Clara entrou no ateliê e colocou a bolsa no armário de sua sala. Depois olhou-se no espelho,
ajeitando os cabelos e o vestido elegante.
Sorriu satisfeita. Estava impecável, bonita e com classe. Sentia-se muito à vontade em meio ao luxo do lugar e havia conseguido relacionar-se muito bem com as clientes que a procuravam e que pediam sugestões até para assuntos pessoais.
Naqueles seis meses que Clara trabalhava lá havia inspirado confiança às clientes, pela sua
classe invejável, pela sua beleza elegância ou pela segurança que demonstrava, sabendo sempre o que estava na moda, o que ficava bem a cada uma, em cada ocasião.
As indecisas penduravam-se nela, só escolhendo quando ela estava presente e dava opinião.
Domênico ficava fascinado e comenta a Gino:
— Você precisava ver o que Clara conseguiu hoje. Madame Mota veio escolher um vestido para uma festa e acabou comprando quatro. Saiu daqui tão satisfeita que distribuiu gorjetas
até para o porteiro.
— Essa moça vai longe. Espero que não apareça um homem para atrapalhar. Sabe como é:
mulher vai bem até se apaixonar. Depois, deixa tudo que conseguiu e pendura-se no homem. É uma calamidade. Espero que não aconteça com ela.
— Eu também.
Clara preparou-se para receber a próxima cliente, uma senhora muito rica cujos olhos tristes a haviam impressionado. Soube por Domênico, que a conhecia havia muito tempo, que ela era casada com um industrial mas que o marido a deixava de lado, mostrando-se publicamente com a amante, que apresentava como secretária mas cujas atitudes deixavam margem à dúvida quanto ao seu verdadeiro papel. Por causa disso, Consuelo tornara-se
triste e retraída, recusando os convites dos amigos nos quais teria de comparecer ao lado do marido.
Os filhos, dois jovens, passavam pouco tempo em casa, e ela se sentia muito só.
Observando-a, Clara sentira-se incomodada. Por que uma mulher ainda jovem, bonita, rica, se sujeitava a viver dessa forma sem reagir? Se fosse com ela, já teria rompido com esse casamento que só a humilhava e fazia sofrer.
Consuelo ia ao ateliê regularmente, escolhia as roupas sóbrias como se fosse uma obrigação, olhando indiferente os detalhes de cada uma. Clara tentou aproximar-se dela
desde o primeiro encontro.
— Este tom de azul fica-lhe muito bem. Realça a cor de sua pele.
— É um tanto chamativo. Prefiro o cinza. É mais discreto.
—De fato, o cinza é bonito. Por que não leva os dois? Este azul parece que foi criado para a senhora.
Colocou o vestido sobre o corpo dela em frente ao espelho.
— Veja: com ele a senhora ganha vida, fica irresistível.
Pelos olhos de Consuelo passou um brilho emotivo.
— Você acha mesmo?
—Acho. Posso fazer uma sugestão?
— Fale.
— Com este vestido, clareando um pouco o tom de seus cabelos, a senhora ficaria maravilhosa.
— Você está me tentando. Se eu esperasse alguma coisa da vida, faria isso. Mas não vale a pena. A cada alegria, a vida responde com uma tristeza; a cada ilusão, com a desilusão.
Prefiro a calma e o conforto de não esperar nada. Por isso ficarei com o cinza, que é neutro Clara não se deu por achada.
— A senhora fala como se sua vida estivesse no fim, E tão jovem e bonita! Sua pele parece de porcelana, seu porte é de rainha, seus olhos têm um brilho especial.
Consuelo colocou a mão sobre o braço de Clara enquanto dizia:
— Você é muito amável.
— Desculpe se fui inconveniente. Mas é que aprecio o belo.Se eu pudesse, transformaria todas as clientes que entram aqui em mulheres maravilhosas. Infelizmente não tenho esse poder. Mas quando vejo uma mulher como a senhora, que possui tudo para brilhar e conforma em ficar neutra, não me contenho.
— Sei o que quer dizer. A beleza faz parte de sua profissão.
— Também. Mas sei por experiência própria o quanto é ruim sentir-se menos, estar em segundo plano, ser posta de lado. E como é bom sentir-se bela, elegante, charmosa, atraente.
Dá segurança, confiança na vida, alegria de viver.
Consuelo ficou pensativa alguns instantes, depois disse:
— Talvez tenha razão. Sabe de uma coisa? Vou levar também o azul. Em sua homenagem.
Clara sorriu satisfeita.
— Se clarear um pouco os cabelos, a homenagem seria completa. As duas riram. A partir desse dia, Consuelo passou a ir com mais freqüência ao ateliê e fazia questão de conversar
com Clara. Em uma dessas visitas ao ateliê, Consuelo lhe disse:
— Você tem me sugerido coisas que mudaram meu gosto. Fiquei mais exigente. Meus guarda-roupas estão atulhados, mas às vezes o que tenho lá não me agrada mais.
— É preciso renovar. Depois, é contra a prosperidade guardar coisas que você não usa.
Deve desfazer-se de tudo que você não vai mais usar.Assim cria espaço para as coisas novas que virão.
— Não sei o que fazer com as roupas. São finas, estão em bom estado. Algumas já ficaram fora de moda.
— Poderia vendê-las e assim fazer espaço.
— Vender? Quem compraria roupas usadas? Depois, não preciso de dinheiro, teria vergonha.
— Venderia muito barato, apenas para dar dignidade a quem as comprasse e que não
normalmente não teria dinheiro para freqüentar um lugar como este.
— Nunca pensei nisso. Gosto de dar, mas sempre sinto que isso humilha um pouco quem recebe. Essa idéia de vender é boa, só que não teria para quem o fazer. Não conheço ninguém assim.
— Pois eu conheço. Há pessoas que se sentiriam muito felizes se pudessem vestir um dos seus vestidos.
— Nesse caso sei o que fazer. Vou escolher tudo que não vou mais usar e mandar à sua casa. Faça o que quiser com eles. Faria isso por mim?
— Sim, você. Tenho certeza de que saberia a quem vender. Não quero dinheiro nenhum. Pode ficar com ele e fazer o que quiser.
A princípio Clara se surpreendeu. Depois, pensando melhor, resolveu aceitar. Embora seu salário já houvesse sido aumentado, ainda era pouco. Vendendo aquelas roupas poderia melhorar sua renda.
Dois dias depois, chegando em casa, Rita contou-lhe a novidade:
— Hoje veio aqui um carro e o motorista descarregou uma mala cheia de roupas e mais alguns pacotes.
Disse que Dona Consuelo mandou.
— Ela disse que ia mandar.
— Coloquei tudo no quarto dos fundos. São para a senhora?
— Não. Ela pediu para eu dar a alguém que precise. Vamos ver.
Elas subiram e abriram os pacotes, a mala. Além de roupas, havia bolsas, sapatos e até uma caixa com bijuterias.
— São de boa qualidade — comentou Rita.
— Claro. Dona Consuelo é muito rica e exigente. É tudo alta costura.
— Por que ela deu tudo isso? Estão novas.
— Essas pessoas não gostam de aparecer com as mesmas roupas. Usam um pouco e logo as substituem. Falou que eu posso vendê-las ficar com o dinheiro. Você conhece alguém que compre e venda roupas usadas? Ouvi falar que há gente que se dedica a isso.
— Não conheço ninguém. Por que nós não vendemos para pessoas amigas? Conheço algumas aqui em nossa rua que certamente se interessariam.
— São pessoas de classe média. Não vão querer comprar coisas usadas.
— Pois pobre é que não compraria. Não sabe valorizar uma roupa fina. Os tempos estão difíceis, Dona Clara. Sei de pessoas que lutam muito para comprar uma roupa boa.
Adorariam vestir uma alta costura. Depois, quem iria saber que comprou usada?
— Você pode ter razão.
— Vamos arrumar tudo direito neste quarto. Aqui não dorme ninguém. Esvaziamos o guarda-roupa e arrumamos como se fosse uma loja. Tem espelho grande e tudo. Depois é
só conversar com as pessoas na feira, na padaria ou no mercado. Vão adorar.
— Não sei, não. Você acha mesmo?
— Tenho certeza. Antes temos de estabelecer os preços.
Rita começou imediatamente a tratar da arrumação e Clara concordou. Precisava de dinheiro. As crianças estavam sem roupas e havia uma lista de coisas que ela precisava comprar mas que ia adiando.
Conforme Rita previra, algumas mulheres da vizinhança se interessaram e a notícia correu
com rapidez. Embora não privassem da amizade de Clara, conheciam sua vida. Era com admiração que a viam passar, linda, elegante, vestindo roupas caras. Sabiam que ela
trabalhava no ateliê.
Venderam tudo com rapidez, e o resultado as entusiasmou. Clara começou a pensar na possibilidade de falar com outras clientes, comprar tudo que elas não fossem mais usar e
revender.
Estaria ganhando dinheiro e ajudando que elas renovassem seu guarda-roupa.
Antes de tomar qualquer iniciativa, procurou Gino para conversar. Não gostava de fazer nada às escondidas.
Sentada diante dele, contou o que acontecera e finalizou:
— Vendemos tudo com rapidez, e as compradoras ficaram tão satisfeitas de poderem vestir uma roupa de qualidade que pediram para que eu trouxesse mais.
Gino a observava com atenção. Ela continuou:
— São roupas de qualidade, que duram muito, e nossas clientes gostam de renovar e estar na moda. O que ganho aqui tem sido pouco para despesas de minha família. Esse dinheiro foi muito bem-vindo. Por outro lado, adoro trabalhar aqui e não gostaria de sair. Então pensei que poderia conversar com as clientes e comprar delas, por preço módico, claro, o que quiserem vender. Assim, eu poderia comercializar estas roupas em minha casa, sem nenhuma despesa. Desejo pedir sua permissão. Acredito que todos seremos beneficiados. Eu poderei dar mais conforto aos meus filhos, as clientes se livrarão de tudo que não quisessem
mais e farão espaço para novas aquisições, e o ateliê venderá mais.
Dona Consuelo comprou um vestido e telefonou avisando que virá comprar mais dois porque acha que está com pouca roupa.
Gino sorriu e meneou a cabeça, dizendo:
— Está quase me convencendo. Só quero saber como pretende fazer isso. Não podemos importunar as clientes com pedidos. Sou rigoroso nisso, você sabe.
— Sei. Penso que até agora não lhe dei nenhum motivo de preocupação. Tenho me relacionado muito bem com todos. Claro que farei isso discretamente.
— De que forma?
— Direi a elas que estou montando em minha casa uma loja de roupas usadas. Se elas tiverem alguma coisa para vender, eu comprarei.
—Bem, se fizer discretamente, pode fazer. Eu mesmo tenho no deposito algumas peças um pouco fora de moda. Se você se interesse poderá levar.
—As pessoas que compraram não têm meios para pagar uma roupa nova de seu ateliê. Acho que não conseguiria vendê-las.
—Você não entendeu. Essas roupas estão tomando espaço e ninguém vai querer comprá-las. Pode levá-las.
— Gostaria de pagar por elas. Se fizer um preço bem módico, faremos negócio.
— Vá ver as peças e faça o preço.
Clara começou a conversar com as clientes e o resultado a surpreendeu. Em pouco mais de um mês, o quarto de sua casa estava lotado e ela ganhando dinheiro.
Algumas clientes que reformaram a casa lhe ofereceram graciosamente objetos de decoração os mais variados, satisfeitas por verem- se livres do que não gostavam.
Clara aceitava tudo, depois escolhia os melhores, alguns com pequenos problemas mas que, por serem de qualidade e bom gosto, ela tencionava restaurar. O que sobrava, separava para dar a quem aparecesse.
— Muito obrigado, dona. Quando tiver mais coisas que deseja dar, espere por mim. Não dê a ninguém. Vou vender e comprar comida para meus filhos.
Clara concordou satisfeita. Comentou com Rita:
— Fico admirada em ver que há pessoas que aproveitam tudo.
— E isso começou quando a senhora resolveu dar o que não lhe servia mais. Lembra-se?
Minha avó tinha razão. Se você quer ter fartura em sua casa, não guarde coisas inúteis, porque os bens precisam circular. Se fizer isso, sempre terá o suficiente.
Clara ainda não estava convencida disso, mas sorriu alegre. Pode ser coincidência, mas notava que sua vida estava mudando radicalmente. Perdera o medo do futuro, sentia-se
segura, calma, contente. Até problemas de família que tanto a atormentavam haviam diminuído.
De vez em quando se perguntava o que havia sido feito de Osvaldo. Onde estaria? Por que
não dava notícias? Pensava que ele tava sendo egoísta, rancoroso, a ponto de não se interessar pela sorte dos filhos.
Isso ela não tolerava. Havia errado, estava arrependida, sentia-se culpada, reconhecia que ele não merecia isso, mas quando pensava que ele desaparecera sem se preocupar com os filhos, ignorando como eles estavam, sabendo que ela nunca havia trabalhado e que teria
dificuldades para sustentá-los, uma onda de rancor a acometia.
Logo percebeu que também para isso havia compradores. Um homem que passava uma vez por semana com um carrinho de madeira recolhendo o que pudesse aproveitar do lixo dos
moradores ficou muito contente quando Clara lhe deu os vários objetos que considerava refugo.
Nervosa quando as crianças perguntavam pelo pai dizendo que sentiam saudade, ela
comentava com Rita:
— Osvaldo parecia um bom pai. Mas não é. Eu estava enganada. Como é que ele pode ficar tanto tempo longe sem saber como as crianças estão?
— Ele é boa pessoa, Dona Clara, mas ficou desnorteado com o que aconteceu. Parecia outro homem. Passou por mim e nem me viu. Estava fora de si. Quando ele sumiu, pensei
que tivesse feito uma besteira.
— Também tive medo. Mas, se até agora não soubemos de nada, acho que não fez. Sabe como é: as más notícias chegam depressa.
— Vai ver que ele tem se comunicado com a mãe e ela tem lhe dado notícias das crianças.
— Como poderia? Dona Neusa nunca nos procurou depois do que aconteceu.
Rita hesitou um pouco, depois disse:
— Ela telefona de vez em quando para saber como estão.
— Porque não me disse nada?
— Ela implorou que eu não contasse.
— Ainda bem que ela não veio aqui. Tenho medo de que fale mal de mim para as crianças.
Sei que ela faz isso com todos os nossos conhecidos. Nesse caso, é possível que ela saiba onde Osvaldo está e tenha lhe dado notícias.
— Ela disse que telefona escondido, que ninguém da família sabe. Acho que ela não sabe nada do seu Osvaldo. Sempre pergunta se ele se comunicou com a senhora ou com as crianças.
— Se houvesse conversado com ele, saberia que não ligou. Seja como for, quero esquecer essa parte de minha vida. Errei, mas agora não há como consertar. O melhor a fazer é
trabalhar para criar meus filhos, educá-los bem, fazer as vezes de mãe e de pai. É só isso que eu quero. Talvez seja melhor para as crianças que ele não apareça mais. São pequenos detalhes com o tempo vão esquecer. Vamos tocar nossa vida para frente. Tenho uma proposta a lhe fazer.
— Proposta? O que é?
— Não tenho tempo de ficar em casa e cuidar do nosso negócio. É você quem tem feito tudo. Não sei o que teria sido de minha vida sem você. Sou-lhe muito grata por isso. Assim
sendo, de tudo que vendermos em nossa loja lhe darei uma comissão.
— Não precisa, Dona Clara.
— Precisa, sim. Quero que seja minha sócia. E então, aceita?
— Puxa! Estou me sentindo importante. Mas o dinheiro que entra é para o sustento da casa e para o futuro das crianças. Não acho justo. Eu não preciso de nada...
— Precisa, sim. Do jeito que as coisas vão, tenho certeza de que logo estaremos ganhando muito dinheiro. Vai dar para todos nós. Outra coisa: se você é minha sócia, não deve mais
me chamar de senhora.
— Não sei se me acostumo.
— Acostuma, sim. Agora vamos definir os preços naqueles vestidos que chegaram ontem.
O telefone tocou, Rita atendeu. É para a senhora.
Clara apanhou o telefone:
— Alô.
— Clara? Aqui é Válter. Como vai?
— Bem. O que você quer?
— Saber de você, das crianças. Gostaria de vê-la para conversar.
— Não temos nada a dizer um ao outro.
— Está zangada comigo? Outro dia vi você na rua. Tentei alcançá-la, mas você não me viu.
Entrou em um prédio na Barão de Itapetininga.
— Eu trabalho lá.
— Deve ser um emprego muito bom. Você estava muito bem vestida, elegante.
— É uma exigência do meu emprego.
— Senti saudade. Nunca esqueci os momentos que passamos juntos.
— Pois eu não sinto saudade alguma. Se pudesse voltar atrás, não faria aquilo de novo.
— Você não me ama mais?
— Para ser sincera, penso que nunca amei. Foi uma paixão que acabou no momento em que Osvaldo descobriu tudo. Se fosse amor teria sido diferente.
— Não posso acreditar. O tempo passou, você está livre agora. Podemos recomeçar. Estou
cumprindo o que lhe prometi, lembra-se?
— Lembro. Mas não desejo vê-lo mais. Decidi virar essa página da minha vida, criar meus filhos e viver em paz.
— Não acredito que uma mulher ardente como você se conforme em viver sozinha. Por que não abre o jogo? Quem é o homem que colocou em meu lugar?
— Você está delirando. Deixe-me em paz. Tão cedo não quero saber de nenhum homem em minha vida.
— Quer que eu acredite? Quando vi você tão bem vestida, maquiada, elegante, logo vi que havia outro no pedaço. Não acredito nessa de emprego. Você nunca trabalhou na vida, não sabe fazer nada.Não vai conseguir me enganar.
— Cada palavra que você diz mostra quanto eu estava enganada a seu respeito. Você não passa de um conquistador barato, mal-intencionado. O que você pensa de mim não me interessa. Nunca mais me telefone nem apareça na minha frente.
Clara desligou o telefone irritada. Rita fitava-a admirada.
— Puxa, Dona Clara, a senhora acabou com ele!
— Por causa desse mau-caráter traí Osvaldo. Se arrependimento matasse... — A senhora ainda gosta do seu Osvaldo.
— Pensando bem, ele foi um bom marido. Sempre me tratou com honra e respeito. Mas não gosto de pensar nele. Sinto vergonha, medo, fico deprimida. Não sei onde está, como
está. Não gosto de me sentir assim. Preciso ser forte para cuidar da minha família e do nosso negócio Alias, não me chame mais de senhora, por favor.
—Vou tentar. A senhora... isto é, você ficou vermelha de raiva que Válter lhe disse.
—E não era para ficar? Ele me chamou de incapaz. Acha que se bem vestida é porque arranjei um amante. Para ele uma mulher consegue dinheiro dessa forma! Não sei como
pude me envolver com esse patife.
—Ele ainda gosta de você.
Clara deu de ombros:
—Não creio. Depois do que eu lhe disse, nunca mais aparecerá.
Mas Clara estava enganada. Quando chegava em casa à noite, ele lhe telefonava insistindo em um encontro. Dizia que estava sofrendo que a amava, que precisava vê-la. A princípio ela tentara explicar, convencê-lo de que nada mais era possível entre eles,mas Valter não
desistia.
Tendo esgotado todos os argumentos, cansada da insistência dele, não mais atendia ao telefone. Então ele passou a esperá-la perto do seu trabalho, assediando-a de todas as
maneiras. Clara a cada dia ficava mais irritada, e ele se mostrando mais apaixonado. Ela escapava o mais que podia. Em casa, comentava com Rita:
— Ele parece que se multiplica. Aparece em todos os lugares que vou. Insiste. Um horror.
Até algumas clientes já perguntaram quem é esse moço que fica me esperando na porta do prédio.
— Ele vai lhe dar trabalho.
— Uma hora terá de desistir. Não quero nada com ele. Engraçado... Logo que Osvaldo foi embora, fiquei desesperada, preocupada com nossa situação. Pensei que Válter fosse
assumir, tomar conta de mim e das crianças, dizer que nos ajudaria financeiramente. Afinal, ele também teve culpa no que aconteceu. Mas não: deu-me algum dinheiro, mostrou-se apavorado. Pediu para que eu não o procurasse nem telefonasse em seu emprego. Ficou
louco para ver-se livre de mim e de qualquer compromisso. Agora, como eu não o quero, fica insistindo. Não dá para entender!
— É que você deu a volta por cima, está bonita, não precisou dele, mostrou seu valor. Isso mexeu com os brios dele.
— O caso é que essa insistência está me cansando. Se não fosse o receio de escândalo, daria queixa à polícia.
— O povo fala muito. Muitos ainda se lembram do seu caso com ele. O melhor é deixar que ele desista.
— É. Tem razão.
Mas ele não desistiu. Continuou assediando, chegando ao cúmulo de querer abordá-la nos fins de semana quando saía com as crianças. Clara estava cada dia mais indignada. A quem apelar?
Certa tarde, Domênico indagou:
— Tenho notado que você ultimamente tem estado nervosa. O que há? Alguma coisa aqui a
está aborrecendo?
— Absolutamente. Tudo aqui está cada dia melhor. Trata-se de um assunto particular.
— Nem sempre as coisas são como desejamos.
— É verdade. Você sabe que sou separada de meu marido. A culpa foi minha. Ele foi embora, não sei onde está, nunca deu notícias. Graças ao meu emprego aqui, tenho conseguido cuidar de minha família e não há nada que eu deseje mais do que viver em paz com meus filhos. Mas não estou conseguindo.
— Por quê?
Clara suspirou fundo, hesitou, depois respondeu:
— Nunca contei como foi que arruinei meu casamento. Apaixonei-me por outro e meu marido descobriu. Arrependi-me sinceramente. Depois, descobri que o homem pelo qual
me iludi não era o que eu havia imaginado e a paixão desapareceu. Restou apenas um sentimento de tristeza, de frustração. Mas agora esse homem está me perseguindo sem
cessar. Deseja reatar o relacionamento, jura que me ama. Mas eu não gosto dele. Quero que
me deixe em paz, mas ele não desiste.
— Por isso está tão irritada.
— Desculpe. Não percebi que estava dando na vista. Vou me controlar. Não vai prejudicar meu trabalho.
— Sei que não. Você é bastante profissional e sabe separar as coisas. Mas eu, que a conheço bem e sou seu amigo, não gosto de vê-la contrariada.
— Obrigada pelo apoio, Domênico. Se ao menos eu pudesse fazer alguma coisa para Válter me deixar em paz!
— Você pode. Conheço uma pessoa que poderá ajudá-la.
—Quem?
— Trata-se de um médium muito bom, que é meu amigo. Se quiser posso marcar uma consulta para você.
Clara assustou-se:
— Não, obrigada. Minha sogra é que gostava de andar atrás médiuns. Nunca aceitei isso. Não acredito que possa me ajudar. Como é que você, uma pessoa culta e inteligente,
acredita nessas coisas?
— Por experiência, minha cara. Já passei por muitas coisas e não tenho mais dúvidas: sei que a vida continua depois da morte, que os espíritos dos que morreram algumas vezes
ficam ao nosso redor, interferindo em nossas vidas.
—Pois eu não creio. Trata-se de uma ilusão dos inconformados com a separação dos que morrem. Uma maneira de se enganar e sofrer menos.
Domênico olhou para ela e sorriu. Apenas disse:
—Um dia você vai descobrir a verdade. Vamos deixar o tempo passar.
—É. O tempo sempre é um santo remédio.
Campainha tocou e logo entrou uma cliente e Clara apressou-se em atendê-la. Margarida
era uma jovem senhora, exuberante, bonita. Filha de pais muito ricos, casara-se muito cedo com um estudante de Direito, pelo qual se apaixonara, do qual tivera dois filhos, depois de formado, fora trabalhar nas empresas do de Margarida resumia-se em cuidar do bem-estar
da família com o marido pela melhor sociedade, participando de todos os acontecimentos importantes.
O jovem casal era conhecido pela sua filantropia, estando na frente de vários projetos sociais, sendo por isso constantemente citado pelos meios de comunicação, aparecendo nas
revistas importantes.
Margarida era uma das melhores clientes do ateliê. Comprava muito e pagava sem regatear.
— Em que posso servi-la? — indagou Clara depois dos cumprimentos iniciais.
— Estou precisando de dois vestidos: um esporte, outro habillé.
— Vou mostrar-lhe alguns tecidos que acabamos de receber da Itália. As cores são maravilhosas. Enquanto espera, aceita um café, uma água ou um refrigerante?
— Uma água, obrigada. Acho que ainda não vi nenhum destes figurinos. São novos?
— Chegaram na semana passada. Fique à vontade.
Ela se sentou e começou a folhear o figurino. De repente parou. Seu rosto ganhou uma expressão diferente e ela disse:
— Esse homem já lhe causou muito mal. Cuidado. Precisa livrar- se dele. Se ele continuar, vai prejudicá-la ainda mais.
Clara sobressaltou-se. Olhou em volta, estavam sozinhas. Assustada, indagou:
— Para quem está dizendo isso?
— Cuidado. Ele não serve. É preciso livrar-se dele. Já prejudicou sua família, pode atrapalhar muito mais. Mande-o embora de sua vida.
Clara notou que Margarida estava pálida, olhos perdidos em um ponto distante, a voz modificada.
Clara apavorou-se. Imediatamente foi à sala vizinha e chamou Domênico:
— Venha, Dona Margarida está esquisita, falando coisas sem nexo. Acho que está tendo alguma crise...
Domênico acompanhou-a. Margarida continuava na mesma postura. Ele se aproximou, dizendo com voz calma:
— O que quer?
— Avisá-la de que corre perigo. Esse homem precisa sair do caminho dela.
— Está bem. Mas ele insiste, ela não sabe o que fazer. Pode nos sugerir alguma coisa?
— Ela que reze. Vamos tentar ajudar, mas ela precisa cooperar. Você falou, ela não ouviu.
Vamos ver se agora ela entende.
— Farei o possível. Obrigado pela ajuda.
Margarida deu um suspiro fundo, depois olhou para Domênico perguntando:
— Aconteceu de novo!
— Aconteceu, Margarida.
— O que foi que eu disse?
— Clara está com um problema e você tentou orientar.
Ela passou a mão pela testa como querendo afastar a preocupação.
— Não sei por que isso acontece comigo. Fico inquieta. Nunca sei quando vai se dar. Já pensou se acontecer quando eu estiver em alguma solenidade?
Não se preocupe. Pelas palavras que você disse, quem está fazendo isso sabe como agir. Não vai expô-la ao ridículo.
— Se ao menos eu me lembrasse... Clara não se conteve:
— Você não se lembra do que me disse há pouco?
— Nenhuma palavra. Quando eu era criança, de vez em quando a algumas ausências.
Nesses momentos, algumas vezes falava coisas das quais depois não me lembrava. Meus pais, preocupados, levaram aos maiores especialistas não só no Brasil mas também no
exterior. Como não encontraram nenhuma doença. Como não sabiam como explicar, alguns diziam que com o tempo iria passar. E, de fato, melhorou tanto que eu havia até me
esquecido. Fazia muito tempo que não acontecia. Agora não sei o que pensar. Será que vai começar tudo de novo?
— Não. O que você tem é apenas mediunidade.
— Não pode ser.
— É verdade. Acredite. Seria muito bom se procurasse estudar esses fenômenos. Há livros muito sérios sobre esse assunto, que ajuda m a compreender melhor o que está
acontecendo. Além disso, eles a orientariam como proceder.
— Estou assustada, Domênico.
— Não deve. Ser médium significa possuir mais sensibilidade, perceber o que a maioria das pessoas não consegue ver. Perceber o que há além do nosso mundo material, conhecer a
vida em outras dimensões, saber muito mais a respeito do ser humano. A mediunidade é uma benção, Margarida. Ao invés de ter medo, trate de aprender como funciona. Tenho certeza de que encontrará maneira de conviver com isso e aproveitar todos os benefícios
desse estado. A espiritualidade é alegria, proteção e luz.
— Começo a pensar que tem razão. Poderia indicar-me alguns desses livros?
— Certamente. Vou anotar e lhe darei uma relação boa. Vou mandar servir-lhe um café. Acho que lhe fará bem.
— Obrigada. Aceito.
Enquanto ele foi pedir o café, Clara perguntou:
— Está se sentindo bem?
— Estou. Aliás, nunca me sinto mal quando essas coisas acontecem.
Margarida estava corada e bem-disposta, muito diferente de como havia ficado naqueles
instantes. Clara sorriu. Ainda bem.
Atendeu a Margarida, mas, apesar de falarem de outros assuntos, ela não conseguia
esquecer aquelas palavras. Margarida não sabia nada sobre sua vida pessoal. Clara nunca havia comentado com ela.
Margarida referiu-se a Válter, com certeza. Por haver se envolvido com ele, a vida de Clara fora prejudicada. Em todo caso não tencionava dar-lhe atenção. Não sentia por ele mais
nenhum tipo de atração. Ao contrário, sua presença a incomodava, causava-lhe mal-estar.
Não se sentia com o direito de atirar toda a culpa em cima dele, a responsabilidade era dos
dois. Se ela não o houvesse escutado, nada teria acontecido.
Depois de tudo quanto passara, percebia que Válter não era o que ela pensava. Era um homem leviano, arrogante, fraco, preocupado com o que as pessoas pensavam dele, incapaz de um sentimento verdadeiro. Admirava-se de haver se deixado iludir por ele.
No fim da tarde, antes de encerrar o expediente, Domênico aproximou-se:
—Você ficou pensativa depois do que Margarida lhe disse.
— Fiquei. Suas palavras foram de certo modo intrigantes.
— Só intrigantes? Eles se preocuparam em mandar-lhe um recado e você parece que ainda
não percebeu o alcance do que acontece hoje aqui.
— Eles quem?
— Amigos espirituais, espíritos desencarnados que velam pelo seu bem-estar.
Clara olhou séria para ele:
—É difícil acreditar que eles existam.
Domênico sorriu e respondeu:
— Nem tanto. Depois da prova que você recebeu hoje, já deveria acreditar.
— É. De fato. Margarida não sabia nada sobre minha vida. Falou de um homem que me persegue, e eu sei a quem se referiu. Até aí surpreendente. Quanto ao resto, não creio que esteja correndo algum perigo. Não pretendo nada com Válter.
— Mas ele pretende com você. Está insistindo. O recado tem fundamento, sim. Seria bom que acreditasse e tomasse alguma providência mais séria para afastá-lo de vez.
— Válter pode não ser do jeito que eu gostaria, mas trata-se de um homem civilizado, que vai entender. Depois, ele sempre teve muita sorte com as mulheres. Logo aparecerá outra e
ele me deixará em paz. Você vai ver.
— Talvez o fato de ter sorte com as mulheres seja a causa de ele estar insistindo com você.
Para ele, sua recusa está ferindo seu orgulho, e orgulho ferido sempre é perigoso.
— Ele não pode fazer nada.
— Seria bom que não andasse sozinha por aí.
— Não exagere, Domênico. Sei me cuidar.
— Tudo bem. Mas prometa que vai tomar cuidado. Sou seu amigo. Não quero que lhe aconteça nada de mau.
— Desse jeito você me assusta. Ficou mais impressionado do que eu com aquele recado.
— Porque sei que eles, para conseguir transmiti-lo, tiveram de remover várias barreiras, e nunca fariam isso se não fosse realmente necessário.
Clara saiu pensando nas últimas palavras de Domênico. Olhou para todos os lados da rua, mas Válter não estava lá. Ficou aliviada. Era provável até que ele já houvesse desistido.
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Quando é Preciso Voltar
SpiritualA traição da mulher amada doía no fundo do coração de Osvaldo. Açoitado pela desilusão, ele não sabia o que fazer. Como viver carregando o peso dessa dor? Como enfrentar essa dura realidade e continuar vivendo? Amargurado, ele não pensou nos dois fi...