Capítulo 2

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Cheguei em casa por volta da uma da tarde, sem o mínimo de apetite. Era assim em alguns dias desde que meus pais se foram: eu chegava da escola com nada no estômago e praticamente continuava até as sete ou oito horas da noite. Os médicos classificaram um distúrbio alimentar agudo, que com o acompanhamento certo e os medicamentos necessários, pôde ser tratado. Hoje em dia vivo bem melhor, consigo me alimentar e recuperei a minha saúde.

Peguei um cacho de uvas, lavei e andei até a sala comendo algumas na marra. Depois que comentei que mudaria de casa para Fredy e Aline e expliquei os motivos, eles me felicitaram por ter conseguido um imóvel bom e perto da escola. Claro que seria por pouco tempo, pretendia cursar faculdade em outro Estado e me distanciar ainda mais da minha irmã. Mas ainda não decidi, afinal tenho a Larissa para cuidar e definitivamente não me vejo abandonando-a por tantos anos.

Rebecca bateu a porta da frente e apareceu no hall. Encarei-a sem esboçar a menor reação. Ela era amarga e ranzinza, mas a pose era igual a de papai; demonstrava ser um ser superior e, portanto, poderia esmagar quem quisesse com os saltos caros que usava. Eu não me deixava intimidar, por mais difícil que pudesse ser.

— Voltou mais cedo da escola! — observou, aproximando-se.

— Hoje não tive Educação Física, mas amanhã fico até tarde.

— Ótimo, porque preciso que pegue Larissa na escola para mim. Não tenho hora para chegar amanhã.

Confirmei com a cabeça. Antes que ela abrisse a boca novamente, eu levantei do sofá e caminhei até a cozinha com a tigela vazia. Eu a odiava tanto que mal podia escutar sua voz, era como se me matasse ouvir as hipocrisias que saíam de seus lábios vermelhos e marcados.

Quando caminhei até a sala, ela já não estava mais. Suspirei de alívio e subi as escadas rapidamente. Tranquei a porta do quarto, joguei-me na cama e peguei o livro que dormi lendo ontem. A história começa quando uma caloura da faculdade descobre que o meio-irmão faz apostas em corridas de rua e decide experimentar a sensação das pistas, mas com um capacete escondendo sua verdadeira identidade. Ela é tão boa que apelidam-na de Rei da Rua e veneram a corredora mais habilidosa e rápida que já passou pelas ruelas, sem saberem quem é realmente. Até que era legal, embora esteja só no início.

Fechei os olhos por alguns segundos, imaginando uma realidade diferente da minha. Às vezes queria apenas me encolher na cama e esquecer que existe mundo lá fora, esquecer do que levou meus pais para longe de mim, do moleque que me abandonou quando eu mais precisava e da garota que mais parece um carrasco com todos. Meu cérebro implorava por algo que não podia dar, um descanso que não podia ocorrer e infelizmente eu estava sozinha para enfrentar aquilo. Parece tão impossível me reerguer e vencer as minhas batalhas internas que me perco dentro da minha própria frustração.

Eu não era complicada assim. Antes era mais fácil controlar meus demônios, as lutas eram ganhas sem muito esforço. Hoje, infelizmente, meu psicológico estava abalado e me mostrava as coisas de maneiras distorcidas, como se eu fosse fraca para lutar contra o que me faz mal internamente. Esses pensamentos mudaram um pouco desde que comecei a terapia, mas ainda assim, para mim, parecia impossível vencer.

Passadas as horas, Rebecca chegou com Larissa em casa; a baixinha veio correndo até mim no quarto. Distribui beijos por todo seu rosto e perguntei sobre suas aulas, recebendo algumas respostas engraçadas criadas pela imaginação dela. Aproveitei o momento para comunicar que mudaria de casa na próxima semana, quanto mais cedo mais fácil ela entenderia.

— Preciso falar com você, Rapunzel — ela me encarou curiosa e apoiou as duas mãos no queixo — Sabe quando a titia falou que um dia não dormiria mais aqui?

— Uhum...

— Então, esse dia chegou. Titia arrumou uma casa para morar, mais perto da escola e...

— Vai me deixar? — estreitou os olhos, ressentida — Vai mesmo fazer isso, tia?

Abracei-a fortemente.

— Vou ficar sempre perto de você, te pegar na escola sempre que possível e pode dormir lá em casa quantas vezes quiser, meu amor. É muito difícil não poder te levar comigo, mas entenda que é o melhor a se fazer por agora...

— É pela mamãe?

— Não, amor, fique tranquila! — beijei seu rosto uma última vez — Quer saber, amanhã vamos tomar sorvete depois da aula, o que acha?

Os olhos de Larissa sorriram e ela concordou pulando na cama.

— Quero, quero, quero! — bateu palminhas.

— Ótimo, agora vamos para o banho que estou sentindo o cheirinho daqui! — ela fez careta e cruzou os braços — O quê?

— Vai ter que me pegar primeiro, titia!

Larissa pulou da cama e saiu desgovernada pela porta. Corri atrás dela como uma maluca, agarrei seus braços e fiz barulho com a boca em sua barriga. Minha sobrinha soltou aquela gargalhada gostosa e se rendeu ao banho. Ajudei-a a tomar e escolher a roupa. Era assim quase todos os dias, Rebecca não era muito ligada à menina e isso fez com que eu, indiretamente, tomasse o seu lugar em muitas lacunas na vida da garotinha de cabelos loiros.

Peguei em sua mãozinha e descemos as escadas devagar. Rebecca estava saindo da cozinha quando atravessamos a sala, encarando-nos como se fôssemos dois seres de outro planeta. Ela tinha esse modo de nos olhar, julgando e apedrejando sem nem ao menos saber o que se passa. O modo de dizer: "olhe como vocês são patéticas!". E eu a odiava um pouco mais por isso.

— Ia subir para chama-las agora mesmo!

— Já estamos aqui...

Servimo-nos de arroz e feijão, carne, legume e salada. Um jantar caprichado e que eu agradecia imensamente por poder ter. Rebecca cozinhava bem, apesar de detestar. Eu já apanhava muito na cozinha, era um desastre ambulante e minha irmã me expulsava sempre que podia. Acho que nunca consegui aprender por isso, nós nos detestamos tanto que mal conseguíamos ficar na presença uma da outra.

— Titia, quando for dormir na sua casa, vai fazer comida gostosa assim para eu comer? — Larissa lambeu os lábios.

Rebecca me encarou de soslaio.

— Tio Google vai ensinar a titia a cozinhar e aí vou fazer essas comidas gostosas para você comer lá em casa!

— Vai se mudar? — Rebecca questionou, pasma.

Confirmei com a cabeça.

— E pretendia me contar quando?

— Talvez percebesse quando não tivesse mais ninguém para ofender.

— Não pode fazer isso!

— Ah, é? E por que não? — arqueei a sobrancelha.

Rebecca olhou para Larissa, o que significava que ela precisava sair. A garota pegou seu prato e copo de suco e foi correndo para o quarto.

— Preciso de você aqui, Cecília! Larissa...

— Nada disso, não vai mais fugir das suas responsabilidades. Larissa é sua filha, quem deveria fazer tudo o que faço por ela é você.

— Sabe que trabalho, tenho minhas coisas para fazer.

— E vai me dizer que isso não é só uma desculpa para não encará-la? Arthur te abandonou, uma pena, mas a vida tem que seguir. Ela é um ser humano, com tristezas, medos e amor. Seria bom que ao menos soubesse trata-la, não consegue enxergar a beleza interior da sua filha por causa de um homem maldito. Isso é injusto, Larissa não pediu para vir ao mundo! Além do mais, quantas mães solteiras dão conta de tudo? Por que você tem que ficar se lamentando pelos cantos?

— Não sabe de nada, Cecília — por um breve momento vi seus olhos encherem de lágrimas, mas ela virou de costas antes que eu pudesse averiguar — É bom que parta para ver que a vida não é tão simples quanto pensa! 

Cecília - Em Busca da Verdade (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora