questão de justiça!

—O que aconteceu? Me conta? 

—Talvez um dia! Quando for o tempo saberás. — respondo por fim, com uma dose de cinismo.

— Tenho medo desse seu lado...Dion. Isso pode te matar...esse seu "lado".

—Não a mim, Doutora! — interrompo de maneira taciturna. 

— É esquisito, mas eu tenho que concordar com isso. Eu me preocupo, fico inquieta, mas sei que de alguma forma você sempre consegue se superar. Eu o amo, meu "lobo". O irmão que não tive!

—Amor! A única força capaz de transformar.

—Tão simples e tão complexo! — ela diz, pensativa.

—Em breve simples, apenas!

—Se depender de mim, no menor tempo possível. Podes contar comigo!

— Agradeço minha flor. 

—Por falar em amor... —Ariadne tenta adentrar num ponto de areia movediça.

—Estou morto, Garota! Tudo a seu tempo...por hora, guerra!

— Vamos lá, Dion. É ela não é? Ela tem a chave...vamos, coração de pedra. Nunca te vi assim. Eu sei que existe algo ai dentro pulsando acorrentado e ferido. Mas essa energia, meu amor, um dia transbordará. Quero presenciar esse dia. O dia da rendição! — ela pergunta sorrindo, tentando aplacar minha face fria e embotada. 

Respondo com um sorriso dissimulado e sutil, que não me representa.

— Não existe mais nada aqui! Tudo ficou pra trás. As peças do tabuleiro estão no chão. Sem essa de "xeque-mate"!

— Eu duvido muito disso, fantasma. —ela fala sorrindo. —Por sorte, o seu coração não depende da sua razão. É questão de tempo e o amor baterá em sua porta num lindo dia de sol. Encontraram o coração da fera! — ela zomba, para quebrar o clima. 

—Precisamos descansar, Ariadne. Passaremos horas nessa lata voadora...

—O velho e conhecido Dionísio, senhor da quebra de discursos. Só mais uma coisa: e o mestre budista Sidharta? Conseguiu contato com ele?

—Ele já aguardava minha ligação. Não sei como, depois desses anos todos, mas ele aguardava minha ligação. Voltarei a frequentar o templo. Sinto que ele tem as respostas que preciso!

—Não perca tempo então! Eu o adoro também. É um homem que vive além do seu tempo. Tudo certo. Vamos dar a volta por cima. Você precisa voltar para seu mundo. Sabes bem onde é!

— Só sei que nada sei...

—Existe uma razão socrática por trás dessa imperativo e você Dion, mais do que ninguém, sabe bem. 

—Todos os indivíduos sabem bem os caminhos que devem percorrer e as verdades que devem guiar seu horizonte. Só precisam aceitar isso e compreender.  

— Exato...

—Luna é seu porto seguro, Fantasma. Não minta pra si mesmo. Não fuja do seu caminho. Essa é a sua verdade. Enfim, descanse essa cabeça atormentada.  

— Ela não entenderá...eu a abandonei. —digo, enquanto a tristeza me corrói.

—Não se trata de razão. O coração dela sintonizou o seu. Eu sei o que vi. Apenas se fortaleça e volte... o resto já está feito...é amor!

—Preciso descansar! Deixemos o acaso moldar nossa realidade.

— Não esconda o jogo Dionísio Hilst. Eu o conheço bem! 

— Não duvido. Vou dormir...quando acordar, bem longe de tudo,  começo o processo de mudanças, Doutora.

— Tudo bem. Que seja então. Evoé!!!!

— Evoé!!

Apago as luzes da minha alma e trago Luna para o centro do meu palco. Puxo-a da mente aturdida uma imagem  dela que me faz pleno por um fragmento de tempo: Aquele sorriso belo e radiante sempre que a colocava em meus braços. Nesse instante, um arrepio percorre meu corpo e sinto meu sangue pulsar cálido, em meio ao caos. Se voltar, será por ela e pra ela! A regra cartesiana só nos serve para objetivos materiais, que não nos preenche a vida. "penso, logo existo!" é um grito de desespero limitado e incoerente. Permaneci nisso por muito tempo...razão. Agora, me darei a chance de experimentar outro caminho. Seguirei outra lei imperativa: "sinto, logo existo!". Essa será a cor da minha alma...façamos a vida antes que ela nos faça. Eis a minha lei! EVOÉ! 



____________ CONTINUA_________________________________



"DIONÍSIO" - Manipulador (Livro I)(COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora