Capítulo 4 e 5

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O galo cantou e Osvaldo remexeu-se na cama. Sentia o corpo doer, pois não conseguira pregar olho a noite inteira.
Fazia mais de dois meses que ele se atirara do trem e, embora as feridas do corpo houvessem sarado, ainda sentia que a ferida interior continuava aberta, como se o tempo
não houvesse passado. Estava difícil esquecer.
Naquela casa, todos o tratavam com respeito e consideração. Havia bondade em cada gesto, e ele os apreciava muito. O ambiente era agradável, leve, eles se tratavam com educação e carinho.
Havia harmonia, e os filhos conversavam de igual para igual com os pais, sem atravessarem
os limites do respeito, e eram ouvidos em seus questionamentos.
Para Osvaldo, habituado à convivência com a tia, sempre muito fechada a qualquer intimidade, essa era uma condição nova, e ele se sentia muito bem na companhia deles.
Mas, apesar disso, a ferida do coração ainda sangrava. A cena de Clara abraçada com Válter voltava-lhe à mente, e nesses instantes a angústia o sufocava.
Até quando carregaria essa chaga no peito? Até quando a lembrança dos filhos queridos e a saudade o atormentariam? Nesses momentos, perguntava-se por que Deus lhe poupara a vida. Seria para continuar nesse tormento?
Quando se sentia triste, costumava sair e ir sentar-se sob o abacateiro na beira do córrego e ficar meditando, olhando sem ver, perdido em seus pensamentos.
Quando percebia, havia alguém sentado a seu lado, ora Diocleciano, ora uma das meninas e até João, sem dizer nada, e Osvaldo sentia que eles estavam sendo solidários, oferecendo
apoio, amizade.
Então a angústia passava. E, quando ele se mostrava disposto a conversar, cada um do seu jeito procurava chamar sua atenção para as belezas da vida, da natureza, que, perfeita em
seu ritmo, vai colocando todas as coisas no lugar.
Osvaldo acabava por sentir-se melhor, entre as risadas de Aninha, as tiradas bem-humoradas de Dalva, a curiosidade insaciável de Diocleciano, a paciência de João e até as frases bem achadas de Maria.
Durante o dia, trabalhava duro na roça. Sentia-se bem por retribuir o carinho que recebia e também porque, ocupando-se, suando a camisa, esquecia um pouco a tristeza. Com o corpo cansado, muitas vezes adormecia sem ter tempo de pensar no passado.
Naquela noite, entretanto, isso não aconteceu. E que naquele dia Carlinhos fazia seis anos.
Pensara nele o dia inteiro, O que estaria fazendo? Como estariam levando a vida?
Havia momentos em que se arrependia de haver desaparecido e ficava tentado a telefonar
para sua mãe para saber o que estava acontecendo lá. Mas não queria que soubessem onde ele se encontrava. Sabia como eles pensavam. Julgavam-no covarde por ter fugido e não ter acabado com Clara ou tirado os filhos dela.
Às vezes pensava em voltar. Mas estava sem emprego, sem roupas, com pouco dinheiro. O que iria fazer na cidade? A mãe era sustentada por seu outro filho, Antônio, que pedira
demissão do emprego. Como estariam vivendo?
Não. Nunca voltaria tendo de pedir a ajuda deles nem que fosse apenas para os primeiros tempos. E Clara? Teria se ligado a Válter de uma vez?
A esse pensamento, sentia aumentar sua revolta. A idéia de ver seus filhos vivendo ao lado do rival, tendo-o como pai, incomodava-o. Nesses momentos tinha ímpetos de voltar e
tomar conta dos filhos. Mas como fazer isso? Não se encontrava em condições de pleitear a guarda deles na justiça. Nem sequer tinha uma casa para abrigá-los.
Apesar do que fizera, Clara era muito amorosa com as crianças.
Não as entregaria a ele a não ser que a justiça a obrigasse. Reconhecia que isso seria difícil.
Nesses casos, a preferência é da mãe.
Se ao menos ele tivesse tido a coragem de pegar as provas do comportamento dela para tentar obter o direito sobre os filhos... Entretanto, mesmo que conseguisse a tutela deles, como iria tomar conta se não tinha recursos para montar uma casa decente, manter uma babá para cuidar deles?
Depois, eles eram muito apegados à mãe. Sofreriam bastante tendo de se separar dela.
Osvaldo passou a mão pelos cabelos, inquieto. Não tinha saída. O jeito era continuar ali, naqueles ermos, engolindo a angústia, a saudade, a revolta, tentando sobreviver apesar de tudo.
Pensou em sua tia Ester. Certamente sua mãe não teria ocultado da cunhada o seu drama.
Como teria reagido? Apesar de educada e afável, nunca conseguira muita proximidade de tia Ester.
Mantinham bom relacionamento. Enquanto viveu em sua casa nunca lhe deu motivos de preocupação, tendo procurado ser sempre correto e obediente. Apesar disso, sentia que
entre eles havia uma barreira. Ela era sempre discreta e equilibrada. Nunca a viu sair daquela postura ou perder a calma.
Quando conversavam, nunca mencionavam problemas pessoais Por isso Osvaldo sentia que, mesmo tendo vivido com ela na mesma casa durante anos, não a conhecia mais de
perto. Respeitava essa forma de viver, mas ao mesmo tempo não se encorajava em atravessa aquela barreira que ela colocava e tacitamente evitava mostrar seus sentimentos diante dela, conservando a postura indiferente e equilibrada mesmo que por dentro estivesse inquieto.
Depois de formado, ele começou a trabalhar, e quando resolvei casar-se já tinha economias suficientes para montar a casa sem precisar pedir-lhe ajuda. Mesmo assim, ela fizera
questão de dar-lhe a casa onde foi morar depois do casamento. Era uma casa boa, e eles a decoraram muito bem.
Pensando nisso, ele estremecia. Haviam sido felizes por tantos anos. Teria sido tudo mentira? Clara teria tido outros amantes? Desde quando ela o enganava?
O que tia Ester estaria pensando dele? Era difícil saber. Se ele procurasse para pedir ajuda, o que ela faria? Apesar da falta de intimidade entre eles, ela sempre o ajudou. Momentos
havia em que ele pensava que ela talvez fosse a única pessoa que o ajudaria sem recriminações.
Tanto sua mãe quanto seu irmão eram interesseiros e egoístas. Viviam endeusando a tia por ela ser rica, mas por trás criticavam sua vida com o marido, o que sempre o revoltava e
acabava em discussão.
Osvaldo não gostava de maledicência. Quando a mãe e o irmão se mudaram para São Paulo e ele começou a conviver mais com eles, descobriu logo como eles viviam e tratou de espaçar suas visitas.
Ele já havia se casado, e Clara também não gostava de conviver com eles. Era ele, Osvaldo, que insistia para que a mulher o acompanhasse nas visitas domingueiras à casa da mãe.
Arrependia-se disso. Mas como poderia saber que ela iria fazer o que fez? Ele valorizava a vida familiar e muitas vezes se culpou por não gostar de conviver com a mãe e o irmão,
obrigando-se a ir vê-los mesmo sem prazer.
Pensava que um bom filho tinha de ser atencioso com os pais, mesmo que eles deixassem a desejar como pessoas. O que ganhara com isso? Eles o chamavam de fraco, ditavam
normas de comportamento, que riam obrigá-lo a tomar atitudes que ele não desejava.
Pensando bem, talvez ele tivesse fugido não só para esquecer seu drama amoroso mas também para escapar do assédio e das críticas deles que o estavam confundindo e
infelicitando mais.
O galo cantou e Osvaldo levantou-se, sem haver pregado olho a noite toda. Era hora de trabalhar. Melhor do que ficar se remexendo na cama lutando com pensamentos dolorosos.
Quando Maria entrou na cozinha para acender o fogo, já Osvaldo estava sentado no banco ao lado da janela.
— Bom dia, Osvaldo — disse ela.
— Bom dia.
Ela acendeu o fogo e colocou a chaleira para o café. Osvaldo se levantou.Vou pôr as canecas na mesa.
— Pegue o pão também, aquele que Aninha fez ontem. Maria passou o café enquanto ele colocava as coisas na mesa sobre a toalha xadrez. Ela encheu uma xícara, adoçou e
entregou-a a Osvaldo, dizendo:
— Beba. Vai sentir-se melhor.
Ele pegou a caneca e não respondeu. Ela continuou:
— Hoje seu Antônio vem almoçar aqui. Disse que tem de falar com você. Mandou um recado pelo Tonico da venda.
— Ele é bom demais. Não sei se vale a pena tanto trabalho por tão pouco.
— Se ele vem, é porque acha que vale.
— Ele devia ter é me deixado morrer. Teria sido melhor.
— Não seja mal-agradecido. Deus não gosta.
— Desculpe, Maria. Todos vocês são gente muito boa. Estão perdendo muito tempo comigo. Não vale a pena.
— Tome seu café e coma o pão, que é melhor. Passe bastante manteiga, que fica gostoso. O café está bem açucarado, para acalmar você.
Osvaldo suspirou e não respondeu. Ela continuou:
— Você quer fugir dos problemas mas não consegue. Pode ser a hora de enfrentá-los.
— Não vejo solução.
—Você não tem fé. Não acredita na vida nem em você, se faz de fraco. Por quê? Para que todos fiquem com pena?
Osvaldo enrubesceu.
— Não quero que ninguém tenha pena de mim.
— Pois não parece. Vive pelos cantos, pensativo, de cara feia, mas não faz nada para resolver o seu caso.
—Não há nada que eu possa fazer. O que aconteceu não tem remédio.
— Tudo tem remédio quando você quer. Acontece que quando ele é amargo ninguém quer tomar.
— Pois eu tomaria qualquer remédio, por pior que fosse, se ele pudesse voltar o tempo e evitar o que aconteceu.
— Querer o impossível não resolve. Se acha que não pode fazer nada para solucionar os problemas que o entristecem, por que continua se atormentando com eles? O que não tem remédio remedia do está.
— É fácil falar. Bem que eu gostaria de esquecer, de não pensar mais no que aconteceu. Mas não dá. Há coisas que não saem da minha memória.
Maria olhou-o séria e respondeu:
— Ficar de cara feia, brigar com a vida, não vai ajudar nada. Assim como não adiantou você fugir. Minha finada avó sempre dizia que, quando aparece uma assombração, não
adianta fechar os olhos ou esconder a cara, porque ela continua lá e nós continuamos vendo. O melhor é encarar bem e saber o que ela quer, por que está nos assombrando. Aí
nós vamos descobrir que ela era só uma fumaça, que logo desaparece e não tinha nenhum poder para nos fazer mal.
—O que quer dizer com isso?
— Que muitas vezes as coisas parecem ser maiores do que são. Quando vencemos o medo, elas perdem a força e acabam desaparecendo.
Osvaldo baixou a cabeça pensativo. Ele precisava dar um jeito em sua vida, resolver o que fazer. Não podia ficar ali, daquele jeito, incomodando os amigos com sua tristeza.
Levantou-se e foi para a plantação. O melhor era trabalhar, cansar o corpo. Assim acabaria esquecendo um pouco a dor que lhe ia no coração.
Quando voltou com Diocleciano e João para o almoço, Antônio estava sentado conversando com Maria na frente da casa. Os três acenaram para eles com alegria, pararam no poço onde já havia um balde de água tirado, lavaram-se na tina, enxugaram-se e apressaram-se a abraçá-lo com carinho.
— Faz tempo que chegou? — indagou João sorrindo.
— Uma meia hora, se tanto. Está muito bom aqui nesta sombrinha.
— Eu queria mandar Dalva avisar que ele já estava aqui, mas ele não deixou.
— Não queria atrapalhar o trabalho de vocês. Depois, eu sabia que não iam demorar.
— Como é que veio?
— Tonico ia passar aqui perto, vim com ele.
— Não faça mais isso. Sempre que quiser, mande avisar e Diocleciano vai lhe buscar em casa.
Quando Maria foi para a cozinha providenciar o almoço, eles ficaram conversando do lado de fora. Pouco depois, ela avisou que a mesa estava posta e eles entraram. O cheiro gostoso da comida era convidativo e Antônio disse com um sorriso largo:
— Se eu vivesse aqui, ia ficar mal acostumado. Ninguém faz um feijão como a Dona Maria.
— Lá isso é. E a galinha também é ótima — concordou João, alegre.
Maria sorriu satisfeita, colocando a jarra de limonada sobre a mesa. O almoço decorreu alegre. Depois do café, Antônio tirou do bolso a palha, o fumo, fez um cigarrinho, acendeu-
o, tirou algumas baforadas e levantou-se dizendo:
— Obrigado, Dona Maria. Agora preciso caminhar um pouco. E bom para digestão. Osvaldo, quer me acompanhar?
Ele se levantou e os dois saíram caminhando devagar. Ninguém se ofereceu para acompanhá-los. Todos sabiam que o que o curador desejava era falar com Osvaldo a sós.
Em silêncio, eles andaram alguns metros, e Antônio convidou:
— Venha, vamos nos sentar aqui, neste tronco. Este lugar é bom para meditar!
Ao lado do tronco havia uma frondosa árvore cujos galhos balançavam tocados pela brisa leve que circulava, projetando sombras que se movimentavam no chão, formando caprichosos e varia dos desenhos.
— Como é linda a natureza! Como a vida é boa e generosa! Sentaram-se. Osvaldo, porém, mergulhado em seus íntimos pensamentos, não respondeu. Antônio continuou:
— Você precisa se livrar dos tormentos, não se deixar envolver pelas ilusões.
— Ilusões? Do que está falando? Não há no mundo ninguém mais realista do que eu.
Depois do que me aconteceu, perdi a confiança nas pessoas. Cada um é o que é, e pronto.
— Isso mesmo. Cada um é só o que é. Você já pensou nisso, meu filho?
— Não tenho pensado em outra coisa desde o dia em que descobri a verdade.
— E o que fez com ela?
— O que poderia fazer? A traição de Clara me destruiu, arrasou todas as minhas ilusões, acabou com nossa família. Foi você quem abandonou o lar, que atentou contra sua vida.
— O que mais eu poderia fazer depois de tudo? Como suportar a dor, a vergonha, a infelicidade?
— Não adianta querer substituir uma ilusão por outra. Não é isso que a vida está querendo de você.
— Não estou entendendo. Eu não fiz nada. Durante anos fui fiel a ela, vivi só para a família, respeitei nosso lar, nossos filhos. Estava iludido: Clara não merecia essa dedicação.
Estou desiludido.
— Não está, não. Continua se iludindo, imaginando coisas, se machucando com elas. Acha pouco?
— Agora eu sei quem ela é. Não estou imaginando nada. Eu vi.
Você viu sua mulher com outro.
— Isso mesmo. Não consigo esquecer esse momento.
— Está doendo. No coração e na vaidade. Fugiu para não ser apontado como marido traído.
Fugi para esquecer. Para não ver mais diante dos olhos aquela cena odiosa.
— Se não se livrar dela, não adianta fugir. Ela vai junto.
— Já descobri isso. Mas o que posso fazer? Às vezes tenho vontade de voltar, ver as crianças, assumir o comando da minha vida e dos meus filhos. Mas como, se não tenho
recursos? Tirar os filhos da mãe não será para eles uma dor maior?
— Mas se atormentar, sofrer, brigar com a vida, revoltar-se também não vai ajudar em nada. O que precisa é dar solução.
— Não há nenhuma. Não vejo nada que possa me ajudar.
— Nem Deus?
Osvaldo deu de ombros e respondeu:
— Nunca fiz mal a ninguém, sempre fui justo e bondoso. Por que aconteceu isso comigo? É difícil ter fé depois do que passei.
— Não seja ingrato. Você poderia ter morrido se Deus não colocasse João e Diocleciano em seu caminho. São gente boa, da melhor qualidade.
— Sei disso. Sou agradecido a eles pelo que têm feito por mim. Mas me sinto culpado por incomodar os amigos com minha tristeza.
Tenho pensado em ir embora, mas não sei para onde ir.
— Por enquanto deve ficar. Ainda não está pronto para voltar à cidade. Há algumas coisas que eu gostaria de lhe ensinar. Vim aqui para dizer que, apesar do que está passando, você
tem amigos espirituais que se interessam pela sua felicidade. Estão dispostos a ajudá-lo, mas antes querem que você saia das ilusões.
— Não estou entendendo. Não tenho mais ilusões. Sei que esta vida é cheia de pessoas falsas, traiçoeiras, das quais não se pode esperar nada bom. Quer que eu seja mais realista
do que isso?
— Você foi do excesso de confiança à negação de todas as qualidades humanas. Os extremos são ilusórios. E preciso perceber não o que parece, nem o que você imagina, mas só aquilo que é.
— Como perceber o que vai no coração das pessoas? Como descobrir a verdade? Para não me iludir, não sofrer novamente, prefiro acreditar no pior.
— E ficar se amargurando, sem encontrar remédio para as feridas da sua alma.
Osvaldo baixou a cabeça pensativo por alguns instantes, depois disse:
— O que preciso fazer?
— Primeiro, entender o que está se passando em seu coração, precisa se conhecer melhor, perceber como a vida é, aceitar o que ela está lhe oferecendo no momento.
— No momento está me dando só dor, tristeza, desilusão.
— Está mostrando uma parcela de verdade. Isso quer dizer que você já está maduro para vencer o desafio que ela está lhe trazendo.
— Pelo contrário. Estou perdido. Não tenho como vencer esse tormento que se abateu sobre mim.
— Tem, sim. Não menospreze sua força. Ela está aí, dentro você. Apenas ainda não sabe usá-la. Por isso é que precisa se conhecer e conhecer os mecanismos da vida. Quando ela
coloca um desafio em seu caminho, é porque você já tem meios de vencê-lo. Com o tempo perceberá que ela é justa e trabalha sempre em seu favor. Nunca lhe traria um problema que
você não tivesse condições de enfrentar e vencer.
— Não é isso que eu sinto. Não consigo encontrar uma saída
— Você pensa que está sentindo, mas está apenas reagindo aos pensamentos que aprendeu
dos outros, às regras da sociedade, aos ditames do que lhe parecia certo ou errado, segundo os conceitos dos homens Para conseguir chegar ao seu coração, ao que sua alma sente e
almeja, você precisa primeiro libertar-se das regras convencionais, questionar suas crenças, avaliar os valores que são verdadeiros e importantes para você. Sem isso, nunca sairá da inquietação, dos tormentos das ilusões.
— O que me diz é novo. Não sei se poderia fazer isso.
— Teria muito prazer em lhe ensinar o pouco que aprendi meus guias espirituais. Quero convidá-lo a passar algum tempo minha casa.
— Gostaria muito. A seu lado sinto-me mais calmo. Ainda a estava desorientado. Passei a noite em claro, pressionado meus pensamentos. Com esta conversa estou me sentindo-me
bem Acha que não irei incomodar?
— Não será de graça, claro. Estou precisando de um ajudante como não sou orgulhoso, vou aceitar sua cooperação. Eu lhe ensino algumas coisas e você me auxilia em minhas tarefas.
Osvaldo sorriu. Ele sabia que Antônio lhe dizia isso para deixá-lo à vontade.
— Quando poderei ir?
— Se quiser, hoje mesmo. Se não gostar de lá, poderá retornar para cá.
Voltaram para casa e Osvaldo contou aos amigos que aceitou o convite de Antônio para ficar em sua casa, ao que Maria comentou:
— Vamos sentir sua falta, Osvaldo. Mas um convite desses para recusar. Eu sei o que estou dizendo.
— Tem razão, Maria — concordou João. — Você foi escolhido ter certeza de que tem muita sorte.
Osvaldo arrumou suas poucas coisas e Diocleciano trouxe a carroça para levá-los à casa de Antônio. Despediram-se com carinho.
Maria embrulhou um pão que Aninha assara naquela manhã e algumas broas que ela mesma fizera. Abraçando os amigos, Osvaldo acomodou-se na carroça enquanto Antônio sentava-se ao lado de Diocleciano na boléia.
Com o corpo sacudindo ao ritmo cadenciado da carroça, Osvaldo pensava em seu destino.
Antônio acenava com uma esperança.
Osvaldo, embora estivesse convencido de que seria muito difícil, se não impossível, esquecer, deixava-se levar, disposto a tentar.
A casa de Antônio era de madeira e compunha-se de uma cozinha grande onde havia um fogão a lenha, um armário, de um lado a mesa onde ficavam as vasilhas de água e a bacia
de lavar a louça, do outro uma mesa com alguns bancos, utilizada para as refeições.
Havia outros cômodos que se ligavam a essa dependência da casa, que Antônio foi mostrando a Osvaldo.
— Eu durmo neste quarto. Neste outro dorme minha irmã Zefa mais Nequinho, o menino que ela está criando. Este quarto é o seu, pode deixar suas coisas aí.
Osvaldo colocou seu embrulho de roupas sobre a cama modesta e Antônio continuou:
— Aqui do lado é meu lugar de trabalho.
Osvaldo olhou curioso a pequena sala onde havia algumas prateleiras de madeira com garrafas, a mesa tosca e vários utensílios de cozinha, inclusive um pequeno fogão a lenha.
Uma cama de solteiro e uma cadeira completavam o mobiliário.
— São remédios que eu faço — explicou ele, apontando para as garrafas. — Às vezes preciso deixar um doente aqui para tratamento. Agora vamos para a cozinha. Quero lhe apresentar Zefa. Senti o cheiro do café, acho que ela já voltou da roça.
Zefa era uma mulata forte, muito parecida com o irmão. Assim que foi apresentada a Osvaldo, abriu os grossos lábios em alegre sorriso.
— Coei o café. Já vi o pão de Aninha que Maria mandou. Só vou pôr a toalha na mesa.
Foi até a porta da cozinha e gritou:
—Nequinho! Nequinho! Eta moleque danado! Eu não disse que era para pôr a mesa para o café?
Antônio já havia colocado a toalha e estava pondo as canecas quando finalmente o menino entrou.
Osvaldo logo viu que não era parente, pois tinha pele muito clara, cabelos quase louros e era muito magro. Seus grandes olhos castanhos pareciam ainda maiores graças à magreza
do seu rosto.
— Onde você estava? Não ouviu chamar?
—Fui ver se tinha água no galinheiro. Quando passamos, as galinhas estavam com o bico aberto. A senhora não viu?
Zefa encarou o menino e não questionou. Disse apenas:
— Cumprimente seu Osvaldo e depois vá lavar as mãos para tomar café.
— Sim, senhora. Como vai o senhor?
— Bem.
— Com licença — disse ele curvando-se e saindo para lavar as mãos na água da tina.
Osvaldo olhou admirado para ele e comentou com Antônio:
— Menino educado. Quantos anos tem?
— Onze. Esteve muito doente, mas agora, com a graça de Deus, está melhor. Faz dois anos que estamos tratando esse menino.
Sentaram-se à mesa, onde Zefa colocara, além do pão de Aninha, um bolo de fubá e um prato de mandioca cozida.
Antônio contou que seu pai comprara aquele pequeno sítio quando se casou com sua mãe e foi construindo a casa, aumentando-a conforme os filhos nasciam.
Plantavam milho, mandioca, um pouco de feijão, criavam galinhas e mantinham pequena criação de porcos apenas para uso da família. Quando o pai morreu, os dois irmãos de Antônio foram embora para a cidade. Ele e Zefa ficaram com a mãe, cuidando de tudo.
Depois que ela morreu, eles continuaram morando ali. Gostavam do lugar.
—Amanhã vou levar você para ver tudo — disse Antônio. — que conheça cada planta deste chão.
Depois de comerem, Antônio levou-o à sala dos remédios e fechou a porta, dizendo:
—Sente-se, temos de conversar.
Ele obedeceu. Antônio prosseguiu:
—Meu guia me mandou trazer você aqui. Pediu que eu lhe ensine. Você quer aprender?
—Ache que posso? Nunca entendi nada de doenças.
—Bom,se ele disse, é porque pode. Agora, precisa querer, gostar. Depois, estou precisando de alguém para me ajudar.
— Preciso me ocupar para esquecer. Se eu puder ser útil, estou disposto a tentar.
— A vida é muito rica. Tem seus ciclos e sua maneira de funcionar. Trabalhar em favor deles facilita, ajuda a curar as doenças e a ver melhor. A Terra produz tudo que os homens precisam para viver muitos anos com saúde, alegria e paz.
— Pena que eles estraguem tudo.
— É. Poucos conseguem manter o equilíbrio.
— Por causa de pessoas sem caráter. Eu mesmo vivia bem, com saúde, com uma família linda. Tinha tudo para ser feliz. Mas minha mulher estragou tudo. Acabou com nossa família.
— A responsabilidade não é só dela.
— Meu irmão e aquele sem-vergonha do amigo dele, eles contribuíram, mas, se ela fosse uma mulher honesta, nada teria acontecido. Os homens tentam, mas só conseguem conquistar uma mulher quando ela consente.
— Você guarda muita raiva dentro do coração. Esse veneno pode acabar minando sua saúde.
— Não consigo esquecer. Eu amava aquela mulher. Sempre fui marido fiel, interessado no bem-estar da minha família.
— Você se coloca como uma vítima. Mas a vida é justa e responde às atitudes e crenças de cada um. De alguma forma você atraiu esses fatos.
— Não concordo. Como eu disse, sempre fui fiel.
— A fidelidade não está só em resistir às tentações, em não arranjar uma amante. Está também em ser verdadeiro, em viver de acordo com suas necessidades espirituais.
— Não sei quais são essas necessidades. Como poderia viver de acordo com elas?
— É pena que ninguém ensine as crianças a preservar sua sinceridade. A educação é feita para ensinar a mentir, a aparentar o que não é. Essa é a causa de tantos sofrimentos no
mundo. A alma é a essência divina dentro de cada pessoa e só age no bem. Mas desde muito cedo a criança é ensinada a mergulhar no mundo dos interesses pessoais e das
conveniências, acenando como prêmio o amor de todos, a aceitação da sociedade. Essa é a grande ilusão. Porque é verdadeiramente aceito quem é forte, tem carisma, sente amor. E você só consegue ser forte quando expressa sua essência divina, quando obedece à voz da sua alma.
— Se somos educados errado, não temos culpa de nada.
— Não gosto da palavra culpa. Ela não expressa a verdade e é uma faca de dois gumes.
— Mas quem erra é culpado. Quem mata, quem trai, quem fere é culpado. Não há como negar isso.
— Não. Quem mata, quem trai, quem fere é um fraco que cultiva várias ilusões que a vida vai tirar uma a uma. É um candidato ao sofrimento porque a verdade é mais forte e é nela
que está a felicidade.
— A verdade é cruel. A ilusão ajuda a suportar as coisas pelo menos por algum tempo. É difícil viver sem ilusões.
Antônio sorriu levemente, dizendo tranqüilo:
— Essa é a maior ilusão de todas. Veja a natureza! Observe o milagre da vida acontecendo a cada instante, o equilíbrio do céu, dos rios, dos mares, das estrelas. Tudo caminha naturalmente, cada coisa no seu ritmo e no seu lugar. Essa é a verdade. A vida é perfeita, sabe tudo, assim como nossa alma, que é parte da natureza.
— O universo e perfeito no equilíbrio, mas nossa alma, não Ela é cheia de fraquezas e de limitações.
— A alma foi criada à semelhança de Deus, é perfeita! Mas não tem consciência dessa perfeição. Esse é um trabalho que cada um precisa fazer através do próprio esforço. Para
isso dispõe de certo período a que damos o nome de evolução e no qual a pessoa aprende a usar seu livre-arbítrio, vivenciando experiências e colhendo os resultados decorrentes de suas atitudes e crenças.
— Se isso fosse verdade, eu não estaria passando por nada disso e os que fazem mal estariam sendo castigados. Contudo, enquanto minha vida ficou destruída, o homem que
causou a ruína do nosso lar continua lá, sem sofrer nada.
— Isso é o que parece a você, mas a verdade é outra. A justiça divina é perfeita e imparcial.
A impunidade do mau é momentânea. Conforme seu grau de conhecimento espiritual, a vida determina os resultados de suas atitudes. Quanto mais primitivo ele for, mais tempo vai
demorar para receber esses resultados. Quanto mais sensível e evoluído, mas rápido será.
Mas todos, sem exceção, vão atrair pessoas e experiências de acordo com o que fizeram.
— Não acho justo Se pessoa primitiva e mais atrasada, a evoluída é mais adiantada espiritualmente. Por que então quem é atrasado demora mais para colher os resultados do mal que faz? Não seria mais justo, por ser uma pessoa pior, portanto mais maldosa, que ela colhesse os resultados dos seus erros mais depressa?
Antônio meneou a cabeça negativamente.
— A justiça divina responde ao nível de conhecimento de cada um. Você puniria uma criança de dois anos por não saber ler? A vida só ensina a quem já tem condições de
aprender, e a colheita dos resultados de suas atitudes é sempre uma lição. De que adianta ensinar quem não tem como entender?
Osvaldo coçou a cabeça e não respondeu. Antônio continuou:
— Em resumo, a vida é mais tolerante com quem é ignorante e mais ágil com quem sabe mais. O ignorante pode fazer o mal pensando que está se defendendo, cuidando do seu bem.
Mas o sábio compreende melhor o que é o bem, e, quando pratica o mal, tem maior responsabilidade, colhe rapidamente os resultados de suas atitudes. Se ele faz o bem, sua
vida se torna verdadeiramente abençoa da e feliz.
— Mas eu tenho visto muita gente boa sofrendo. Se isso fosse verdade, elas estariam bem.
— Partindo do princípio de que Deus não erra, vamos perceber que, se alguém está sofrendo, se está atraindo problemas e dor, é por que já poderia agir de maneira melhor e não o faz. A visão humana do bem está errada em muitos pontos. Nem sempre as pessoas certinhas, que agem de acordo com as regras da sociedade, estão fazendo o bem. O mundo
está cheio de pessoas que, a pretexto de ajudar os outros, invadem a vida alheia, se metem onde não deveriam e acabam prejudicando. O conceito de ajuda anda muito mal
compreendido. Onde muitos acreditam ver o bem só há vaidade, manipulação, interesse.
— Mas é só o que há no mundo: maldade e jogo de interesses.
— Por isso há tanta dor e sofrimento. Mas eles poderiam ser evitados se cada um aprendesse e valorizasse a essência divina que está em sua alma.
— Esse é um sonho impossível! Muitos nem acreditam na existência da alma, como poderiam encontrar essa essência divina?
— Vamos deixar de lado os que não acreditam na alma. Você é desses?
— Não. Eu creio que temos uma alma.
— Nós somos uma alma desenvolvendo a consciência.
— Mas daí a saber como chegar a ela é difícil. Tudo é muito vago, cheio de mistérios e de crendices da religião.
— Deixemos as religiões de lado. Elas são interpretações que os homens fizeram das revelações divinas. Falemos da alma. Ela está ligada diretamente com Deus.
Embora você não perceba, é através dela que ele dá os recados, mostrando se você está sendo verdadeiro ou não. Se está agindo de forma a ajudar esse desenvolvimento ou se está
se perdendo em ilusões e atraindo a dor.
— É difícil. Nunca recebi nenhum recado de Deus.
— Engano seu. Sempre tem recebido. A cada atitude sua, a cada pensamento, sua alma responde através de emoções, tentando ajuda-lo a discernir.
De que forma?
— Através do prazer, da alegria ou do aperto no peito, da tristeza. Esses são os meios de que ela se vale para dar seus recados. Se prestar atenção, com o tempo perceberá nitidamente o que ela lhe deseja dizer. A intuição, aquela certeza inexplicável de que algo
vai ou não dar certo, nos garante a proteção sempre que precisemos escolher alguma coisa, por mais simples que seja.
Osvaldo ficou pensativo por alguns instantes. Depois disse:
— Você pensa diferente. De onde tirou essas idéias?
— Observando a vida. Aprendendo como ela funciona.
— Não foram seus guias espirituais que lhe ensinaram?
— Eles têm me ajudado muito. Mas não interferem nas minhas escolhas. Dizem que preciso experimentar e saber o que funciona ou não. Quando alguma coisa que faço não dá
o resultado que esperava, eles insistem para que eu analise minhas atitudes. Garantem que foram elas quem atraíram esse resultado. Sei que estão certos. Se eu plantar laranjas, vou colher laranjas.
— Não é tão simples assim..
— Sabe que é? Se você sabe o que quer, descobre o caminho adequado, vai colher o que espera.
— Eu quis ser feliz, valorizei minha família. Sempre fiz tudo certo.Por que deu tão errado?
— A vida não erra. Se você tivesse plantado felicidade, teria colhido felicidade.
—Nunca fiz mal a ninguém, e repito: sempre fui um bom marido, um bom pai.
—Não estou criticando nem dizendo o contrário. Mas o que ficou claro é que você atraiu traição, dor, desilusão. Está machucado.Sente-se injustiçado, culpa os outros. Mas essa mágoa abriu uma ferida em seu coração que está dificultando sua recuperação. Eu poderia dizer que o perdão liberta, que é preciso jogar essa dor fora. Mas ninguém pode perdoar enquanto não descobrir a verdade que está atrás do que parece, escondida no mais profundo do seu mundo interior.
— Bem que eu gostaria de esquecer, de recomeçar minha vida, de poder perdoar. Mas isso é impossível!
— Enquanto persistir em se colocar como uma vítima, não vai conseguir.
— Mas eu fui uma vítima. Como eu disse: foi ela quem me traiu.
— De fato. Ela foi fraca. Não resistiu à tentação. Não fez o que você esperava.
Osvaldo notou que a voz de Antônio estava um pouco modificada, bem como sua linguagem. As palavras saíam fluentes, em um português elegante e perfeito, diferente do
que ele costumava usar. Ele prosseguiu:
— E você, sempre fez o que ela esperava? Agiu como ela sonhou que você seria?
— Eu?! Como posso saber? Procurei fazer o que achei melhor.
— Ela nunca reclamou de nada?
— Bem, ela às vezes dizia que gostaria que eu fosse mais alegre, que gostasse de dançar, de cantar. Mas eu nunca gostei de nada disso. Quando se casou comigo, Clara sabia como eu
era.
— E você, quando se casou com ela, sabia que ela era uma mulher romântica, ardente, sonhadora.
— Todas as mulheres são assim. Mas daí a fazer o que ela fez...
— Gostaria que pensasse nisso. Vocês se casaram sem uma boa base. Ela gostava de outro tipo de pessoa. Sentiu-se atraída por você mas casou pensando que com o tempo iria
conseguir que você mudasse e se tornasse o que ela queria. Você percebeu que ela se iludia
em um sonho de amor e casou mesmo assim, acreditando que esse estado era comum a todas as mulheres. Na verdade vocês se casaram mas nem sequer se conheciam. Nunca se
viram como realmente são. Hoje vamos parar por aqui. Eu quero que pense em tudo que eu disse.
Antes que Osvaldo respondesse, Antônio respirou fundo, passou a mão pelos cabelos olhou-o nos olhos. Depois se levantou dizendo:
— Vamos andar um pouco lá fora. Quero lhe mostrar algumas plantas.
Saíram pela porta dos fundos. Atrás daquela sala havia uma plantação diversificada.
Antônio foi caminhando devagar, parando quando em quando para mostrar cada planta que considerava importante como remédio.
Osvaldo acompanhava-o atento enquanto ele explicava para que cada uma servia.
— Pelo que tenho ouvido falar a seu respeito, você com esses remédios tem ajudado muita gente.
Antônio deu de ombros e respondeu alegre:
— Gosto de ajudar as pessoas, mas não me iludo. Estou apenas sendo instrumento da bondade divina. Tenho recebido mais do que dou.
— Você é modesto.
— Nada disso. Estou mais é cuidando dos meus interesses, aprendendo muito. Se eu não fizesse, outro faria. Pode ter certeza disso. A vida trabalha pelo bem de todos. Depois, na cura o merecimento é do doente. Só os que modificam as atitudes causadoras conseguem ser curados.
— É difícil acreditar que uma doença seja causada por uma atitude. E os casos de contágio? E os acidentes? E os que sofrem a violência dos maus?
— Por que em circunstâncias iguais, uns se contaminam e outros não? Já tratei de doentes com moléstias muito contagiosas e nunca peguei nada.
— Não estará exagerando? Uma gripe, uma diarréia têm causas físicas: uma mudança de temperatura, uma comida indigesta. A atitude da pessoa nada tem a ver com isso.
— Engana-se. Só tem. Já notou que existem dias em que você pode comer de tudo e nada lhe faz mal e há outros em que um alimento leve provoca cólicas e até diarréia? Dias em
que você se expõe ao mau tempo e nada acontece enquanto em tempo normal aparece aquela dor de garganta, os olhos lacrimejam, o nariz inflama, o corpo fica mole e você vai
para a cama com gripe?
— É, isso acontece.
—Nessa hora, se você prestar atenção, perceberá por trás do fato uma atitude causadora.
— Que atitude poderia causar indigestão?
— Algum fato de que você não gostou e que não deseja aceitar o seu estômago não digere, é seu corpo que está lhe mandando uma mensagem recomendando que, para sua vida fluir naturalmente, você precisa estudar sua contrariedade até digeri-la. Então seu estômago
voltará ao normal.
— Você crê mesmo nisso?
— Claro. Nunca notou que, quando se contraria, seu estômago logo embrulha? É o primeiro sintoma.
— Interessante. E a gripe, que mensagem seria?
— Há várias. Depende do tipo de gripe e da forma como se apresenta. Geralmente o congestionamento das vias respiratórias significa que você está se sufocando, querendo
fazer muitas coisas ao mesmo tempo, além de suas reais possibilidades. As dores no peito podem ser provocadas pela sua falta de amor a si mesmo, por culpar-se de algo que fez. A
febre revela raiva; a bronquite, irritação.
— E os remédios, não valem nada?
— Claro que ajudam. Nunca notou que seus efeitos são diferentes em cada pessoa? Alguns ficam curados com eles; outros, não.
— Qual seria o tratamento ideal?
— O esclarecimento, a sabedoria. Enquanto toma o remédio para aliviar o mal do corpo, tentar descobrir a atitude causadora. Modificando-a, conseguirá maior efeito do remédio e a cura real. Essa é a fórmula.
— Por isso, além de ministrar o remédio, você orienta e ensina as pessoas?
— Isso mesmo. E nesse trabalho que meus mestres espirituais ajudam. Eles me inspiram e eu faço. Como você vê, sou apenas uma parte desse trabalho. Tudo que sei aprendi com eles.
Osvaldo ficou pensativo alguns segundos, depois considerou:
— É esse trabalho que eles desejam que eu aprenda?
— É. Embora não saiba, você tem energia para isso. Este tempo aqui comigo será para que conheça do que se trata. Depois terá de decidir se o aceita ou não.
— Quanto tempo teremos?
— Não sei ainda. Vai depender de você. Se não quiser, eles compreendem; mas, se aceitar,
terá de se dedicar de coração.
Osvaldo não respondeu logo. Precisava pensar. Estava confuso. Nem sequer sabia que rumo daria à sua vida dali para frente.
— Vamos entrar — convidou Antônio. — Por hoje chega. Tem o tempo livre para o que quiser.
Entraram e Osvaldo foi para seu quarto. Estirou-se na cama pensando em tudo que ouviu. O que Antônio lhe disse tinha lógica, mas seria verdade mesmo? Era uma teoria interessante.
Por que nunca ou vira falar nada sobre ela? Reconhecia que Antônio possuía poderes que ele nunca havia visto em ninguém. Era um homem bondoso e sincero. Acreditava que ele
tivesse mesmo muita ajuda espiritual, mas daí a crer em tudo quanto ele dizia ia grande distância. Tratava-se de um homem sem cultura, perdido em um lugarejo do interior.
Era-lhe muito grato pelo bem que ele lhe fizera, mas precisava pensar melhor naquelas idéias, descobrir até onde elas poderiam ser verdadeiras. Ficaria lá com ele o tempo que
fosse preciso para esclarecer suas dúvidas. Depois decidiria o que fazer de sua vida.
A saudade dos filhos, a ausência de notícias, angustiava-o. Por causa disso algumas vezes havia pensado em voltar para a cidade e enfrentar de vez a situação com Clara.
Mas ao pensar nisso sentia um aperto no peito e desistia. Ainda não se sentia preparado.
Precisava dar mais um tempo e aquele trabalho poderia ser para ele uma bênção ajudando-o
a refazer seu equilíbrio interior.
O carinho daquela gente simples e acolhedora era como um bálsamo na ferida que ainda sangrava em seu coração.
Seja pela caminhada, pelo calor ou até por haver acordado muito cedo, Osvaldo adormeceu.
Sonhou que estava em um frondoso bosque, cheio de árvores e de flores perfumadas, andando alegre, respirando prazerosamente a brisa leve e agradável, sentiu que alguém o
acompanhava, mas não viu quem. Só ouvia sua voz convidando-o a observar a perfeição da natureza.
Essa voz tomou-se mais nítida quando disse:
— A sabedoria é o caminho da felicidade. A vida deseja que você seja feliz, por isso coloca todas as oportunidades à sua frente, para que siga esse caminho. Preste atenção às chances que você está tendo entregue-se a elas com alma. Isso é o que lhe está sendo oferecido ora,
e a vida faz sempre o melhor. Deixe o futuro nas mãos de Deus sem preocupações, porque, quando chegar o momento da mudança, a vida se encarregará disso.
Osvaldo acordou ouvindo essas palavras e sentiu-se melhor, mais sereno, mais lúcido. Sua
angústia, sua insegurança de momentos antes haviam desaparecido. Respirou aliviado e
pensou: era bobagem ficar se martirizando com o futuro. Já que não se sentia com coragem de tomar nenhuma decisão, o melhor mesmo era não pensar, era deixar o tempo correr e usufruir a calma e o aconchego daquelas pessoas que tão carinhosamente o receberam e lhe
trataram.
Nos dias que se seguiram, Osvaldo dedicou-se de corpo e alma ao trabalho com Antônio.
Levantava-se muito cedo sentindo o cheiro gostoso do café que vinha da cozinha. Lavava-se colocando água da torneira na bacia que havia no lavatório, arrumava-se e ia tomar o
café.
Lá já encontrava Antônio e os dois peões que cuidavam da plantação. Enquanto eles comiam, Zefa tentava tirar Nequinho da cama, o que sempre dava certo trabalho.
Ele não era preguiçoso, mas não gostava de acordar cedo.
Osvaldo gostava de começar o dia daquela forma porque, depois de arrancar Nequinho da cama, Zefa fazia-lhes companhia e ficavam certo tempo entre goles de café e boa conversa. O assunto era sempre agradável e Osvaldo sentia-se muito à vontade diante da bondade que
expressavam, de suas histórias simples e muito bem-humoradas.
Davam nomes ao galo que os acordava ao raiar do dia, ao papagaio que cantava alegre saudando-os quando passavam pelo seu poleiro na parede de fora da cozinha, aos cavalos, e falavam deles como se fossem pessoas e tivessem raciocínio. Sem contar os cachorros, que
no dizer deles eram tão inteligentes que só lhes faltava falar.
Nessas conversas não deixavam de haver os casos de aparição de espíritos e de sua atuação
com as pessoas que iam até lá em busca de ajuda. Quando se referiam aos casos dolorosos, eram discretos e comentavam apenas o quanto eles haviam sido beneficiados, mas davam
preferência a falar dos mais pitorescos, o que faziam com muito bom humor e alegria, recordando as inúmeras lições que através deles haviam recebido dos espíritos.
A cada manhã tinham um fato novo a comentar ocorrido com os animais, narrados com prazer, revelando o carinho que tinham por eles.
Depois, enquanto Nequinho ajudava Zefa nos serviços caseiros, Antônio ia com Osvaldo trabalhar com as plantas.
A pedido de Antônio, Osvaldo havia comprado na vila dois cadernos nos quais fazia as anotações. Em um ele escrevia sobre cada erva estudada, para o que deveria ser usada e
como preparar o remédio e usá-lo. Em outro, escrevia sobre as doenças, com as possíveis emoções que as provocavam.
Osvaldo, que a princípio aceitara esse trabalho como uma forma de esquecer um pouco seus problemas, começou a interessar-se e a envolver-se cada vez mais. Absorvia-se de tal forma que não sentia o passar do tempo. Esquecia-se de comer, e, não fosse a insistência de
Antônio, ele nem iria almoçar.
Aos poucos foi percebendo, em tudo quanto Antônio lhe ensinava, a sabedoria da natureza.
Diante de certos fenômenos naturais, as indagações surgiam e Antônio explicava revelando profundo conhecimento dos elementos e das forças naturais do universo, que mostravam em suas manifestações encadeamento e equilíbrio perfeitos.
Osvaldo absorveu-se a tal ponto que no fim da tarde, quando se sentavam na modesta varanda para conversar depois do jantar, ele revelava todo o seu interesse, continuando a
indagar, querendo saber mais.
Antônio sorria alegre, respondia, mas procurava logo levar a conversa para outros assuntos, muitas vezes contando histórias antigas sobre pessoas daquela região, ouvindo com interesse os demais falarem também sobre suas vidas.

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