Capítulo 3

1.7K 63 1
                                    

Cara levantou-se inquieta. Mal pregara olho a noite toda. Tinha vontade de desaparecer, sumir, para não ter de tolerar os desaforos da família de Osvaldo, inconformada com o que acontecera. Eles lhe telefonavam ameaçando denunciá-la à polícia caso Osvaldo fizesse
uma besteira. Se ao menos ela tivesse idéia de onde ele havia se metido!
A atitude dele era de esperar. Nunca fora capaz de enfrentar nenhuma dificuldade. Quando um problema aparecia, tratava logo de fugir, deixar para depois. O pior era que sempre
colocava a culpa nos outros. Nunca reconhecia as besteiras que fazia.
Claro que encontrá-la aos beijos com Válter fora um choque. Por que se deixara envolver pela tentação? Sentira-se atraída por ele desde que o vira pela primeira vez na casa de seu
cunhado Antônio.
Além de bonito, inteligente, alegre, Válter possuía um magnetismo forte, que fazia com que o coração dela disparasse quando ele a fixava. Clara lutou contra aquela atração. Nunca
havia traído o marido naqueles dez anos de casamento.
Reconhecia que Osvaldo, apesar de não ser o homem de seus sonhos, era dedicado à família, trabalhador e a amava muito.
Válter era o chefe de Antônio e o ajudara muito a fixar-se na empresa e a melhorar seus vencimentos. Tornaram-se amigos e, como ambos eram solteiros, passaram a sair juntos,
um freqüentando a família do outro. Por isso, sempre que Clara ia à casa da sogra aos domingos ou em qualquer reunião da família, encontrava Válter.
Com o tempo, conhecendo-o melhor, passou a admirar seu jeito de ser. Estava sempre alegre, tudo para ele era fácil. Vivia de bem com a vida, tinha idéias próprias, não se
deixando levar por ninguém.
Antônio vivia contando como Válter enfrentava os desafios na empresa com coragem, determinação, e acabava levando a melhor.
Esse era o tipo de homem com o qual Clara sonhara ter casado. Não podia evitar compará-lo a Osvaldo, que perdia cada dia mais. Nunca ele lhe parecera tão inexpressivo, sempre
evitando problemas, contornando situações, com medo de enfrentá-las.
“Válter não faria isso!”, pensava ela.
Um dia aconteceu o inevitável. Num momento em que ficaram a sós na casa de sua sogra, ele a tomou nos braços, beijando-a rapidamente nos lábios. O coração de Clara disparou,
suas pernas tremeram e ela perdeu o fôlego.
Mas o ruído de Dona Neusa voltando à sala separou-os imediatamente sem que trocassem nenhuma palavra.
A partir daquele dia, Válter começou a telefonar para sua casa dizendo-se apaixonado.
Queria marcar um encontro em algum lugar, mas Clara, apesar de viver desejando isso, recusava-se. Tinha medo do sentimento forte que começava a tomar conta de seus
pensamentos, não a deixando em paz.
Finalmente concordou. Uma tarde, enquanto as crianças estavam na escola, ela saiu discretamente, tomou um táxi e foi ao encontro de Válter em um apartamento na periferia.
Quando ele abriu a porta, ela sentiu vontade de recuar. Ele, porém, puxou-a pelo braço, fechou a porta e abraçou-a com força, beijando-lhe repetidamente os lábios.
Clara deixou-se dominar pela emoção. Entregou-se às carícias dele com paixão, descobrindo emoções que nunca se julgara capaz. Foi um encontro inebriante.
De repente ela olhou para o relógio, dizendo assustada:
— Tenho de ir. Preciso pegar as crianças na escola.
— Quero ver você amanhã.
— Não sei. Tudo isso é uma loucura. Temos de parar. Sou casada, tenho filhos, não posso continuar com isso.
Válter abraçou-a com força, beijando-a longamente nos lábios.
— Fomos feitos um para o outro, Clara. Não podemos negar isso.
— Você apareceu em minha vida um pouco tarde.
— Nunca é tarde para o amor.
— Não posso fazer isso com Osvaldo. Ele não merece.
— Sei que não. Mas eu a amo e você me ama. Nós não merecemos sofrer. Amanhã à tarde quero tê-la em meus braços de novo.
— Não sei. Você tem de trabalhar.
— Eu posso sair sem problemas. Você também pode.
— Agora tenho de ir. Não posso esperar nem mais um minuto.
Ela saiu, conseguiu um táxi e pelo caminho tentou acalmar suas emoções em conflito. Não
podia continuar com aquilo. Não iria encontrá-lo no dia seguinte, nem nos outros dias.
Contudo, no dia seguinte, conforme o tempo passava e a hora que ele marcara se aproximava, a decisão de Clara de não ir ao encontro ia enfraquecendo.
Quando deu por si, estava dentro do táxi, arrumada, cheirosa e com o coração batendo de ansiedade para o novo encontro.
Durante uma semana eles se viram todas as tardes. Depois, Clara conseguiu dominar-se.
Ele precisava trabalhar e ela não queria prejudicá-lo. Acabaram combinando encontrar-se
duas vezes por semana naquele local.
Entretanto, continuavam se encontrando nas reuniões de família e Clara fazia enorme esforço para não demonstrar o que sentia. A cada dia sentia-se mais apaixonada e Válter
correspondia.
Um dia aconteceu o inevitável. De repente, Osvaldo percebeu uma troca de olhares, um gesto de intimidade. Desconfiou. Sentiu o sangue gelar nas veias à simples hipótese da
traição. A cada dia sentia aumentarem suas desconfianças.
Resolveu investigar. Contratou um detetive e logo descobriu onde Clara ia duas vezes por semana e com quem se encontrava. Preparou o flagrante e naquela tarde, quando ela tomou
o táxi, seguiu-a. Ficou lá, em frente à porta do apartamento, esperando que ela saísse.
Quando a porta se abriu, ele pôde ver Válter abraçando e beijando Clara com paixão. Não se conteve. Atirou-se sobre eles gritando:
— Traidores! Vou acabar com vocês!
Os dois, paralisados pela surpresa, separaram-se imediatamente.
Osvaldo agarrou Clara pelos braços, sacudindo-a vigorosamente:
— Por que você fez isso? Por quê? Vou matar vocês dois! Nunca pensei que pudessem ser tão vis.
Válter tentou colocar-se entre os dois enquanto o detetive mais seu ajudante que fotografara a cena intervinham, conseguindo separá-los.
— Que é isso, seu Osvaldo? — disse o detetive. — O senhor prometeu não usar violência. Temos a lei do nosso lado. Não vou permitir que agrida ninguém. Acalme-se. Somos civilizados. Vamos conversar e ajustar tudo dentro da lei.
Osvaldo, pálido, conteve-se a custo. A dor era tanta que ele ficou sem saber o que dizer.
Clara chorava assustada, pedindo que não a matasse.
Mesmo agora, quase um mês depois, ela não conseguia esquecer o terror daquele momento.
A partir daí sua vida tomou-se um pesadelo. Sua sogra viera pedir-lhe contas e ameaçara tirar seus filhos.
— Você não é digna de tomar conta deles. Qualquer juiz me dará ganho de causa. Não pense que vai receber algum bem de Osvaldo com a separação. Ele tem provas da sua
infidelidade. Vai sair do casamento sem nada. Terá de trabalhar para comer. Assim não terá tempo de fazer o que não deve. Quero ver se aquele sem-vergonha do Válter, que vivia
comendo em nossa casa, vai lhe dar dinheiro e fazer por você o que Osvaldo fazia. Por sua causa, Antônio deixou o emprego. Não quis trabalhar mais com aquele conquistador barato.
A custo Clara conseguira colocá-la para fora de sua casa. Ela saíra falando alto, interessada em que todos os vizinhos a ouvissem:
— Estou saindo mesmo! Nunca mais porei os pés aqui enquanto você estiver. A casa é de meu filho. Faça o favor de desocupar e ir se prostituir em outro lugar. Deus é justo. Você vai pagar todo o mal que está nos fazendo.
Clara fechou a porta e tapou os ouvidos com as mãos. Como pôde suportar aquela mulher durante tantos anos? Antipática, dona da verdade, manipuladora, queria que tudo na família girasse ao redor dela. Pelo menos, agora não precisava mais suportá-la.
Na noite em que fora surpreendida, Clara ficou com medo de Osvaldo. Ele bem que poderia ter ido arranjar uma arma e voltar para matá-la. Ouviu suas ameaças. Ele ficou muito
revoltado e naquele estado poderia fazer qualquer loucura.
Mas ele não voltou naquela noite, nem na seguinte. Ela não saíra mais de casa nem deixara as crianças irem à escola. À noite, fechava-se no quarto com elas, com medo de Osvaldo.
Válter telefonara pedindo-lhe que se acalmasse, dizendo que Osvaldo não iria fazer nada contra eles. Quando os ânimos se acalmassem, ele iria ter com ela para conversar.
No estado em que as coisas estavam, Clara pediu-lhe que não a procurasse, para não piorar a situação.
Foi na terceira noite que escutou o barulho da chave na fecha dura, Osvaldo estava voltando para casa. Assustada, chamou as crianças e fechou-se no quarto.
Osvaldo entrou, subiu as escadas e bateu na porta do quarto.
— Vá embora, Osvaldo. Não vou abrir — disse ela trêmula.
As crianças, assustadas, começaram a chorar. Osvaldo respondeu:
— Não precisa ter medo. Não vou fazer nada. Quero só apanhar minhas coisas.
— Eu quero o papai! — choramingou Carlinhos.
— Abra para ele, mãe — pediu Marcos.
— Não quero me encontrar com ele. Vou me fechar no banheiro e vocês abrem a porta — decidiu ela.
Depois que ela se fechou, Marcos abriu a porta. Os dois meninos atiraram-se nos braços do pai, que os abraçou comovido:
— Estou com medo, pai! — disse Marcos.
— Acalme-se, meu filho. Não vou brigar com sua mãe. Só vim pegar algumas coisas.
— Você vai embora? — perguntou Marcos.
— Não quero que o papai vá embora — tomou Carlinhos, chorando.
Osvaldo, sentindo um nó na garganta, colocou os dois meninos sentados na cama à sua frente e olhando-os com firmeza disse:
— Aconteceram algumas coisas que me forçam a ir embora de casa. Quero que sejam sempre bons meninos e obedeçam à sua mãe.
— Para onde você vai? — indagou Marcos.
— Ainda não sei.
— Fique, papai — pediu Carlinhos. — Não vá embora.
— Preciso ir, meu filho. Será por algum tempo.
— Você volta logo? — perguntou Marcos.
— Não sei ainda. Mas onde eu estiver sentirei muita saudade de vocês. Eu os amo muito. Nunca se esqueçam disso.
Sentindo as lágrimas descerem pelas faces, Osvaldo disfarçou e abriu o guarda-roupa à procura de uma mala. Depois colocou alguns pertences dentro enquanto as crianças
olhavam tristes para ele.
— Agora preciso ir.
Abraçou-os e beijou-os com amor enquanto eles choravam. Ele lutava para conter a emoção. Depois, com medo de se arrepender, ele os largou e saiu quase correndo, carregando a pequena mala.
Ouvindo o barulho da porta de entrada, Clara entreabriu a porta do banheiro perguntando:
— Ele já foi?
— Foi. Mãe, por que ele teve de ir embora?
— Porque é melhor assim.
— Não é, não — respondeu Carlinhos. — Ele estava chorando!
Clara abraçou-os sem saber o que dizer. Ela também se sentia emocionada. Por que não
resistira àquela tentação? Por que se entregara àquele amor e destruíra a felicidade de toda a sua família?
Ela era a única culpada de tudo. Como poderia viver dali para frente carregando o peso da sua culpa?
Quando seus filhos crescessem e pudessem compreender, continuariam amando-a do
mesmo jeito.
Tinha certeza de que tanto a família de Osvaldo quanto os vizinhos e conhecidos se apressariam a contar a seus filhos toda aquela história, a seu modo. Naquela hora, Clara
arrependeu-se muito de haver fraquejado. Mas o que fazer? Era tarde para recuar. Tinha de seguir adiante, enfrentar o que viesse pela frente com coragem e dignidade.
De uma coisa tinha certeza: não permitiria que ninguém lhe tirasse os filhos. Lutaria com unhas e dentes para tê-los do seu lado, educá-los. Acontecesse o que acontecesse, não
abriria mão desse direito.
Durante mais dois dias ela esperou que Osvaldo aparecesse e desse notícias. Mas ele desapareceu. Tanto Antônio como Dona Neusa telefonaram várias vezes para saber de Osvaldo, não querendo falar com ela, só com Marcos, ligando várias vezes por dia, sempre pedindo que se comunicassem com eles caso Osvaldo desse notícias.
Por eles, Clara ficou sabendo que Osvaldo desaparecera. Eles haviam solicitado a ajuda da polícia, procuraram nos hospitais, em dos os lugares possíveis, receosos de que ele tivesse tentado contra vida. Não conseguiram nenhuma informação.
Depois que ele foi embora, Clara ainda ficou sem sair de casa mais alguns dias. Os mantimentos foram acabando. Ela tinha algum dinheiro no banco que, se bem administrado, poderia pagar as despesas durante dois ou três meses. Ela teria de trabalhar. Mas onde?
Em solteira havia sido balconista de uma loja de departamentos no centro da cidade.
Gostava do seu trabalho, principalmente por sentir útil, ter o próprio dinheiro. Mas Osvaldo
não lhe permitiu continuar depois do casamento.
— Eu ganho bem e posso manter a família. Você não vai precisar trabalhar.
Ela tentou convencê-lo, mas ele foi categórico:
— Mulher minha não trabalha fora. Na minha família, todas as mulheres só trabalham em casa.
Agora, Clara arrependia-se de haver concordado. Se pelo m tivesse estudado, se tivesse se formado em alguma coisa. Mas nada. Durante todos aqueles anos limitou-se a cuidar dos filhos, da do marido e viver do dinheiro que ele lhe dava.
O que seria deles agora? Ela poderia se arranjar, mas os filhos precisavam de conforto e assistência. Osvaldo era muito amoroso com as crianças. Por certo não se negaria a sustentá-los. Contudo, ele desaparecido e ninguém sabia onde estava.
E se ele tivesse morrido? E se nunca mais voltasse? Ela teria de suprir todas as necessidades dos filhos sozinha. A família do marido vivia bem, tinha conforto e nada
faltava, embora não fossem ricos, mas ela nunca lhes pediria nada. Sabia que a sogra faria tudo para tirar- lhe os filhos, e isso ela nunca iria permitir.
Levou as crianças para a escola. Eles haviam faltado dez dias. Para Carlinhos, que estava no jardim de infância, isso não tinha nenhuma importância, mas Marcos já estava no
segundo ano e poderia ser reprovado.
Tentou justificar as faltas alegando problemas de saúde, mas pelo olhar da diretora notou logo que ela sabia o verdadeiro motivo. Clara fez-se de desentendida, prometendo que
Marcos não teria mais nenhuma falta e que ela o ajudaria a recuperar o tempo perdido.
Comprou o jornal disposta a encontrar trabalho. Não sabia bem o que procurar. Verificou logo que não seria fácil. Não tinha formação profissional e as empresas exigiam dois anos de experiência. Além disso, o salário de uma balconista era tão baixo que não daria para sustentar a família.
Ligou para Válter e depois dos cumprimentos disse:
— Quero conversar com você. Estou aflita.
— Alguma notícia de Osvaldo?
— Até agora nada. Isso também está me preocupando. A família dele continua me atormentando, ligando para cá, conversando com as crianças.
— Aguente mais um pouco. As coisas para mim aqui na empresa também estão ruins.
Antônio fez uma onda danada. Procurou o diretor, contou a história a seu modo, pediu demissão e eu fui chamado, repreendido, ameaçado de perder o emprego. Não posso perder
esse emprego de jeito nenhum. Custou muito para chegar aonde eu cheguei.
— Só quero conversar, pedir um conselho.
— È melhor não ligar aqui para o escritório.
— Vou ligar para sua casa.
— Nem pense nisso. A família toda está em pé de guerra. Não se conformam com o que fizemos.
— Devem estar com raiva de mim...
— Estão. Sabe como é, nesses casos a mulher sempre leva a culpa maior.
— Então você me liga e vamos nos encontrar em algum lugar para conversar. Tenho de arranjar emprego e não sei como fazer isso. Gostaria que me orientasse. Faz tanto tempo que deixei de trabalhar fora...
— Está precisando de dinheiro?
— Por enquanto não. Mas o que tenho não vai durar muito. Se Osvaldo não aparecer, não der pensão para as crianças, o que farei?
— Calma. Se isso acontecer, verei o que posso fazer.
— Você vai me procurar logo?
— Assim que puder. Acalme-se. Temos de deixar a poeira assentar. Espero que compreenda. Não ligue para cá nem para minha casa. Assim que eu perceber que eles se acalmaram, irei procurá-la.
Clara desligou o telefone sentindo o coração apertado. Por que se deixou levar pela paixão?
Por que não pensou melhor antes de entregar-se àquele amor proibido? Por que não soube valorizar o amor sincero de Osvaldo?
Angustiada, ela não encontrava resposta para essas perguntas. As lágrimas desceram pelas faces sem que ela fizesse algo para as impedir. Se pudesse voltar atrás, lutaria com todas as forças para vencer aquela paixão. Mas era tarde, muito tarde. Agora só lhe restava seguir adiante, sofrendo as conseqüências de suas atitudes, pagando o preço de suas fraquezas.
Mas, se era justo que ela sofresse, não suportava ver o sofrimento dos filhos. Eles amavam o pai e sofriam com a separação. Por que não pensou nisso antes? Quanto mais refletia sobre isso, mais se recriminava, mais aguda se tomava sua sensação de culpa.
Onde procurar consolo? Lembrou-se da igreja. Sua mãe era católica e sempre a levava à missa. Consultou o relógio e notou que ainda tinha uma hora para pegar as crianças na escola. Resolveu procurar um padre para confessar. Ele lhe daria a penitência e a perdoaria, assim essa sensação de culpa iria embora.
A pequena igreja perto da escola estava vazia àquela hora da tarde. Ela procurou o padre e pediu para ser ouvida em confissão. Ele concordou e Clara ajoelhou-se no confessionário à espera de que ele a atendesse.
Cheia de remorso, rezava pedindo a ajuda de Deus e o perdão para seu erro. Queria libertar-se daquele pecado.
O padre abriu a janelinha do confessionário e Clara começou a falar. Contou sua história, no fim da qual ele considerou:
— Filha, você pecou contra Deus. Seu pecado é muito grave. Não posso dar-lhe a absolvição por enquanto.
— Eu estou arrependida, pedindo perdão. Quero comungar, limpar meu coração.
— O adultério é pecado mortal. Você tem de avaliar melhor seu erro.
Não posso permitir sua comunhão. Vou dar-lhe como penitência todos os dias rezar um terço e pedir perdão a Deus, repetindo no final: “Minha culpa, minha culpa, minha máxima
culpa”. Depois de um ano, volte aqui para avaliar como você está.
Fazendo o sinal da cruz abençoando-a, o padre fechou a janelinha do confessionário e Clara
ficou ainda alguns instantes parada, sem saber o que fazer. Depois se levantou e saiu da igreja, cabeça baixa, curvada ao peso de sua culpa.
“Nem Deus quer me perdoar”, pensou ela, desesperada.
Se não fosse pelos filhos, teria dado cabo da vida ali mesmo. Seria fácil: os carros passavam em velocidade, e num instante tudo estaria resolvido.
Mas os rostos de Carlinhos e de Marcos vieram-lhe à mente. Ela não podia pensar só em si.
Eles precisavam dela, agora mais do que nunca. Mal ou bem, triste ou arrasada, ela teria de cuidar deles.
Foi andando até a escola e teve de esperar algum tempo até que as crianças saíssem.
Sentia que as outras mães a olhavam de forma diferente. Saberiam o que ela havia feito?
Encolheu-se em um canto tentando passar despercebida, fingindo não ver as outras mães, algumas que costumavam cumprimentá-la sempre que ia até a escola. Sentia vergonha.
Assim que os dois saíram, ela os apanhou e em silêncio voltaram para casa.
— Como foi na escola?
— Bem — respondeu Marcos. — Meus amigos queriam saber por que eu faltei.
— O que você disse?
— Contei que estava doente. Não foi isso que você falou para Dona Laurinda?
Clara concordou. Sempre ensinara os filhos que era melhor dizer a verdade, mas como exigir isso depois de haver mentido na frente deles?
Suspirou agoniada.
Uma vez em casa, enquanto eles tomavam banho, ela providenciou o jantar. A campainha tocou e a fez estremecer. Seria Osvaldo?
Foi até a porta e espiou pelo visor. Era Rita, e ela abriu imediatamente:
— Entre, Rita.
— Como vai, Dona Clara? Está melhor?
— Mais ou menos.
— Bom, eu vim várias vezes, mas ninguém atendeu à porta. Fiquei acanhada de aparecer.
Sabe como é: o povo fala tantas coisas que a gente fica encabulada.
— Eu e Osvaldo nos separamos. Ele foi embora e não sei onde está.
— Entendo. Não quero ser intrometida, Dona Clara, mas gosto muito da senhora. Faz mais
de quatro anos que trabalho aqui e aprendi a gostar das crianças, tudo. Estou sentindo muita falta de Carlinhos. Vim saber se a senhora ainda me quer para trabalhar aqui.
Querer eu quero, Rita. Você tem sido muito amiga, e as crianças a adoram. Só não sei se poderei pagar. Estou procurando emprego e ainda não sei como me arranjar.
— A casa é da senhora. Vai continuar morando aqui?
— Vou. Não temos outro lugar para ir.
— Nesse caso, a despesa não é muito grande. Depois, os meninos precisam de alguém para tomar conta quando a senhora for trabalhar.
— É verdade.
— Até agora eu morava com minha irmã e só trabalhava durante o dia. Mas ela vai embora para o interior com o marido e eu fiquei sem ter onde morar. Não posso pagar o aluguel da
casa sozinha. Por isso, se permitir que eu venha morar aqui, faremos um trato que não fique pesado para ninguém. Se a situação da senhora melhorar, a minha também melhora. Está bem assim?
Clara abraçou-a comovida. Na situação em que se encontrava, a companhia de Rita era-lhe
uma bênção. Alegre, bem-disposta, positiva, amorosa e cumpridora dos seus deveres, só tinha uma paixão: a dança. Todos os sábados ela saía para dançar e só voltava quando o dia
estava amanhecendo.
— Vai ser maravilhoso ter você aqui conosco. Puxa, cheguei em casa tão arrasada, pensando até em besteira, mas você me trouxe um alento.
— Tudo passa, Dona Clara. A senhora ainda tem seu maior tesouro, que são os meninos.
Carlinhos entrou na cozinha abraçando as pernas de Rita, dizendo alegre:
— Rita! Você voltou! Não vai mais embora, vai?
Ela o pegou no colo, beijando-lhe a face rosada.
— Claro que não. Vou buscar minha mala e amanhã eu volto para morar aqui.
— Oba! É verdade isso? — perguntou Marcos, que acabava de entrar e a abraçava também.
— Vamos arrumar tudo depois do jantar para que ela possa se mudar amanhã cedo.
— Hoje ela vai dormir aqui — disse Carlinhos. — Quero que ela me conte a história do gato que tinha sete vidas.
— Não é gato de sete vidas, é o gato de botas, seu bobo — corrigiu Marcos.
— O gato de botas tinha sete vidas — retrucou o irmão.
— Não é sete vidas, é sete léguas!
— Vamos arrumar tudo e eu conto a história antes de dormir —interveio Rita.
Enquanto ela falava com eles, Clara, vendo-os entretidos, respirou mais aliviada. Talvez nem tudo estivesse perdido e as coisas pudessem melhorar.
Tentou esconder a tristeza e cooperar. Os meninos mereciam usufruir um ambiente mais alegre, e ela faria tudo para lhes proporcionar isso.

Quando é Preciso VoltarOnde histórias criam vida. Descubra agora