Capítulo 15

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Passava das sete quando Clara saiu do trabalho. A noite já havia descido e estava fria. Ela estugou o passo procurando cobrir parte do rosto com a echarpe, pois o vento estava
gelado.
De repente, alguém segurou seu braço. Ela se voltou e deparou com Válter.
— Clara! Temos de conversar!
— Não tenho nada para falar com você — disse ela soltando o braço em um gesto brusco.
— Por favor! Não seja rancorosa. Em nome dos velhos tempos, ouça o que tenho a dizer.
— Tenho pressa. É tarde e estou cansada.
— Não faça isso comigo. O que tenho a lhe dizer é importante. Vamos entrar aqui, tomar um café ou um chocolate.
Ela o fitou séria e indagou:
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Venha comigo.
Desta vez ela concordou. Ele estava abatido, e Clara resolveu ouvi-lo.
Sentaram-se em um canto discreto, e ele pediu chocolate quente para os dois.
— E então? — indagou ela, inquieta.
— Estive com Antônio e ele me informou que Osvaldo voltou.
Vendo que ela continuava calada, ele continuou:
— Disseram-me que ele foi procurá-la. Fiquei receoso. Ele pode querer se vingar de nós.
— Não se preocupe. O passado está morto.
— Mas ele agora está rico. Tem estado com seus filhos. Vai querer voltar para você.
— Pare de fantasiar os fatos. Não sei o que Antônio ou Neusa lhe disseram. É verdade:
Osvaldo voltou, procurou os filhos. Tem todo direito de estar com eles. É só isso. Nada mais.
— Mas ele está sozinho. Tenho certeza de que deseja voltar para você.
—Esse é um problema meu e você não tem nada com isso. Não tenho nenhum compromisso com você e não gosto que fique se intrometendo em minha vida. O que houve entre nós foi um acidente do qual estou muito arrependida e gostaria de esquecer. Não quero que você se envolva em minha vida particular.
—Isso quer dizer que, se ele desejar voltar, você o aceitará?
— Não tenho de lhe dar satisfações.
— Eu sei. Você ainda ama Osvaldo. Por isso me mandou embora de sua vida. Eu que sempre a amei, que durante estes anos todos não tive outra mulher e desejo me casar com
você.
—Pare com isso — tornou ela irritada. — Eu não amo você. Nunca o amei. Tivemos um caso que, agora sei, foi apenas uma fantasia para mim. Eu era muito jovem, imatura. Se fosse hoje, não teria me envolvido com você.
— Você diz isso agora. Mas naquele tempo bem que gostava! Estremecia quando eu a tocava. Acha que esqueci?
— Pois trate de esquecer.
— Eu vim falar com você porque desejo que reconsidere. Continuo querendo me casar.
— Eu ainda estou casada legalmente.
— Isso me intriga muito. Você nunca pediu a separação legal por que tem esperanças de que ele volte e reate o casamento.
Clara levantou-se:
— Você está louco. Preciso ir embora.
O garçom trouxe o chocolate e Válter pediu:
—Sente-se. Tome seu chocolate. Ainda não terminei. Ouça o que tenho a dizer.
Ela se sentou novamente.
— Seja breve. Se for para continuar o mesmo assunto, não vou ouvir.
— Estou preocupado. Osvaldo pode ter voltado para vingar-se.
— Agora você mudou. Primeiro ele ia voltar para mim, agora vai se vingar.
— Claro. Ele deseja voltar não por amor mas para se vingar. Se você o aceitar, ele a fará sofrer muito. Até a família dele pensa isso.
— Não acredito em nada disso.
— Pois devia acreditar. Por esse motivo a procurei. Desejo protegê-la. Você ainda é casada legalmente, mas está separada há muitos anos. Poderemos requerer o desquite e nos casarmos no Uruguai. Comigo do seu lado, ele não se atreverá a assediá-la. Estou disposto a tudo para provar-lhe quanto a amo. Apesar de dizer que não me quer, sei que sob as
cinzas do seu coração ainda há uma chama que devidamente alimentada voltará a arder.
Clara suspirou fundo e levantou-se, desta vez disposta a ir embora.
— O que você diz não tem cabimento. Não quero casar com ninguém. Sou auto-suficiente para cuidar de minha vida e de minha família. Não preciso de homem algum que me
defenda, muito menos de você. Por favor, deixe-me em paz. Não me procure, porque será inútil.
— Pelo menos pense no que eu lhe disse. Não responda agora. Dentro de uma semana voltarei a procurá-la.
— Não volte, porque não desejo mais vê-lo.
Ela saiu rapidamente e Válter acompanhou-a com os olhos até que ela desaparecesse. A semente estava lançada. Amava aquela mulher. Durante aqueles anos tivera outros
relacionamentos sem expressão. Nenhuma mulher era como ela. Depois, o fato de Clara o haver repelido estimulava sua admiração.
Sempre tivera sucesso com mulheres. Por que Clara resistia?
Apesar da resistência dela, estava convencido de que, se insistisse, poderia reconquistá-la.
Continuou tomando seu chocolate, pensando em qual seria o próximo passo para alcançar seus objetivos.
Clara chegou em casa nervosa. Rita notou logo:
— Aconteceu alguma coisa? Você está com uma cara!
— Estou cansada e tive de aturar Válter.
— De novo?
— Pois é. Uma desgraça nunca vem só. Já não chega Osvaldo, agora Válter.
— O que ele queria?
— Veio com uma conversa de que precisa me proteger de Osvaldo, que ele vai querer voltar para mim só para se vingar. Quer fazer um contrato de casamento no exterior, disse que me ama. Tive vontade de atirar a xícara de chocolate na cara dele.
— Será que ele pensa mesmo isso?
— Esteve falando com Antônio e Neusa. Certamente eles também temem que Osvaldo volte para a família.
— Principalmente por causa do dinheiro que ele tem.
— Eles estão todos fora da realidade. Osvaldo nem sequer deseja falar comigo. Nunca me procurou, nem vai procurar. Quando está com os meninos, não toca no meu nome. São eles que falam, e ele, para não os magoar, desconversa e não fala mal de mim.
Rita olhou para Clara com seriedade e tornou:
— E se ele quisesse voltar, você o aceitaria?
Clara estremeceu:
— Você também?
— Trata-se apenas de uma hipótese. Se acontecesse, o que você faria?
— Isso nunca acontecerá. Nosso relacionamento acabou no dia em que ele nos apanhou juntos. Essa é a verdade. Não gosto que fiquem fantasiando sobre isso. Os meninos poderão iludir-se. Sinto que eles, apesar de tudo, continuam acariciando a idéia de ter o pai de volta em casa. Quero que eles vejam as coisas como são. Era isso que eu temia quando Osvaldo decidiu se aproximar deles.
— Até agora ele tem se mostrado muito discreto.
— Mais uma razão para os meninos não ficarem pressionando. Para mim é muito desagradável. Osvaldo me deixou e nunca mais me procurou. O amor que sentia por mim
transformou-se em decepção, raiva, desencanto. Por delicadeza ele não fala mal de mim com os meninos, mas é claro que seus sentimentos por mim não podem ser amistosos depois do que lhe fiz.
— Você está prejulgando sem saber o que se passa no coração dele.
— Tenho certeza de que é isso que ele pensa. Não quero que os meninos fiquem puxando-o para aproximar-se de mim. Não tenho nenhuma vontade de encontrar-me com ele. Além de
embaraçoso, seria horrível. Só em pensar nisso, fico angustiada.
— Então não pense. Afinal, não sabemos o futuro. Mas estou intrigada com a volta de Válter. Parece que a vida tem algum motivo especial para reuni-los de novo.
— Deus me livre! Não diga uma coisa dessas! Mas já deixei claro que não quero nada com ele. Pedi que não me procure mais.
— Se ele tem alguma coisa em mente, vai procurá-la de novo.
— Pois está perdendo tempo. Ele que cuide de sua vida. Não me pareceu bem. Estava abatido, com cara de doente.
— Ele deseja comover você.
— Pois pode desistir. Por que será que as pessoas teimam em viver no passado? Eu não gosto nem de lembrar o que passou. O que eu quero é ser livre, encaminhar meus filhos na vida, viver em paz.
O passado está morto, enterrado. Tanto Válter quanto Osvaldo precisam entender isso.
Agora vou subir, tomar um banho.
Depois que Clara se foi, Rita ficou pensativa. Sabia que as pessoas decidem mas que quem
determina os fatos é a vida. Se ela estava aproximando os três, retomando problemas passados, era porque eles não estavam resolvidos.
Sabia também que quando isso acontece é porque todos estão amadurecidos o bastante para
solucioná-los de forma satisfatória.
Restava saber como cada um reagiria tendo de reviver fatos dolorosos que os fizeram sofrer. Sentiu que Clara precisava ser paciente, prestar atenção aos acontecimentos, não
tomar decisões apressadas.
Claro que esse reencontro era uma excelente oportunidade para lavar as feridas da alma, reconquistar o equilíbrio perdido, amadurecer. Clara teria calma suficiente para aproveitá-la?
— Precisamos confiar em Deus! — murmurou ela. — Ainda bem que Clara começou a entender a vida espiritual. Isso vai ajudá-la a ver as coisas de uma forma melhor.
Carlinhos entrou na cozinha:
— O que foi, Rita, falando sozinha?
— Estava pensando alto. Ainda não estou caducando.
Ele a abraçou, beijando-a delicadamente na face:
— Eu não quis dizer isso. Como você vive falando de espíritos, pensei que estivesse conversando com eles.
— Também. Ou você acha que está sozinho só porque não é capaz de vê-los?
— Bem que eu gostaria, mas eles se escondem de mim. Acho que é porque duvido que eles estejam à minha volta.
— Qualquer dia destes você vai ver um bem ao lado de sua cama.
Carlinhos olhou para o lado e disse em tom jocoso:
— Por favor! Vocês sabem que eu acredito. Não precisam ir me visitar no quarto. Retiro tudo que disse.
— Também não precisa ter medo. Aqui em nossa casa só aparecem espíritos de luz.
— Não foi o que me pareceu. Você estava com uma cara! Mas eu acho que foi a conversa com mamãe.
Rita olhou séria para ele:
— Você ouviu nossa conversa?
— Ouvi. Mas foi sem querer. Eu estava na sala ao lado e vocês falavam alto. Vou conversar com Marcos. Esse Valter não pode vir amolar a mamãe de novo. Já chega o mal que nos fez.Se voltar a procurá-la vamos ter de falar com ele. Temos de defender a mamãe.
Rita aproximou-se de Carlos,colocou a mão em seu braço e disse séria:
— Você não fará isso. Se sua mãe souber, ficará muito zangada.
—Ele não pode ficar amolando-a. Nós agora somos grandes podemos defendê-la. Ele precisa saber que ela não está sozinha.
— Você não vai fazer nada. Sua mãe sabe se defender muito e não precisa que vocês se intrometam. Depois, ela não quer nada dele. Disse-lhe isso com firmeza. Duvido que ele
volte a incomodá-la.
Carlos cerrou os punhos e disse com raiva:
—Ele que não volte mesmo. Se ele insistir,Vai se ver comigo!
O tom de voz assustou Rita, que respondeu:
— O ódio é muito ruim e pode causar muito mal. Não abrigue sentimento em seu coração.
— Há muito tempo eu tenho raiva desse sujeito.
— Você vai me prometer que se esforçará para tirar isso de seu coração.
— Não posso. Ele foi culpado de tudo. E agora, quando nosso pai volta, ele reaparece.
Desta vez não vou permitir que ele nos perturbe de novo.
Rita tentou fazê-lo mudar de postura, mas foi inútil. Ela não imaginou que ele guardasse tanta raiva do passado. Seu temperamento alegre, jovial, encobria o que lhe ia na alma.
Esse era um perigo ela desconhecia. Quando ele se afastou, ela ficou pensando se iria ou não contar a Clara.
Achou melhor poupá-la e conversar com Lídia, pedindo orientação e ajuda espiritual.
No sábado, Osvaldo mandou o carro apanhar os filhos para um almoço em sua casa. Depois da visita de sua mãe, Osvaldo havia sentido inquieto e preocupado.
As palavras dela trouxeram cenas do passado que julgava esquecidas. Viu Clara nos braços de Válter, recordou-se da dor, da mágoa, da viagem de trem, de tudo que havia passado.
Procurou conforto na prece, pedindo ajuda aos seus amigos espirituais. Depois disso, sentiu-se mais calmo.Os filhos chegaram trazendo de volta a alegria. Junto a eles, interessando-se pelo que diziam, Osvaldo sentia-se revigorado.
Depois do almoço, sentados na varanda, Osvaldo notou que Carlos estava mais quieto do
que o costume.
— Aconteceu alguma coisa? Você hoje está muito quieto.
— Não aconteceu nada — apressou-se Marcos a responder.
— Não é o que parece. O que há, meu filho? Se tem algum problema, fale. Vamos tentar
resolver juntos.
Carlos continuou calado e foi Marcos quem respondeu:
— Ele está com algumas idéias bobas na cabeça. Nada de mais. Logo vai passar.
Osvaldo não insistiu. Notou que Carlos cerrara a boca com força, como que para se impedir de falar.
Esperou um tempo e, quando Marcos se distraía na biblioteca procurando alguns livros antigos dos quais gostava, Osvaldo aproximou-se de Carlos e alisou-lhe os cabelos com
carinho.
— Sinto que você não está bem. Fale o que o está incomodando. Estou aqui para apoiar. Abra seu coração. Sou seu pai, gosto muito de você.
— Se eu falar, você vai brigar comigo. Depois, não é justo trazer esse assunto a você, depois de tudo.
— Fale meu filho. Confie em mim. Nunca vou ficar bravo com você. O que é?
— Outro dia, sem querer, ouvi uma conversa de mamãe com Rita. Isso me deixou com muita raiva.
— Continue.
— Aquele sujeito está perseguindo mamãe outra vez.
Osvaldo empalideceu.
— Que sujeito?
— Válter. Ela não quer, mas ele está atrás dela de novo. — Carlos cerrou os punhos com raiva. — Se ele continuar, vai se ver comigo!
Osvaldo tentou controlar a emoção. Respirou fundo, depois respondeu:
— Tem certeza?
Tenho. Houve um tempo que ele ia esperá-la na saída do trabalho, mas ela nunca quis nada com ele. Chegava nervosa, irritada, dizia que não podia nem ouvir o nome dele. Aí ele
acabou desistindo. Mas, agora, começou tudo de novo. Ele foi o culpado de tudo quanto nos aconteceu. Por causa dele você nos deixou, estivemos separados. Agora que está de volta, não vou permitir que ele faça tudo de novo.
— Acalme-se, meu filho. Ela não o quer, e ele acabará desistindo outra vez.
— Foi o que ela disse a Rita. Mas eu sei que ele não vai desistir. Vai infernizar nossa vida de novo.
Marcos, de volta à varanda, ouviu parte da conversa e interveio:
— Eu disse para ficar calado. Papai não merece passar por isso.
— Deixe-o, Marcos. Ele fez bem em abrir o coração.
— Mamãe não gosta desse sujeito. Tenho certeza de que vai sumir outra vez. Não precisava perturbar você com esse assunto.
— Estou aqui para apoiar vocês em tudo. Haja o que houver, aconteça o que acontecer, podem contar comigo. Gostaria, Marcos que não me escondessem nada. Podem ter certeza de que farei o puder pelo bem-estar de minha família.
Alisou os cabelos de Carlos com carinho e continuou:
— Quero que você se esforce para banir a raiva do seu coração e Cuidado com o julgamento. As pessoas erram porque não sabem fazer melhor. Não atire toda a culpa do
passado sobre Válter. No aconteceu, todos tivemos nossa parcela de culpa. Ele, por desejar seduzir uma mulher comprometida; ela, por se deixar envolver; eu, não ter sabido manter
acesa a chama do amor que um dia nos uniu. Pense nisso, meu filho, e esqueça o passado.
Marcos sentiu que as lágrimas afloravam, enquanto Carlos dizia emocionado:
— Pai, como você é nobre! Você não merecia o que lhe fizemos.
— Engano seu. Se eu não merecesse, não teria acontecido.Saiba que cada um é responsável por tudo que lhe acontece. Nossas atitudes determinam os fatos em nossas vidas. Embora
cada um tenha parcela de responsabilidade, de minha parte sei que amadureci e aprendi
muito com essa experiência. Meu espírito enriqueceu. Conheci vida espiritual, aprendi outros valores mais verdadeiros e eternos isso, meus filhos, não lamentem meu sofrimento.
Ele foi necessário abençoado.
Os três se uniram em um abraço e por alguns instantes os dois rapazes não conseguiram articular palavra. A postura digna de Osvaldo emocionava-os mas ao mesmo tempo fazia-os notar a diferença de atitudes entre ele e Válter.
Carlos não se conteve:
— Válter não tem o direito de interferir em nossa vida.
— Eu não diria isso. Agora sua mãe está separada, é livre. Se quiser viver com ele, é um direito dela.
— Eu não quero. Odeio aquele sujeito! — tornou Carlos com raiva.
— Ela não fará isso! — interveio Marcos em tom conciliador. — Tenho certeza de que ele está perdendo seu tempo.
— Seja como for, vocês não devem preocupar-se. Ela já afirmou que não gosta dele. Por isso, é melhor deixarem de pensar nisso — disse Osvaldo tentando acalmá-los.
Apesar disso, ele sentia o peito oprimido. Dissimulou tentando aparentar calma e satisfação. Contudo, depois que os rapazes se foram, sentou-se na biblioteca, colocando a cabeça entre as mãos.
O que dissera era verdade. Se Clara decidisse viver com Válter, ele não poderia intervir.
Estava de mãos amarradas. Depois de desaparecer durante dez anos, não tinha o direito de intrometer-se na vida dela.
Tentou acalmar-se, pensar que ela era livre, que o melhor era esquecer esse fato, mas não conseguia tirar a tristeza e a dor que lhe causava a idéia de que Clara pudesse ir morar com Válter.
Inquieto, começou a andar de um lado para o outro, esforçando-se para libertar-se desse receio. José aproximou-se dizendo:
— Está se sentindo bem?
Arrancado de seus pensamentos íntimos, Osvaldo olhou para o velho empregado e respondeu:
— Estou um pouco esgotado. Vou para o quarto descansar. Depois que ele se afastou, José meneou a cabeça pensativo. Sabia que não estava sendo fácil para Osvaldo enfrentar o
passado. Desejava de coração que ele conseguisse esquecer.
Uma vez no quarto, Osvaldo sentou-se na cama e lembrou-se de Antônio. Sentiu saudade da presença do amigo querido que, quando Osvaldo estava com problemas, dizia as palavras certas que o faziam retomar a calma, a alegria.
Naquele momento estava se sentindo sem chão, pensamentos contraditórios o atormentavam. Que bom se pudesse estar com ele naquele momento!
De repente decidiu. Iria vê-lo. Levantou-se e foi ter com José.
— Avise o motorista que prepare o carro. Amanhã ao raiar do dia viajaremos para Minas.
— Está bem. Vou dizer a Rosa para arrumar sua mala. Quanto tempo vai ficar?
— Três ou quatro dias.
José tratou de cumprir a ordem. Depois de avisar o motorista, foi conversar com Rosa:
— Osvaldo vai viajar. Você precisa arrumar a mala dele. Disse que ficará uns quatro dias.
— Sabe para onde ele vai?
— Para Minas.
— Será que ele deixou alguma mulher por lá?
— Não creio. Ele está preocupado com alguma coisa e vai pedir conselho àquele curador que é seu amigo.
— É algo com Carlinhos. Ele estava triste, abatido, nem brincou comigo. Tomara que não seja nada grave.
— Vá logo, porque ele quer sair muito cedo amanhã.
Depois que Rosa arrumou a mala e se foi, Osvaldo fez uma lista Pretendia parar em algum lugar e comprar presentes para os amigos. Não queria esquecer ninguém.
Depois, levou seu pensamento a Deus, pedindo ajuda para retomar sua paz, deitou-se e tentou dormir. Mas não conseguiu. As cenas do passado reapareciam e ele se esforçava para
mudar o teor de seus pensamentos. Entretanto, eles voltavam, ora revendo a cena do beijo entre Clara e Válter, ora a despedida dos filhos, as palavras de sua mãe incentivando-o à vingança. Até o rosto de seu irmão Antonio irônico, acusando Clara por prejudicá-lo no emprego.
Quando se esforçava para pensar em outras coisas, o rosto raivoso de Carlos e suas palavras reapareciam. Ele não podia deixar-se envolver por esses pensamentos negativos. Precisava
confiar na vida Sabia que ela faz tudo certo, que precisava enfrentar os fatos com coragem e determinação.
Contudo, a descoberta de que ainda continuava vulnerável, que apesar do esforço feito, do que aprendera sobre espiritualidade, ainda se impressionava com o passado, um sentimento de medo, de insegurança o atormentava, deixava-o deprimido e insatisfeito.
Ele voltara certo de que tendo observado os fatos sob a óptica espiritualidade havia vencido
o passado. Não obstante, a sensação insegurança, o medo do futuro, a dor pressionando seu peito como nos primeiros dias demonstravam que ele conhecia melhor a situação mas ainda não a havia assimilado. Compreendia mas não vivia que sabia.
Ele que desejava progredir espiritualmente, que pretendia tornar-se mais evoluído para
viver melhor, ser mais feliz, voltara à estaca zero.
Ao pensar nisso, sentia-se fraco, infeliz, desanimado. Remexei se na cama e só muito tarde
conseguiu dormir. Quando José bateu na porta do quarto para acordá-lo, levantou-se sobressaltado.
Ao descer para o café, o dia estava começando a clarear. Vendo seu rosto abatido, Rosa observou:
— Você precisa alimentar-se bem. O pão está quentinho, e fiz aquele bolo de que gosta.
— Obrigado, mas estou sem fome.
— Nada disso! A viagem vai ser longa, e não pode ir de estômago vazio.
Ela mesma passou manteiga no pão, juntou uma generosa fatia de queijo, pôs café com leite na xícara e tomou:
— Se não comer, vou ficar triste. Onde já se viu sair assim?
Osvaldo resolveu experimentar e comeu tudo. Ela colocou boa fatia de bolo no prato e pediu:
— Experimente e veja se está bom.
Ele sorriu. Rosa observava-o atenta.
Ele comeu o bolo e disse sorrindo:
— Esse ficou o melhor de todos.
— Você sempre diz isso. Vou fingir que acredito.
— É verdade. É tão bom que só posso dizer isso.
O carinho de Rosa e a perspectiva de rever os amigos dos quais tanto gostava o fizeram sentir-se mais animado.
Estava entardecendo quando finalmente chegaram ao sítio de Antônio. Nequinho, que estava na beira da estrada, aproximou-se curioso.
Osvaldo, vendo-o, mandou parar o carro, abriu a porta e disse:
— Então, Nequinho, não conhece mais os amigos?
— Nossa! É o seu Osvaldo! Quando vi o carro me assustei. Puxa, todo mundo vai ficar alegre!
Osvaldo ria da cara do rapaz, que gesticulava sem parar.
— Abra a porteira e entre no carro.
Nequinho obedeceu. Esperou o carro passar, fechou a porteira e entrou no carro.
— Que beleza! Eu nunca vi um carro de luxo como este!
Osvaldo sorriu alegre. No terreiro, desceram. Zefa e dois rapazes aproximaram-se admirados. Osvaldo abraçou-a e logo Antônio apareceu na varanda:
— Mas é meu amigo Osvaldo! Que surpresa boa!
Correu a abraçá-lo, e Osvaldo sentiu a voz embargada. Um brando calor inundou seu peito enquanto apertava o amigo em seus braços.
— Que bom estar aqui!
O motorista esperava ao lado do carro. Osvaldo apresentou-o:
— Este é Justino, trabalha comigo.
Depois dos cumprimentos, foram entrando. As panelas fumegavam no fogão e Osvaldo aspirou com satisfação o cheiro gostoso familiar da comida de Zefa. Ninguém fazia um
feijão e arroz como ela.
Justino colocou as malas do patrão no quarto e esperou. Osvaldo disse-lhe com simplicidade:
— Pode colocar suas coisas ao lado das minhas. — E voltando para Antônio: — Aquelas camas não estão ocupadas?
— Sabe que não? Ainda na semana passada estava lá o Ernesto do sítio de Dona Eunice.
Ficou para tratamento, mas já sarou e foi embora ontem.
— Estou com sorte. Não queria ter de ir para o hotel na vila e ficar longe de vocês.
— E acha que eu ia deixar? — disse Zefa com largo sorriso. —Hoje é dia de festa e de alegria.
— Nesse caso, Justino pode ficar no meu quarto comigo. Há camas lá.
Justino remexeu-se inquieto.
— O que foi, Justino? — perguntou Osvaldo.
O motorista hesitou um pouco, depois disse:
— Não precisa se incomodar comigo, seu Osvaldo. Posso dormir em qualquer lugar. Até no carro, se for preciso. Assim o senhor fica mais à vontade.
— Não se preocupe com isso, Justino. Na cama vai ficar mais bem acomodado.
— É que não fica bem, o senhor é meu patrão.
— Eu entendi. Você não se sente à vontade de dormir no mesmo quarto comigo.
Antônio interveio:
— Ele pode dormir com Nequinho. O quarto dele tem duas camas
— Obrigado, seu Antônio. Sinto-me melhor assim. Não quero incomodar seu Osvaldo.
Enquanto esperavam o jantar, Osvaldo abriu as malas e distribuiu os presentes com alegria.
Depois do jantar, enquanto Zefa lavava os tratos e Nequinho ajudava, os colonos e Justino se recolheram, Antonio acompanhou Osvaldo até o quarto e sentaram-se para conversar.
Osvaldo quis saber tudo sobre os conhecidos, principalmente sobre a família de João.
Soube que Aninha estava namorando um próspero sitiante da região e todos estavam muito bem.
— Estou com muita saudade. Amanhã iremos até lá. Nunca esquecerei o que fizeram por mim.
Antônio tirou do bolso um pedaço de fumo e uma palha de milho e começou a preparar um
cigarro, como sempre fazia. Depois de acendê-lo e tirar algumas baforadas, disse com naturalidade:
— Estava esperando você. Sabia que viria.
Osvaldo respirou fundo e respondeu:
— As coisas não estão fáceis. Depois de tudo que vocês fizeram por mim, cheguei a pensar que havia aprendido como as coisas são. Mas não era verdade. Vocês perderam tempo
comigo. Não aprendi nada. Continuo sendo inseguro, desequilibrado, incapaz.
— Por que pensa isso?
Osvaldo contou-lhe detalhadamente tudo que aconteceu desde que voltara a São Paulo.
Antônio ouvia em silêncio, atento, fumando seu cigarro de quando em quando.
— Eu entendi os fatos passados, reconheci minha parcela de culpa, pensei que tivesse dissolvido a mágoa, mas ontem descobri que estava me iludindo. A ferida ainda está aberta.
Tenho medo do futuro. Sou um fraco que, mesmo traído, ainda sente ciúme. Não nego que, só em pensar que Clara pode ir viver com Válter, fico desesperado. As lembranças ruins reaparecem com força, e está difícil aceitar isso. Pensei em voltar para cá definitivamente.
Mas há meus filhos. Agora que eles estão me aceitando, que me perdoaram, como
abandoná-los de novo? Por isso vim buscar ajuda. Sinto que é preciso continuar lá, mas terei coragem? Pode chegar uma hora em que eu não consiga me controlar e acabe por
intrometer-me na vida de Clara. Não tenho esse direito. Estamos separados e ela é livre.
— Você é muito forte e corajoso, meu filho. Está tomando a decisão certa. Fugir é inútil, porque as emoções estão dentro de você. Irão junto para onde você for. Agora é hora de
enfrentar seus medos.
— Mas sinto-me fraco, vulnerável.
— Porque está analisando a situação de forma errada.
— Você acha?
— Está colocando sua força contra você, julgando-se fraco, incapaz, só porque não consegue entender como a vida trabalha. O desenvolvimento da consciência, o progresso do
espírito, isso demanda tempo. O fato de conhecer algumas leis naturais não significa que tenha terminado seu trabalho. O conhecimento ilustra, mas a experiência assimilada traz a
sabedoria. Quem estuda pensa que sabe; quem experimenta descobre quanto ainda precisa aprender.
— Mas, depois de ter entendido, pensei que nunca mais fosse sentir o que estou sentindo.
Descobri que não aprendi nada, que não aproveitei a oportunidade que Deus me deu. Ao contrário: dei um passo para trás.
— Mais uma vez você está enganado. A cabeça compreendeu, mas o coração ainda não.
— Acho que nunca aprenderei.
— Não é verdade. Você tem aprendido muito. Está muito diferente de quando chegou aqui.
Mas, apesar disso, ainda há muitas coisas mal resolvidas dentro de você. Por isso a vida juntou vocês. Essa é uma boa oportunidade para que possam se libertar do peso que
carregam no coração.
— Reconheço que cheguei aqui destruído, amargurado, sem vontade de viver, e vocês me devolveram a paz, a alegria. Mas agora estou confuso. Sinto o peito oprimido. Vim em busca da paz que perdi.
— Assim como dentro de você estão os problemas não resolvidos, há também a fé em Deus, a sua força de espírito eterno. Não tema o futuro. Renove sua fé na vida. Os desafios
aparecem quando se está em condições de vencê-los. Você tem tudo para isso.
— Deus o ouça. Suas palavras tiveram o dom de me acalmar. Era disso que eu estava precisando. -
— Reflita, meu filho. Tudo que precisa está dentro de você. E só prestar atenção. Com paciência e bom senso, encontrará todas as respostas.
— O que me angustia é não saber o que fazer com meus sentimentos. Como me livrar da mágoa que ainda sinto? Como trabalhar o medo que me atormenta?
Antônio tirou algumas baforadas do cigarro devagar, depois disse:
— Se passar por cima do orgulho, encontrará a resposta.
— Joguei fora o orgulho quando aceitei minha parcela de culpa na traição de Clara. Quando
reconheci que ela não era culpada por ter deixado de me amar.
— Mas é o orgulho que o impede de ver com clareza o que se passa em seu coração.
— É um sentimento opressivo, desagradável, que me traz sofrimento. Quero me ver livre dele.
— Nesse caso, a pressa atrapalha. Tenha paciência com você mas não se poupe. Se deseja entender o que sente, precisa mergulhar fundo nessa energia e ir prestando atenção em
como ela é. A chave está dentro de você.
— Não tenho dormido bem, venho andado confuso.
— Sabe, meu filho, é difícil para um homem, da forma como é educado e de como a sociedade pensa, aceitar que, apesar da traição, o amor ainda continua lá.
Osvaldo sobressaltou-se. Ia retrucar, mas Antônio não lhe deu tempo:
— Bem que você gostaria de ter matado esse sentimento naquele dia. Mas isso não aconteceu. O amor verdadeiro é indestrutível. Apesar de tudo, você ainda ama Clara.
— Isso não é verdade. Não posso amá-la. Clara morreu para mim. Ela não me quer. Sinto-me o pior dos homens por sentir ciúme dela.Isso não é justo.
As lágrimas desciam pelo rosto de Osvaldo sem que ele tentasse detê-las. Antônio colocou a mão em seu braço e disse com simplicidade:
— Chore. Fale da sua dor. Reconheça que ainda gosta dela.
— Não posso. Ela não merece. Seria a humilhação maior.
— O orgulho não vai lhe dar a paz que procura. Ao contrário: ele toma seu amor mesquinho e mascara o que é. Você ama Clara. Sempre a amou. Não é verdade?
Osvaldo soluçava desconsolado enquanto Antônio, colocando a mão sobre sua cabeça, orava em silêncio. Aos poucos ele foi se acalmando.
Vendo-o mais calmo, Antônio continuou:
— Não tenha medo da verdade. O verdadeiro amor é incondicional. Nada que Clara tenha feito vai mudar isso.
— Mas esse amor sem esperança está me tirando a paz. Estou cansado e não quero mais sofrer.
— O que tira sua paz é negar o que sente. É fato de pensar que amando Clara você se diminui. O amor é bênção que nos torna melhores. Não combata esse sentimento. Ao
contrário, deixe-o fluir livremente.
— Não posso. Esse amor é impossível!
— Saia da ilusão. Esse amor está aí, dentro de seu coração. Não adianta negar. Reconheça que ama Clara. Diga isso agora em voz alta para que tome consciência.
Osvaldo hesitou um pouco, lembrou-se de Clara, reviu seu rosto jovem e bonito, lembrou-se do tempo de namoro e sentiu um calor agradável no peito. Então disse com voz apaixonada:
— Eu amo Clara! Sempre a amei!
— Não é errado amar. Lembre-se disso.
— Sinto que ainda a amo como no primeiro dia. Reconhecer isso vai ser meu castigo pelo resto da vida.
— Ao contrário: vai libertá-lo do orgulho, das convenções ilusórias do mundo. Como se sente agora?
Antônio falava com voz modificada, suas palavras eram muito diferentes da sua forma habitual de expressar-se.
— Melhor. A opressão desapareceu.
Não tenha medo do que sente. Permita-se amá-la embora estejam separados. Aos poucos
notará que seu amor apenas pede que o deixe fluir naturalmente. Fazendo isso, reconquistará sua paz.
Antônio apanhou o cigarro que ficara esquecido sobre a mesinha e acendeu-o novamente.
Depois levantou-se, dizendo:
— Deite-se. Vou buscar um chá especial. Você vai dormir muito bem esta noite.
Osvaldo sentiu-se exausto. Preparou-se para dormir, deitou-se. Antônio trouxe o chá:
— Beba tudo.
Ele obedeceu. Depois disse sorrindo:
— O que estava faltando era seu carinho. Já estou muito bem.
— Bobagem, meu filho. Você já pode andar sozinho. Eu é que estava precisando de você.
Hoje estou feliz. Deus o abençoe.
Ele se foi e Osvaldo virou-se de lado. Depois de alguns instantes, mergulhou em um sono
tranqüilo e reparador.

Quando é Preciso VoltarOnde histórias criam vida. Descubra agora