Capítulo 1

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Levantei em sobressalto com aquele pesadelo horrível. Mesmo passando-se mais de oito anos, o episódio não me abandona e fica difícil até ter noites tranquilas. Ainda lembro, por mais vago que possa ser, de tudo que aconteceu. Da paz que reinou pouco antes da tragédia ocorrer e do vazio imensurável que senti quando tudo acabou. A dor de cabeça não se comparava ao peito dilacerado por perder tudo em alguns míseros segundos. Fiquei ainda pior ao chegar em casa depois de passar dias no hospital pela concussão e saber que jamais os veria novamente; eles estavam em um trabalho permanente em outro plano.

Morar com Rebecca tornou tudo ainda mais conturbado. Ela pegou minha guarda e a enorme fortuna de nossos pais, que administraria até que eu completasse a maioridade. Para mim, minha irmã foi a culpada indireta pelo que aconteceu e ninguém pode mudar isso. Foi péssimo ter que olha-la nos olhos e me calar diante do que houve. Queria esgana-la com meus próprios dedos até ver as esferas azuis saltarem das órbitas. Levei muitos anos e várias sessões de terapia para conseguir controlar esse desejo e conviver com o mínimo de serenidade.

Além do mais, existe outra razão pela qual a harmonia é necessária na casa: uma criaturinha conhecida por Larissa. Ela é a coisa mais fofa que já vi, a íris era em um azul gelo que hipnotizava quem olhava e os cabelos longos num loiro tão claro que pareciam pintados. Desde que nasceu a chamo de Rapunzel e o apelido acabou pegando, afinal ela era uma princesinha com uma mãe muito má.

Levantei com uma dor de cabeça horrível e fui tomar um banho. Na verdade, eu queria ser engolida pela cama e esquecer que existe um mundo lá fora, mas precisava ir para a escola. Sempre fui uma boa aluna, mas minha energia social estava cada vez menor. Não era tão ruim, afinal já estava no último bimestre do terceiro ano do Ensino Médio e no ano que vem provavelmente estaria cursando Direito em alguma excelente universidade. Isso era um grande consolo para minha alma aflita.

Sou extremamente antissocial, talvez esse seja o motivo para tanta aversão pela unidade escolar; meus únicos amigos são Aline e Fredy, eles são os melhores. Já fizemos muitas coisas juntos, como pular de paraquedas nas férias de dois anos atrás ou sair por uma semana de carro sem rumo em pleno abril. Fredy foi contra essa última, alegando que haveriam consequências por faltarmos tanto, mas nos acompanhou mesmo assim. Antigamente outra pessoa ia conosco nessas aventuras, meu ex-namorado Leonardo, infelizmente ele preferiu fugir de tudo após acabar a escola e nunca mais apareceu.

Assim que acabo de descer as escadas, dou de cara com Larissa assistindo tv e comendo cereal. Ela já estava com o uniforme escolar e uma tiara cor-de-rosa brilhante nos cabelos presos em rabo de cavalo.

— Como vai a minha Rapunzel? — enchi-a de beijos, ouvindo a gargalhada gostosa ecoar — Não devia estar escovando os dentes para ir à escola, mocinha? A van chega daqui a pouco.

— Ah, tia, já estou indo... — respondeu manhosa, largando o cereal na mesinha de centro — Mamãe preparou café antes de ir trabalhar hoje, sabia?

Arqueei as sobrancelhas.

— Sério?

— É, tia. Conversou bastante comigo também, acredita? Será que mamãe começou a gostar de mim, tia?

— Ela gosta de você, minha linda. Só é uma pedra de gelo para demonstrar — acariciei os cabelos dela — Agora coloque a tigela na pia e vai escovar os dentes, mocinha.

— O desenho está tão legal... — disse sapeca, coçando os olhos.

— Nada disso, vai logo.

Ela fez biquinho e ouviu o que pedi. Larissa chegava apenas à tardinha, quando eu ou Rebecca passávamos para pegá-la. Era melhor que estudasse no período integral, não teria tempo de pensar no descaso da mãe com ela e agradecia por minha sobrinha ser alegre apesar disso.

Cecília - Em Busca da Verdade (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora