Capítulo 25

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Clara estugou o passo. As lojas estavam lotadas, apesar de ainda faltar um mês para o Natal. Ela havia comprado um presente para Marcos e pretendia comprar um violão melhor para Carlinhos. O dele era simples e o som deixava a desejar.
Carlinhos havia comentado com Marcos que andava namorando um violão e sempre ia à loja de instrumentos musicais para vê-lo.
Mas era caro e ele não queria pedir para comprá-lo.
Clara casualmente ouvira essa conversa e Marcos dera-lhe as informações a respeito.
Dispunha de algumas economias e desejava dar esse prazer ao filho. Carlinhos estava mais estudioso, mais atencioso, e ela achava que ele merecia.
A tarde estava acabando e ela finalmente encontrou a loja. Estava lotada. Procurou por um vendedor, mas todos estavam ocupados. Parou diante de um balcão olhando os violões expostos, procurando descobrir qual o que procurava.
Uma vendedora carregando uma caixa passou por trás dela, pisou em falso e caiu em cima de Clara, que por sua vez perdeu o equilíbrio e ia caindo em cima do balcão de vidro quando alguém a segurou impedindo que batesse o rosto.
Clara voltou-se para agradecer e deu com o rosto preocupado de Osvaldo, que,
reconhecendo-a, empalideceu e largou-a imediatamente. Por alguns instantes, nenhum dos dois conseguiu falar.
Clara tremia e sentia as pernas fraquejarem. A jovem causadora do acidente havia se levantado.
— Desculpe. Tropecei. Machucou-se? Você está pálida... Está sentindo mal?
Clara passou a mão pelos cabelos e respirou fundo. Osvaldo, percebendo que ela ia desmaiar, segurou seu braço, dizendo:
— Venha, aqui está muito abafado. Você precisa de ar. Clara deixou-se conduzir sem dizer nada. Uma vez na calçada, ele continuou:
— Vamos entrar naquela confeitaria. Você precisa sentar-se e tomar uma água.
Clara não respondeu. Parecia-lhe estar vivendo um sonho. Deixou-se levar. Osvaldo conduziu-a a um lugar discreto, perto de uma janela, e ela se sentou. Ele se sentou em sua frente, chamou a garçonete e pediu uma água. Enquanto isso, Clara observava-o
furtivamente, pensando no que ele lhe diria.
Veio a água, ele a serviu e entregou-lhe o copo:
— Beba. Vai fazer-lhe bem.
Ela tomou alguns goles. Osvaldo olhava-a tentando dissimular a emoção. Clara estava mais bonita. Havia em seu rosto, em sua postura, algo diferente que ele não sabia bem o que era.
Enquanto bebia a água e tentava se acalmar, Clara notava que Osvaldo continuava elegante, bonito. Alguns fios de cabelos brancos nas têmporas davam-lhe um aspecto distinto.
— Então, sente-se melhor?
— Sim. Já passou.
— O que aconteceu? Ficou mal porque fui eu quem a segurou?
Diante de uma pergunta tão direta, Clara baixou a cabeça e não soube o que responder. Ele continuou:
— Minha presença a incomoda tanto assim?
Havia tanta mágoa em sua voz que ela protestou:
— Não foi isso. É que a surpresa, eu não esperava.., perdi o rumo.
— Faz tempo que não nos vemos.
— É... depois de tudo que houve, eu me sinto constrangida.
—Não se sinta assim. O tempo passou, nós amadurecemos.
De repente Clara começou a chorar. As lágrimas desciam pelo seu rosto e ela não conseguia parar. Os soluços sacudiam seus ombros, e de cabeça baixa ela dava vazão aos seus sentimentos.
Comovido, Osvaldo levantou-se e sentou-se ao lado dela. Apanhou o lenço e colocou-o em sua mão. Depois passou o braço sobre seus ombros, apertando-a de encontro ao peito.
— Chore, Clara. Lave sua alma.
Ela continuou soluçando por algum tempo, depois aos poucos foi serenando. Deixou-se ficar ali, cabeça encostada no peito dele, que batia descompassado com a proximidade dela.
Clara estava em seus braços. Sentia o perfume de seus cabelos, a maciez de sua pele, o cheiro familiar de sua presença.
Teve vontade de beijá-la muito, matar a saudade que irrompia incontrolável. Conteve-se, porém. Não podia abusar de um momento de fragilidade que ela estava vivendo. Beijou-lhe
levemente os cabelos, sentindo o calor do amor que vibrava em seu coração.
Ela se afastou um pouco, dizendo:
— Desculpe. Não pude evitar.
—Eu sei. Também estou tentando me controlar. Não está fácil.
Seus olhos se encontraram e Clara disse baixinho sem desviar:
— Perdoe-me por todo o mal que lhe fiz.
Osvaldo não respondeu logo. Pela sua mente passou de novo a cena de Clara nos braços de Válter. Sentiu um aperto no peito e respondeu:
— Ninguém manda no coração. Você deixou de me amar e não a culpo por isso. Se tivesse sido franca, se tivesse dito que gostava de outro, eu, mesmo sofrendo, teria deixado o caminho livre.
— Fui covarde. Até hoje, quando me lembro daquele tempo, não consigo entender meus sentimentos. Não estou justificando o que fiz. Aceito minha culpa. Ela tem me infelicitado
desde aquele dia. Mas eu mereço. Errei. Fui leviana, covarde, e, o que é pior...
Ela se calou indecisa.
— O que pode ser pior?
— O arrependimento. Ver que nesse jogo eu perdi muito mais do que ganhei.
Osvaldo ficou calado. A garçonete aproximou-se:
—Desejam comer alguma coisa?
Osvaldo pediu suco e alguns salgadinhos. Clara apanhou a bolsa, abriu, tirou o espelho, olhou para seu rosto e comentou:
— Que horror, estou horrível.
—Você continua bonita como sempre.
Ela corou levemente. Osvaldo olhava-a com admiração e Clara perdeu o jeito. Dissimulou, empoou o rosto, passou levemente o batom. Guardou tudo.
— Fazia tempo que desejava procurá-la, porém você não queria me ver, e eu respeitei. Mas foi bom termos nos encontrado. Nossos filhos não têm culpa de nossos desacertos e merecem viver em paz.
— Por que diz isso? Eles comentaram alguma coisa?
— Não diretamente, mesmo porque tenho evitado falar no assunto. Mas se ressentem. Você precisa saber que voltei para refazer minha vida, assumir a responsabilidade de pai. Afastei-
me porque não tinha condições emocionais. Estava desequilibrado, levou tempo para conseguir voltar ao normal.
Mesmo que desejasse regressar, não tinha como. Estava desempregado, sem capacidade de trabalho. Não podia oferecer nada aos nossos filhos. Depois...
Ele hesitou sem poder continuar, e Clara perguntou:
— Depois o quê?
— Nada. Eu estava desequilibrado, minha imaginação não me dava sossego. Não tive coragem de voltar e enfrentar meus medos.
— Tenho ouvido comentários sobre você e o trabalho que vem realizando.
— Tive a felicidade de conhecer pessoas muito boas no interior que me deram algumas respostas sobre as dúvidas que me atormentavam. Aprendi a confiar na bondade divina, que me levantou e me fez enxergar a vida de outra forma. Sou grato por isso. Encontrei a paz e
a vontade de viver.
Osvaldo fez uma pausa e, notando que Clara o ouvia com atenção, continuou:
— A vida é maravilhosa. Fomos criados para a felicidade. Mas nós enchemos nossa cabeça com idéias limitantes e erradas que nos fazem enxergar o lado pior. Essa é a causa da nossa
infelicidade. Tenho aprendido com os espíritos superiores que todos somos fortes, podemos enfrentar todos os desafios e encontrar a paz.
Clara meneou a cabeça indecisa:
— Não tenho essa certeza. Dona Lídia tem me orientado, mas não está fácil. Vivo atormentada. Há momentos em que acredito que nunca mais terei paz.
— Terá quando encontrar a fé. Aconteça o que acontecer, é preciso confiar na fonte da vida. Ela supre todas as nossas necessidades.A natureza prova o que estou dizendo.
Clara levantou para ele os olhos emocionados. O rosto de Osvaldo estava expressivo, seus olhos brilhavam cheios de vida e havia entusiasmo em sua voz, que adquirira um tom amoroso e firme.
— Pelo jeito você já conseguiu.
— Algumas vezes. Não o tempo todo. Alguns fantasmas mentais ainda aparecem para cobrar alguma coisa. Mas eu insisto no bem e na fé. Sei que esse é o caminho para a conquista definitiva.
— Gostaria de poder fazer isso. Agora preciso ir. É bom saber que você está feliz. A lembrança do mal que lhe fiz tem me atormentado. Apesar do que houve, nunca desejei prejudicá-lo. Em minha leviandade, nem sequer pensei nisso.
Osvaldo colocou sua mão sobre a dela.
— Não precisa se justificar. Não estou lhe cobrando nada. Por causa de nossos filhos, gostaria que mantivéssemos um relacionamento cordial. Se minha presença a incomoda, basta apenas que, quando nos encontrarmos, o que poderá acontecer no futuro quando as
circunstâncias exigirem, possamos nos falar com naturalidade, sem magoas ou
ressentimentos.
— Você já conseguiu não me odiar!
— Nunca a odiei. Nem nos piores momentos. Naqueles dias, o que eu queria era desaparecer, sumir, para não atrapalhar sua vida. Mas não pense que sou bom. Apenas compreendi que o amor é espontâneo. Não se pode forçar. A única dor era porque você não
me contou nada. Mais tarde, percebi que não foi capaz. Tenho aprendido que é loucura querer de alguém o que não nos pode dar. Acredite, eu nunca a odiei.
Clara estremeceu, seus lábios tremeram e as lágrimas tomaram seus olhos mais brilhantes.
Ela se controlou.
— Desculpe. Não estou conseguindo me controlar.
— Não se perturbe. Foi bom termos nos encontrado. Ainda continua querendo me evitar?
— Não. Acho que fantasiei demais sobre nosso encontro. Também me sinto aliviada.
— Antes assim.
— Preciso ir. Pretendia comprar um violão para Carlinhos. Ele anda querendo um.
— Fui lá pelo mesmo motivo. Antônio me contou que ele sonhava com esse violão.
Ela sorriu.
— Se não nos encontrássemos, ele poderia ganhar dois.
Eu já encomendei um. Vai demorar quinze dias para ficar pronto Você pode dá-lo a ele.
Vou procurar outra coisa.
— Não. Você encomendou. Já pagou?
— Dei metade de sinal.
— Nesse caso, procurarei outra coisa.
— Se quiser dar o violão, não se acanhe. Escolherei outro presente
— Não. Pode deixar. Amanhã verei outra coisa. Tenho de ir.
— Espere, vou pagar a conta. Posso levá-la.
— Não, obrigada. Meu carro está no estacionamento próximo.
Ele tirou um cartão do bolso e ofereceu a ela.
— Fique com meu telefone. Se precisar de alguma coisa, ligue.
Seus olhos se encontraram e Clara pegou o cartão com a mão trêmula. Levantou-se. Ele fez o mesmo e segurou a mão que ela lhe estendia.
— Obrigada por tudo.
— Foi muito bom vê-la!
Estavam muito próximos, e Osvaldo sentiu vontade de beijá-la. Conteve-se a custo. Clara puxou a mão, apanhou a bolsa, os pacotes e saiu.
Osvaldo sentou-se novamente pensativo. Por que não conseguia esquecer aquele amor?
Clara estava perdida para sempre. Precisava conformar-se em vê-la sem esperar nada, em amá-la sabendo que nunca teria seu amor.
Clara foi direto para casa. Não sentia vontade de continuar as compras. Vendo-a, Rita comentou:
— Voltou cedo! As lojas devem estar lotadas.
— Estão. Você nem imagina o que me aconteceu.
— Hmm... Você está corada, agitada... O que foi?
— Fui à loja ver o violão de Carlinhos e tive uma surpresa.
Em poucas palavras Clara contou tudo. Quando acabou, Rita disse séria:
— Eu sabia que um dia isso iria acontecer. Não houve nada do que você temia. Como foi?
Garanto que ele a tratou muito bem.
— De fato, ele foi atencioso. Em nenhum momento me pediu contas do passado. Acho que foi por isso que não pude me controlar. Caí no choro, foi um vexame: a surpresa, a tensão de todos estes anos imaginando o que ele faria quando me encontrasse. Não sei, mas ele
está diferente. Seus olhos têm um brilho novo, seu rosto está mais vivo, não sei explicar.
Há alguma coisa nele que o torna muito diferente do que foi.
— Também tenho notado essa mudança. No princípio fiquei me perguntando o que era.
Com o tempo entendi. Ele se tornou mais maduro, mais lúcido e mais verdadeiro. Sua presença faz bem, suas palavras me colocam para cima. Ele se tomou muito positivo, e eu sinto que o que ele diz é verdade.
Clara ficou pensativa por alguns instantes. Rita serviu um café para ambas e sentaram-se na sala enquanto Diva cuidava do jantar.
— Estive pensando... — disse Clara. — Será mesmo que ele pode ver os espíritos?
— Tenho certeza. Várias vezes eu o vi atendendo a pessoas falando de coisas que só elas sabiam. Se você visse, também acreditaria.
— Talvez assim eu pudesse ter mais fé. Ele disse que para conquistar a paz interior é preciso ter fé.
— A fé para agir, para nos dar forças, precisa ser verdadeira. A dúvida nos enfraquece. Não me refiro ao fanatismo, que sempre prejudica, mas à certeza de como as coisas são. Há muita diferença entre uma coisa e outra. O fanatismo vem da superstição, da ilusão, do
orgulho; a fé vem da constatação da verdade. Aparece quando olhamos as bênçãos que a vida nos traz todos os dias.
Não sabia que você conhecia tanto a respeito.
— Tenho frequentado as palestras de Osvaldo no sítio. Elas têm me esclarecido muito. Ele nos ensina a observar, a pensar, a compreender. Agora que perdeu o medo, não quer ir
comigo no próximo domingo?
Clara estremeceu.
— Não. Conversamos como pessoas civilizadas, mas ele deixou claro que só vai se aproximar de mim quando a situação exigir por causa dos meninos. Em nenhum momento
falou em manter uma amizade. Eu entendo isso. Acho melhor assim. Não pretendo me aproximar dele.
Rita olhou-a nos olhos, como querendo penetrar seus pensamentos íntimos, e tornou:
— Osvaldo está mais bonito agora do que sempre foi. Esse encontro não a fez sentir saudade do passado?
Clara corou levemente.
—Saudade do passado eu sempre tive, porque foi uma época em que fomos felizes. Mas isso acabou.
— E se ele quisesse voltar, você aceitaria?
Clara levantou-se indignada.
— Nem fale uma coisa dessas! Nunca passou pela minha cabeça essa possibilidade. Acho que você andou conversando demais com os meninos. Eles é que de vez em quando atiram
suas indiretas.
—Fale a verdade, Clara. Você vive sozinha. Por que nunca mais se apaixonou?
— Porque sofri o bastante. E você, por que nunca se casou?
— Porque não encontrei o homem dos meus sonhos. Se encontrasse, não perderia a oportunidade.
— Você agora virou casamenteira? Pois para mim chega. Nunca mais quero amar ninguém.
Tenho meus dois amores, tenho você, muitos amigos. Não preciso de nada.
Rita sorriu maliciosa, mas não respondeu. Era cedo ainda para falar sobre o assunto.
Sabia que Osvaldo amava Clara como no primeiro dia. Era preciso dar tempo ao tempo.
Nos dias que se seguiram, Rita notou que Clara estava mais quieta do que o habitual. Várias vezes surpreendera-a pensativa. Quando perguntava o que estava acontecendo, ela
desconversava.
Já não brigava com os rapazes quando os via arrumar a bagagem nos fins de semana para ir ao sítio com Osvaldo. Ficava em volta deles, prestando atenção às suas conversas, fingindo
que estava arrumando alguma coisa.
Uma noite em que estava lendo na sala, os rapazes se aproximaram e sentaram-se. Clara fechou o livro, dizendo:
— Os dois aqui a esta hora? Acho que querem alguma coisa. O que é?
— Temos de conversar — disse Marcos. — Faltam três dias para o Natal, e como vai ser
este ano?
— Como sempre foi. Teremos nossa ceia à meia-noite. Já sei, querem sair depois para ver as garotas.
Marcos hesitou e Carlinhos tomou a dianteira:
— Não. É que vai haver uma festa no sítio de papai amanhã. Queremos participar. Carlinhos vai tocar. As pessoas esperam, programaram.
Clara olhava-os franzindo o cenho. Eles estavam dizendo que passariam o Natal fora de casa, longe dela?
— Mas estaremos de volta na véspera de Natal, antes da meia- noite, para a ceia — apressou-se a esclarecer Carlinhos.
— Só não vamos poder ajudar a arrumar os enfeites, a árvore, como sempre. Rita e Diva disseram que farão nossa parte.
Clara suspirou, sem saber o que responder. Era evidente que eles preferiam ir ao sítio a
ficar em casa com ela. Não respondeu logo. Eles sempre se entusiasmaram com os preparativos para a ceia. Escolhiam os enfeites, montavam o cardápio, compravam ornamentos novos.
Carlinhos aproximou-se, sentou-se a seu lado no sofá e passou o braço sobre seus ombros.
— Mãe, não queremos que fique triste. Você é a pessoa a quem mais amamos no mundo.
Marcos também a abraçou.
— Se você ficar triste, nós não iremos.
Clara não encontrou resposta logo. Tinha a sensação de que os filhos a estavam
abandonando, preferindo o pai, que durante tantos anos esteve ausente. Não achava justo.
— Será uma festa muito bonita. Gostaríamos muito que você fosse. Assim ficaríamos todos juntos, sem termos de dividir nosso carinho — disse Carlos.
—Vocês sabem que isso é impossível.
— Por quê? — perguntou Carlos. — Lá é um lugar mágico, que torna as pessoas felizes.
Você se lembra de como eram a vovó Neusa e o tio Antônio? Duas pessoas desagradáveis, das quais ninguém gostava. Agora...
Marcos interveio:
— Estão tão diferentes que você não os reconheceria mais.
Clara sacudiu a cabeça negativamente:
— Vocês estão me dizendo que eles mudaram? Não posso acreditar. Convivi alguns anos com eles e sei que são intratáveis. Vocês se lembram de que, depois que seu pai foi embora,
ela ia à escola perturbar.
— Sei disso, mas vovó parece outra pessoa. Está mais alegre, arruma-se melhor, tem muitas amigas, troca receitas com elas e a cada semana leva um prato diferente para o lanche —
contou Marcos.
— Quando fazemos música, as pessoas sentam-se em volta e cantam. Você sabia que vovó tem uma bela voz?
Clara não se conteve:
— Dona Neusa canta? Vocês estão enganados. Ela nem sorri. Acho que se trata de outra pessoa.
— Nada disso. É a vovó mesmo. Sabe, mãe, nós estávamos enganados a respeito dela — disse Marcos.
— Não posso crer. Vão contar essa história para outra pessoa.
— Papai explicou tudo — esclareceu Carlinhos. — Vovó ficou viúva muito cedo e teve medo de não poder sustentar os filhos. Quando deu o papai para tia Ester criar, ela sofreu e tornou-se infeliz.
— Ele disse que o medo pode tornar a pessoa agressiva. É uma reação de quem não acredita na própria capacidade. Ela é uma mulher forte, mas não tinha consciência disso.
Tornou-se amarga. Mas agora ela sabe que é corajosa e com Deus pode enfrentar qualquer coisa— completou Marcos.
— No começo não me aproximei muito dela. Tive receio de que falasse mal dos outros, como antigamente. Mas ela nunca mais falou nada. Elogia as músicas, me abraça. Agora até gosto quando ela chega.
— Não sabia que estavam convivendo com eles. Seu pai nunca foi muito ligado à família.
— Ele também sofreu muito quando se separou de vovó. Tinha só cinco anos. Pensou que ela não gostasse dele. Agora ele sabe que ela também sofreu, que se sacrificou para que ele tivesse conforto e não passasse necessidade — disse Marcos.
— Quer dizer que seu pai se aproximou da família...
— Sim. Ele costuma dizer que todas as pessoas têm Deus dentro de si. Algumas não têm consciência disso e o buscam fora, nas coisas do mundo. Mas isso é uma ilusão perigosa.
Nunca dá certo. Bom mesmo é sentir o bem que cada um guarda dentro de si. Aí não tem erro.
Clara fitou-os admirada. Era difícil crer no que eles diziam. Dona Neusa era uma mulher mesquinha, ruim, sempre vigiando para criticar.
— Tudo que vocês estão dizendo é muito bonito, mas não acredito que sua avó seja como dizem. Vocês estão sendo ingênuos. Ela pode muito bem estar fingindo. É interesseira e
mesquinha. Faz qualquer coisa por dinheiro. Ela quer agradar a seu pai agora que está bem de vida.
Marcos baixou a cabeça, mas Carlinhos disse com tristeza:
— Mãe, falando assim você me parece mais maldosa do que ela. Temos nos encontrado várias vezes, e ela nunca falou mal de você.
Clara remexeu-se no sofá inquieta, notando que ele estava certo.
— Desculpe, meu filho. Não quis ser maldosa mas essa é a lembrança que guardo dela.
Tenho consciência de que nos anos que estive casada procurei inúmeras vezes me aproximar dela, manter um relacionamento afetivo, respeitoso. Mas não consegui. Agora você diz que ela mudou... É difícil acreditar.
— Mas é verdade — garantiu Marcos. — Ninguém pode fingir daquele jeito. Os olhos dela brilham de alegria, ela demonstra boa vontade, não se queixa de nada.
— Você precisa ir lá e ver — disse Carlinhos. — Quando há boa vontade, alegria, as pessoas ficam bem, não sentem vontade de criticar nem de criar problemas.
— Do jeito que dizem, esse sítio é a oitava maravilha do mundo— tornou Clara sorrindo, tentando desfazer a impressão de intolerante que estava transmitindo.
— Você bem que poderia ir conosco. Tenho certeza de que seria muito bem recebida por todos — acrescentou Carlinhos.
— Ela não quer encontrar papai — disse Marcos ao irmão.
Clara interveio:
— Não irei com vocês. Podem ir, mas voltem para a ceia. Nós arrumaremos tudo.
Depois que eles deixaram a sala, Rita aproximou-se:
— O cerco está apertando — disse sorrindo.
— Você estava aí? Ouviu tudo?
— Sim.
— Eles estão me abandonando, passando para o lado do pai. Também, com tanta festa e movimento, é mais interessante mesmo do que ficar aqui ao nosso lado. Imagine você: quiseram convencer-me que Dona Neusa agora é uma pessoa boa, alegre. Acha possível?
— Por incrível que pareça, ela mudou muito mesmo.
— Você acha que está sendo sincera?
— Bem, isso não sei. Os dois mudaram muito. Tanto ela quanto Antônio parecem outras pessoas. Com ele tenho conversado mais. Já com ela, apesar de me cumprimentar sorrindo,
tenho evitado conversa, porque, se ela me perguntar alguma coisa de você, como fazia antigamente, ou fizer uma provocação, não terei paciência de tolerar. Não gostaria de ter
uma discussão em um lugar em que as pessoas vão para se sentir melhor.
— Você também não acredita que ela tenha mudado.
— É que nós a conhecemos de outros tempos. Mas lá as pessoas a estimam, ela tem muitos amigos. Que eu saiba, ela tem se comportado muito bem.
— Vai ver que tem medo de perder a ajuda de Osvaldo.
— Acho que não. Ele nunca lhe pediu que frequentasse o sítio. Pelo que sei, muito antes de Dona Neusa aparecer por lá, ele já lhe dava mesada.
— Os meninos não gostaram quando eu disse o que pensava dela. Chamaram-me de maldosa. Agora ela passa por boa. Eu é que fiquei sendo a ruim.
— Também não é para tanto. Deixe de ser ciumenta. Afinal, acabar com as mágoas do passado, relacionar-se melhor com a família sempre é um bem.
— Seja como for, não gostaria de me reencontrar com ela.
— Isso demonstra que você ainda guarda mágoa. Temos aprendido com os espíritos que para sermos felizes é preciso limpar nosso coração de todos os ressentimentos.
— É fácil dizer mas difícil de fazer.
— Não quando encontramos a verdade dos fatos. Eles acabam demonstrando que nosso juízo foi errado.
— Não com Dona Neusa. Ela sempre foi terrível. Está certo que eu errei, mas ela nunca tentou compreender e ajudar.
— Você nunca poderia esperar isso dela. Dona Neusa estava sofrendo com seus próprios problemas emocionais. Não tinha alcance nem condições de olhar com equilíbrio os desacertos de sua relação com Osvaldo.
Depois, se sua incapacidade de trabalhar a dor tornou- a agressiva e crítica com as pessoas, seu sofrimento com os problemas do filho fizeram-na ver em você a causa do que estava sofrendo.
— Não sei se é verdade esta história de que a dor provoca agressividade.
— Pode não ser para você ou para mim, mas pode ser para alguém que veja na
agressividade uma forma de prevenir o mal, de se defender, de bater antes que os outros batam.
— Pode ser que ela tenha pensado assim.
— Nós julgamos os outros pelo nosso modo de ver as coisas. Isso nunca dá certo, uma vez que cada um pensa de um jeito.
— Amanhã eles irão para o sítio e nós ficaremos sozinhas.
— É bom nos acostumarmos. Eles são adultos. Hoje irão com o pai, amanhã vai aparecer uma moça, e aí se irão de vez. É a vida. Temos de nos desapegar deles.
— Sei disso. Mas não é fácil. Eles são tudo que me resta no mundo Durante estes anos, habituei-me a fazer tudo para eles.
— Não diga isso. A vida faz tudo certo. Quando eles se forem, outros interesses aparecerão em nossas vidas, O importante é aceitar as mudanças que a vida traz e seguir adiante, com
otimismo e alegria.
— Não sei onde você aprendeu a ser tão positiva. Gostaria de ter a sua coragem.
— É melhor ir pela inteligência do que pela dor. Quando a gente não quer andar, a vida empurra.
Clara riu e abraçou a amiga, dizendo:
— Enquanto você estiver comigo, tudo vai sair bem.
No dia seguinte pela manhã, Carlinhos foi procurar o pai.
— Falamos com mamãe e ela concordou. Nós vamos para o sítio hoje com você e
voltaremos para a ceia na véspera de Natal.
— Estou contente, mas ela concordou mesmo?
— Bom, a princípio ficou triste, mas por fim entendeu. Ela sabe que nós a amamos muito.
Vim para combinar a hora e ver o que precisamos levar.
— Iremos no fim da tarde. Depois das cinco. Tenho algumas coisas para fazer na cidade.
— Marta disse que ia levar tudo hoje. Ela vai conosco?
— Não. Um dos motoristas foi com ela fazer tudo. José devem estar a caminho do sítio.
Vão adiantar os preparativos.
Carlinhos ficou parado alguns momentos de cabeça baixa.
— Você parece triste, O que foi? Prefere ficar com sua mãe?
— Não é isso. E que eu gostaria que ela também fosse. Tenho certeza de que lhe faria bem.
Não gosto de vê-la sempre sozinha com Rita, trabalhando, lendo, sem se divertir.
— Por que não a convida para ir?
— Eu convidei, mas ela não quis. Acho que tem receio de encontrar você.
— Bobagem. Nós nos encontramos outro dia na cidade e conversamos, O motivo deve ser outro. Vai ver que tem outro compromisso.
— Que nada. Antigamente ela ainda saía com alguns amigos, mas ultimamente recusa os passeios. Está sempre em casa. Só sai para ir ao centro de Dona Lídia e para trabalhar. Se
ela fosse junto, seria maravilhoso. Tenho certeza de que Rita ficaria feliz. Ela me disse que gostaria de estar lá.
Ficou calado por alguns instantes, hesitou e depois disse:
— Posso lhe perguntar uma coisa? Pode.
—Vocês conversaram numa boa?
— Sim. Está tudo bem.
—Nesse caso, por que não liga e convida-a para ir conosco? Notei que ela até gostaria de ir, mas está acanhada. Se você convidasse...
—Não creio que ela aceite. Vamos deixar isso. Não gosto de pressionar. Se um dia ela for, será bem recebida. Mas não vou pedir-lhe isso.
Carlinhos não respondeu. O fato de seus pais já terem se falado havia sido bom. Não queria insistir.
Depois que ele saiu, Osvaldo sentiu vontade de ligar. Mas conteve-se. Não queria que Clara pensasse que ele estava forçando a situação.
Apanhou a lista do que faltava para comprar e saiu.
Osvaldo terminou as compras antes do meio-dia e foi para casa almoçar. Pretendia descansar um pouco antes de viajar para o sítio.
Enquanto comia, José aproximou-se:
— O motorista foi com Dona Marta mas esqueceu-se de entregar as cestas para Dona Lídia.
Ficaram na despensa.
— Comprei tudo antes, para evitar as correrias de última hora.
— Telefonei para Dona Lídia, mas ela não tem ninguém para mandar buscar. Se quiser, eu posso ir.
— Não. Você ainda tem muitas coisas para fazer. Não quero atrasar a viagem. Pode deixar, eu mesmo levo. Assim aproveito para abraçar Dona Lídia.
Quando terminou de almoçar, José há havia colocado tudo no carro e Osvaldo apressou-se.
Além do dinheiro que mandava mensalmente para a assistência social do centro, levara também alimentos para as famílias que ela atendia por ocasião do Natal.
Encontrou Lídia no salão acompanhada de seus voluntários preparando os sacos de alimentos para distribuição, como fazia todos os anos.
Ela não achava justo ter mesa farta nessa data enquanto outras pessoas não tinham nem o necessário para comer.
É preciso dizer que ela cadastrava essas famílias e as atendia durante o ano inteiro com tudo que podia, mas nas festas do Natal, com a ajuda das pessoas, preparava uma sacola especial. Era com alegria que trabalhava nessa tarefa, cuidando dos brinquedos e dos
alimentos a serem distribuídos para mais de trezentas famílias.
Vendo Osvaldo descarregar o carro auxiliado por alguns voluntários, aproximou-se sorrindo:
— Seja bem-vindo.

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