Clara acordou e, apesar de ser ainda muito cedo, levantou- se. Tivera uma noite péssima, povoada de pesadelos, onde Osvaldo aparecia nervoso cobrando o passado. Por mais que ela tentasse escapar fechando portas e janelas, ele sempre conseguia entrar, fulminando- a com os olhos ora cheios de ódio, ora cheios de sofrimento.
Agoniada, ela tentava em vão escapar, porém uma voz a acusava, dizendo:
—Traidora! O que fez de sua vida? Por que jogou fora o amor de um homem bom, honesto, que a amava tanto?
Ela chorava e repetia:
— Estou arrependida, foi uma ilusão! Eu não sabia o que estava fazendo! Deixe-me em paz!
Acordava molhada de suor e tentava sair daquela angústia afirmando que era apenas um pesadelo, como tantos outros que já tinha tido. Tentava relaxar e dormir novamente, porém
cenas do passado reapareciam em sua lembrança e ela se remexia na cama esforçando- se para jogar fora aqueles pensamentos.
Ficou nessa luta interior até que, quando o dia já estava quase amanhecendo, conseguiu adormecer.
Acordou e olhou para o relógio. Seis horas. Muito cedo para trabalhar. Apesar disso, foi tomar um banho e preparar-se. Qualquer coisa era preferível àquele tormento.
Angustiada, reconheceu que, apesar do tempo decorrido, o passado continuava vivo em seu coração, como uma chaga dolorida. Por que não conseguia esquecer? E Osvaldo, como estaria? Teria esquecido, refeito sua vida, perdoado? Certamente não. Nunca procurou os filhos. Clara não teve coragem de contar-lhes a verdade. Disse apenas que eles haviam se desentendido e que Osvaldo partira para sempre.
Contudo, desconfiava de que eles soubessem de tudo porque, de pois das indagações dos primeiros tempos, nunca mais perguntaram pelo pai. Mas ela sabia que eles sentiam sua
falta. Tentava recompensá-los de alguma forma, interessando-se pelos seus problemas, conversando e apoiando sempre.
Eles a amavam e respeitavam muito, tinha certeza disso. Mas agora, o que fazer se Osvaldo aparecesse? E se ele contasse aos filhos a razão de sua prolongada ausência?
A esse pensamento estremecia. Passara todos aqueles anos cultivando o arrependimento, levando vida irrepreensível, como querendo provar a si mesma que não era tão leviana como se julgara. A sensação de culpa castigava-a e para amenizá-la ela resolvera tomar-se
uma mulher fechada, dedicando-se exclusivamente ao trabalho e à família.
Não podia ficar tão perturbada com a proximidade de Osvaldo.Precisava reagir, ser natural.
Mas como, se a simples idéia de sua proximidade a abalava tanto?
Quando ela desceu para o café, Rita já estava na cozinha. Vendo-a, tornou:
— Hmm... Você está com uma cara! Pelo jeito não dormiu bem.
— Dá para notar?
— Dá. Ainda é muito cedo. Por que não ficou mais um pouco na cama?
— Achei melhor levantar. Não ia conseguir dormir mesmo.
Marcos entrou na cozinha dizendo alegre:
— Bom dia! O que estão maquinando logo cedo?
Clara beijou o filho e respondeu:
— Nada importante.
— Vá sentar-se na copa que vou servir seu café. Não pode atrasar-se hoje. Não disse que tinha prova?
— Disse. Mas ainda é cedo. É bom encontrar as duas juntas para o café.
— Vá indo, Clara, que vou colocar mais xícaras na mesa.
Clara acompanhou o filho, olhando-o embevecida. Marcos completara dezoito anos e tornara-se um lindo rapaz. Fragilizada pelas recordações do passado, ela notou a grande
semelhança que havia entre ele e Osvaldo. Os mesmos cabelos castanhos ondulados que lhe
caíam pela testa larga embora ele tentasse segurá-los no lugar, a pele morena, o corpo alto elegante e o sorriso cativante mostrando dentes alvos e bem distribuídos.
Marcos possuía um encanto especial. Era sensível, amoroso, honesto.
Estava no primeiro ano da faculdade. Escolhera Letras porque sonhava ser escritor. A princípio Clara se opusera. Mulher prática, tendo se habituado a lutar pela subsistência, preferia que ele tivesse escolhido outra carreira. Marcos, porém, sabia o que queria e
insistiu. Assim, Clara acabou concordando.
Carlos era diferente do irmão. Mais claro, cabelos castanhos lisos, era alegre, cheio de entusiasmo. Onde ele estivesse havia risadas, piadas, música, movimento. Enquanto
Marcos era introvertido, Carlos era o oposto, não gostava de ficar só, vivia rodeado de amigos. Aprendera a tocar violão e cantar com desenvoltura. Por causa disso era muito
solicitado para festas, ao que Clara costumava dizer:
— Com esses filhos estou bem arranjada. Um é sonhador, o outro é boêmio.
Porém dizia isso com olhos cheios de orgulho, feliz com a alegria que ambos traziam à sua
vida.
Depois que Marcos saiu, Clara comentou:
— Não é justo, Rita.
— O quê?
— Não é justo que, depois de eu ter lutado tanto para educar os meninos, dar-lhes uma vida digna, Osvaldo apareça para perturbar nossa paz.
— Ele ainda não nos procurou.
— Mas eu sinto que é só questão de tempo. Ele vai procurar os filhos. E, quando isso acontecer, não sei o que lhes dizer.
— Não diga nada. É natural que um pai queira ver os filhos.
— Depois de dez anos sem dar uma notícia?
— É difícil responder, porque não sabemos o que lhe aconteceu esse tempo todo.
— O mais provável é que tenha refeito sua vida e nos esquecido.
— Posso perguntar uma coisa?
—O quê?
— Às vezes penso que você nunca deixou de amar seu marido.
— Por que diz isso?
— Porque, quando ficou livre para levar adiante seu romance com Válter, você não quis. Bem que ele insistiu.
— Eu nunca amei Válter. Você sabe disso.
— Sei. Mas você teve outras oportunidades. Sei de vários homens que estiveram interessados e você recusou.
— Fiquei vacinada. Essa história de amor só serve para nos trazer problemas.
— Você ainda gosta de Osvaldo. Reconheça.
— De jeito nenhum. Fico apavorada só em saber que ele pode aparecer de uma hora para outra. Se o amasse, ficaria feliz.
Rita sacudiu a cabeça pensativa. Depois disse:
— O que você tem é medo do que ele pode lhe dizer. Mas, passado estivesse esquecido, talvez pensasse de outra forma.
— Você está enganada. Claro que me arrependo do que fiz, mas é por causa dos meninos, da dor que causei ao Osvaldo, que não merecia. É remorso, apenas isso.
Rita sorriu e não respondeu. Ela sabia que Clara fechara o coração com medo de sofrer e bloqueara seus sentimentos. Mas acreditava que um dia ela não iria mais conseguir segurar e a verdade viria à tona com toda a sua força.
Clara saiu para o trabalho. Chegando ao ateliê, foi verificar a agenda. Margarida estava marcada para as dez. Dez minutos antes ela chegou. Tinha um casamento e queria
sugestões para o que usaria.
Clara recebeu-a com alegria. Era pessoa agradável e de bom gosto. No começo queria ser atendida só por Domênico, mas com o tempo acabou gostando de ser atendida por Clara.
As duas mergulharam no mundo da moda, dos tecidos, dos desenhos que Gino criara exclusivamente para ela. Estavam entretidas e Clara havia esquecido as preocupações de
momentos antes. Quando ela parou, fixou-a séria, dizendo:
— Não adianta fugir, Clara. A vida está retomando tudo que ficou inacabado. É hora de mudança. Fique calma e aceite o que não pode evitar.
Clara empalideceu. Margarida estava diferente do habitual, sua voz modificara-se, seus olhos estavam parados e perdidos em um ponto distante.
— Por que está dizendo isso? O que você sabe?
— Tudo.
— Tudo o quê? O que vai acontecer? Conte-me o que está vendo.
— Estou vendo o passado. Há várias possibilidades para o futuro. O que vai acontecer depende do livre-arbítrio de cada um. Lembre- se de que a calma facilita a manifestação do bom senso. Não fantasie, prefira a verdade. A dor é fruto da ilusão, não entre nela. Não julgue ninguém. Ligue-se com Deus, tenha fé. Estamos ajudando vocês.
Antes que Clara respondesse, Margarida sacudiu a cabeça, passou a mão pela testa e, fixando-a assustada, perguntou:
— Aconteceu de novo, Clara?
— Sim. Você disse coisas como da outra vez.
— Espero não tê-la assustado.
Domênico apareceu na porta e Margarida correu para ele dizendo:
— Aconteceu de novo, Domênico. Pensei que estivesse equilibrada e isso não se repetisse.
— Como está se sentindo? — indagou ele.
— Bem. Você sabe: agora estou freqüentando um grupo de estudos e treinando minha mediunidade. Depois que comecei a ir lá, nunca mais havia me acontecido. Será que estou tendo uma recaída?
— Não, Margarida. Acalme-se. Acredito que eles tenham se utilizado de você para ajudar Clara. Foi necessidade do momento. Aliás, nestes últimos dias tenho observado que Clara não está bem. Preocupada, nervosa, alheia.
— Tem razão, Domênico — interveio Clara. — Aconteceram algumas coisas que me deixaram nervosa.
— O que me incomoda — disse Margarida — é que quando isso ocorre eu saio do ar. Não lembro nada. Fico insegura.
— Você me deu bons conselhos que procurarei seguir. Obrigada.
— Viu? — comentou Domênico. — Foi o que eu disse. Os espíritos usaram sua mediunidade para ajudar Clara. Essa é sua missão: ser canal dos espíritos. Continue estudando e não tema. Você está bem protegida.
Depois que Margarida se foi, Clara conversou com Domênico contando o que a estava incomodando e as palavras que Margarida lhe dissera. E finalizou:
— Estou apavorada. Se ele aparecer, não sei o que dizer aos meus filhos. Nunca falamos sobre o passado. Temo que eles me desprezem.
— Por que se atormenta se nada ainda aconteceu? Se Osvaldo aparecer, diga a verdade,
seja sincera. Seus filhos são adultos, fale com eles com sinceridade. Não se antecipe imaginando o que eles irão pensar ou dizer. Chega de se culpar. Você errou mas percebeu isso e tem se portado com dignidade. Pense que você é uma excelente mãe e uma mulher que assumiu suas responsabilidades de família com coragem e honestidade.
Clara sentiu os olhos úmidos e considerou:
— Obrigada, Domênico. Você é meu amigo.
— Estou sendo sincero, Clara. Não se perturbe pelo que já foi. Você é forte, lúcida e vai resolver essa situação muito bem.
As palavras de Domênico tiveram o dom de acalmar a ansiedade de Clara. Porém, no fim da tarde, ela foi chamada ao telefone.
— Dona Clara de Oliveira? Aqui quem fala é o Dr. Felisberto Antunes, advogado. Estou representando seu marido Osvaldo de Oliveira e desejo marcar uma entrevista com a
senhora a fim de tratarmos de assuntos que interessam à sua família. Quando poderia me receber?
Clara estremeceu e seu coração começou a bater descompassado. Ela se esforçou para manter a calma. Respirou fundo e respondeu:
— Quando quiser.
— Quer que a procure em casa ou a senhora prefere vir ao meu escritório?
Ela preferiu ir ao escritório. Não queria que os filhos soubessem. Precisava saber o que Osvaldo pretendia antes de falar com eles. Marcaram para a tarde seguinte.
Quando desligou o telefone, Clara estava tremendo. Vendo-a, Domênico considerou:
— Você está pálida! Era seu marido?
— Era o advogado dele. Tentei ficar calma mas não consegui.
Domênico apanhou uma xícara de chá e ofereceu a ela, dizendo:
— Beba. Vai fazer-lhe bem.
As mãos dela tremiam e ele a fez sentar-se, ajudando-a a segurar o pires. Ela sorveu alguns goles e tentou sorrir.
— Sou uma tola mesmo. Ficar deste jeito só porque o advogado dele me procurou. Vai ver que quer a separação judicial para ver-se livre de mim. Estou aqui me recriminando pelo passado e pode ser até que ele já tenha esquecido e esteja vivendo com outra.
— Você foi avisada que não deveria entrar na ilusão. Como pode pensar isso se ainda não sabe o que aconteceu? Controle-se. Procure o advogado, informe-se e depois, só depois, tome sua decisão.
— Tem razão. E que esse assunto me deixa nervosa. Ele nunca deu notícias! Agora depois de dez anos está de volta!
— Não adianta se atormentar. Seria bom procurar o centro de Dona Lídia e buscar ajuda espiritual. O passe vai acalmá-la.
— É o que farei. A noite passada já dormi mal, preciso descansar para a entrevista de amanhã.
Ela foi ao centro e conversou com Lídia, que repetiu as mesmas palavras de Margarida.
Sentiu-se aliviada e mais calma. Foi para casa, deitou-se e dormiu. Entretanto, acordou às duas da manhã e não conseguiu mais dormir. Ficou revirando na cama, pensando em sua vida.
As cenas dolorosas do passado vieram-lhe à memória e ela sofreu novamente as emoções
desencontradas já vividas, como se aqueles fatos houvessem acontecido na véspera.
Percebeu que o tempo decorrido não a fizera esquecer. E Osvaldo, teria conseguido? Como estaria sua vida? Estaria sofrendo ainda tanto quanto ela?
A ansiedade reapareceu forte e Clara não conseguiu ficar na cama. Foi à cozinha, fez um café e sentou-se, tomando alguns goles e olhando através da janela as primeiras luzes do amanhecer.
Apesar da culpa e do arrependimento que sentia, ela pensou que de certa forma Osvaldo, tendo abandonado a família sem se preocupar com o bem-estar dos filhos, não tinha mais o direito de recriminá-la pelo seu erro.
Ela falhou em seus deveres, mas ele errou também. O que teria sido dos meninos se ela não houvesse conseguido sustentá-los? Esse pensamento deu-lhe coragem para enfrentar a visita ao advogado e evitar que Osvaldo procurasse os filhos. Ele não tinha esse direito
depois de não haver se preocupado com eles durante dez anos. Por que agora se aproximar deles novamente? Eles já estavam habituados a viver longe do pai. Uma aproximação agora não viria perturbá-los?
Quando entrou no escritório do advogado horas mais tarde, Clara estava decidida a resolver
tudo com ele e evitar que Osvaldo se encontrasse com os filhos. Se ele aceitasse continuar longe dos meninos, ela assinaria o divórcio nas condições que ele quisesse.
Felisberto recebeu-a cortesmente. Convidou-a a sentar-se na poltrona em frente à sua escrivaninha, sentou-se por sua vez e foi direto ao assunto:
— Seu marido pediu-me que a procurasse para colocá-la a par de alguns fatos que são do interesse de ambos.
— Acho estranho que depois de nos haver abandonado sem nenhuma notícia durante dez anos reapareça e deseje comunicar-se conosco. Muitas vezes acreditei que ele tivesse
morrido, o que explicaria essa prolongada ausência. Reconheço que errei e provoquei a nossa separação, mas nossos filhos não tinham culpa alguma. Durante estes anos todos ele nunca se preocupou em saber como eles estavam, se bem alimentados, com saúde, escola.
Não consigo entender por que agora ele aparece do nada e se julga com o direito de nos procurar.
— Devo dizer-lhe que ele estava morando no interior de Minas Gerais, no campo, levando vida simples. A única pessoa com a qual se correspondia era sua tia Ester, que, como a senhora sabe, o criou.
— Estou surpresa. As relações dele com a tia sempre foram formais.
— É verdade. Fui advogado de Dona Ester e fui seu procurador mesmo depois da morte do Dr. Freire. Convivi com ela durante anos.
Ela ficava muito feliz quando recebia uma carta do Sr. Osvaldo. Várias vezes comentou que ele havia mudado muito e seu relacionamento com ele se tomara profundo e amigo. Posso
dizer-lhe que Dona Ester amava-o como um filho. Assim, tornou-o herdeiro de todos os seus bens, com exceção de algumas doações aos empregados.
Clara ouvia atenta e esperou que ele prosseguisse:
— Após a morte de Dona Ester, chamei-o para a abertura do testamento. A bem da verdade, ele não desejava voltar. Entretanto, quando ponderei que precisava decidir o destino das coisas dela, ele resolveu.
— Quer dizer que ele está em São Paulo?
— Está morando na casa dela, que agora lhe pertence.
— Se ele veio apenas para resolver esse assunto, certamente não ficará por aqui — tornou ela com certo alívio.
— Isso não sei. Acontece que Dona Ester possuía muitos bens. Seu marido agora é um homem rico. Talvez ele mude de idéia.
— Por que lhe pediu para me procurar? Deseja o divórcio?
— Não falou sobre isso. Ele pretende cuidar do futuro dos filhos. Deseja vê-los para decidir o que fazer.
Clara levantou-se irritada.
— Exatamente o que eu não quero. Os meninos eram apegados ao pai e sofreram muito com a separação. Custaram a acostumar-se com sua ausência. Agora que estão bem, que
esqueceram tudo, ele volta e quer reabrir uma ferida que já cicatrizou. Não posso concordar. Não é justo para eles.
— Acalme-se, senhora. Estamos aqui para conversar. Aceita um café, uma água?
— Água, por favor.
Ela se sentou novamente, respirando fundo, tentando controlar a raiva.
O advogado chamou a secretária e pediu a água, que foi servida em seguida. Clara tomou alguns goles. Felisberto apanhou o maço de cigarros tirou um e perguntou com um sorriso:
— Incomoda-se se eu fumar?
— Não. Esteja à vontade.
Ele acendeu o cigarro vagarosamente e depois de algumas baforadas colocou-o no cinzeiro.
— Vocês estão vivendo uma situação delicada. Não é fácil resolver os problemas do coração. — Ela concordou com a cabeça e ele continuou: — Entretanto há momentos em que precisamos enfrentar o inevitável.
É difícil julgar, e eu de modo algum me colocaria nessa posição. A senhora se enganou, arrependeu-se, lutou para criar seus filhos sozinha e receia que seu marido traga de volta
velhos problemas não resolvidos.
— Ele não tem o direito de reabrir essa ferida.
— Por outro lado, ele sofreu todo esse tempo à distância, sem coragem para enfrentar a volta, talvez pretendendo evitar a dor que ainda machucava seu coração. Era Dona Ester
quem telefonava para sua casa, tinha notícia dos meninos e escrevia a ele contando. Quando chegou aqui, pretendia voltar o quanto antes. Senti que desejava fugir das lembranças que a distância não havia conseguido apagar.
Clara sentiu que as lágrimas ameaçavam rolar e baixou a cabeça tentando impedi-las. Felisberto continuou:
— Porém, de posse da fortuna, desejou procurá-los para dividir o dinheiro. Seu marido,
Dona Clara, é um homem de bem. Raramente tenho encontrado alguém tão generoso. Ele não tem intenção de perturbar os filhos, mas de tomá-los felizes. Por outro lado, a senhora
não pode tomar uma decisão como essa sem que seus filhos saibam. Nós não sabemos como eles lidaram com a ausência do pai. Pode ser que essa carência os esteja infelicitando,
fazendo-os se sentirem rejeitados. Posso garantir que o Sr. Osvaldo os ama muito e acredito sinceramente que um encontro com eles faria bem a todos, Colocaria as coisas no lugar.
As lágrimas estavam rolando pelos olhos de Clara e o advogado deu-lhe uma caixa de lenços de papel. Ela apanhou um, enxugou as lágrimas e não respondeu. Felisberto
considerou:
— Não acha que seria mais adequado conversar com seus filhos, que já estão adultos, contar-lhes a verdade e perguntar se eles desejam ver o pai?
— O que está me pedindo vai ser muito difícil para mim.
— Não creio. Para urna mulher que conseguiu se levantar, assumir a própria responsabilidade, educar seus filhos com respeito e carinho, será até fácil. Garanto que se sentirá aliviada se fizer isso.
— Vou pensar, doutor.
—Faça isso. Pense com calma e me ligue quando decidir.
Ele estendeu um cartão. Ela o guardou na bolsa e saiu. Felisberto chamou a secretária e informou:
— Vou até a casa do Sr. Osvaldo. Não voltarei mais hoje. Se precisar, ligue para lá.
Durante o trajeto, Felisberto foi pensando no drama daquela família.
Ester tinha sido para ele uma amiga querida. Na convivência estreita que haviam tido depois da morte do Dr. Freire, aprendera a admirá-la pela sua inteligência, força e dotes de
coração.
Ester costumava desabafar com ele seus problemas e ele a apoiava fazendo o que podia para que ela ficasse bem. O drama de Osvaldo a comovia e muitas vezes ela lhe dissera o quanto lamentava. Apesar de estar distante, acompanhava a vida de Clara e seus filhos com atenção, disposta, se fosse o caso, a auxiliá-la.
A atitude digna e forte de Clara rompendo com o amante, trabalhando, dedicando-se aos
filhos, impressionou-a e desfez a impressão desagradável que tinha dela. Quando passou a
corresponder-se com Osvaldo e tornaram-se mais íntimos, Ester ficou sabendo quanto ele sofrera e ainda sofria.
Nas cartas que escrevia ao filho adotivo, contava a atitude digna que Clara adotara, na esperança de que ele conseguisse perdoar e voltar ao convívio dos seus.
Apesar de desejar a reconciliação do casal, não tinha muitas esperanças. Sabia que a traição é difícil de superar, principalmente para um homem.
Felisberto costumava uma ou duas vezes por semana ir tomar o chá da tarde com Ester. Ela vivia muito só e essas visitas eram sempre prazerosas. Sentavam-se na sala e, entre uma
xícara de chá e outra, trocavam idéias sobre todos os assuntos.
Nesses encontros era comum Ester mencionar Osvaldo, contar as notícias que recebera e comentar sobre quanto gostaria que ele voltasse. Felisberto sabia que o que ela mais queria era que Osvaldo e Clara se reconciliassem e a família pudesse refazer-se.
— Vou deixar esta casa para Osvaldo. Eu gostaria muito que ele viesse morar aqui com a família — costumava dizer.
— Depois de tanto tempo vai ser difícil.
Ela sorria e respondia:
— Pode ser difícil para nós. Mas sempre coloco esse desejo nas mãos de Deus. Para ele tudo é fácil.
Pensando na amiga, ele se dispusera a fazer todo o possível para apoiar Osvaldo no que ele desejasse, embora não acreditasse que ele viesse a reconciliar-se com a mulher.
Osvaldo recebeu-o na sala de estar, e, apesar de todo o controle que se esforçava por manter, Felisberto percebeu logo o brilho ansioso de seu olhar.
Sentado à sua frente foi direto ao assunto:
— Clara esteve em meu escritório hoje.
Osvaldo remexeu-se na cadeira e perguntou:
— Como está ela?
— Nervosa, como era de se esperar.
— Quero saber tudo.
Felisberto relatou a conversa e finalizou:
— A reação dela é natural. Não conseguiu segurar as lágrimas. Você sumiu e durante dez
anos ela nunca soube nada. Chegou a imaginar que estivesse morto. Sabe Deus quais pensamentos passaram pela sua cabeça durante estes anos todos. De repente você reaparece
e deseja ver os filhos.
— É um desejo justo.
— Ela alega que você os abandonou e nunca procurou saber deles. Mas eu lhe contei a verdade: você estava distante mas informava-se sobre eles. Tenho certeza de que, se eles
tivessem tido algum problema, você os teria procurado.
— Com certeza. Sei que fui egoísta. Pensei apenas em mim. Não nego a minha covardia em enfrentar a realidade. Confesso que se fosse hoje, com o que tenho aprendido, teria agido diferente. Fui fraco, mas fiz o que pude na época. Reconheço que não tinha cabeça para agir de forma mais adequada. Por isso não me culpo.
— Faz bem. De nada adianta atormentar-se por algo que já foi. Porém nunca deixei de amar
meus filhos e sentir saudade deles. Tem sido muito doloroso estar ausente, não acompanhar
seu crescimento nem ajudá-los a enfrentar a vida.
— Ainda está em tempo. Felizmente, Clara tem sido excelente mãe. Seus filhos estão muito bem.
Osvaldo não respondeu mas pelos seus olhos passou um brilho de emoção. Ficou pensativo
por alguns instantes, depois disse:
— Ela vai conversar com eles, dizer que desejo vê-los?
— Como já disse, a princípio ela não queria que você os procurasse. Não deve ser fácil para
ela falar com eles sobre isso. Não sabe mos o que ela lhes teria dito durante todo este tempo. Mas eu lhe disse que eles tinham o direito de saber que você voltou e deseja vê-los.
Espero tê-la convencido. Vai me telefonar para dar uma resposta.
Osvaldo passou a mão pelos cabelos inquieto, depois decidiu:
— Estou disposto a falar com eles mesmo que não queiram. Há muitas coisas que precisamos esclarecer. Não quero deixar uma situação equivocada entre nós.
— Tem razão. Clara levou um choque com sua volta. Mas vai acalmar-se, refletir e concordar. Ela me pareceu uma mulher muito lúcida, que sabe o que quer.
— Não é essa a impressão que guardo dela.
— Ela era muito jovem quando se casaram. Hoje está mais experiente. O tempo passa, a vida modifica as pessoas. Você também está muito diferente do jovem que conheci: mais maduro, mais equilibrado,mais seguro.
— É, todos amadurecemos. Reconheço que um encontro entre nós é uma volta ao passado.
A vida nos deu dez anos para aprender a lidar melhor com nossos sentimentos. Se hoje nos coloca frente a frente, é porque estamos em condições de resolver melhor nossas
diferenças.
— De fato. Cada um teve tempo para avaliar melhor as atitudes
— Apesar disso, é um momento penoso que todos precisamos enfrentar.
— Talvez não seja tão penoso quanto pensa.
Osvaldo sorriu levemente e concluiu:
— Pode ser. Abraçar meus filhos de novo me fará muito feliz. Mal posso esperar.
— A vida tem suas compensações. Agora preciso ir. Assim que tiver a resposta de Clara, telefonarei.
Depois que o advogado se foi, Osvaldo continuou sentado na sala pensativo. Estremecia só em pensar que dentro de pouco tempo estaria abraçando os filhos.
Felisberto propusera-lhe um encontro com Clara para tratarem diretamente da separação legal e dos assuntos de família. A princípio recusara. Não desejava vê-la. Felisberto
insistira.
—Vocês precisam conversar. São pessoas civilizadas e podem educamente decidir suas
pendências. Quando se separaram, estavam em estado de choque, bloqueados pelas emoções descontroladas. O tempo, como você mesmo disse, amadurece. Se deseja ter um bom relacionamento com seus filhos, não pode continuar odiando a mãe deles.
Ele prometeu pensar. Apesar do tempo decorrido, a mágoa ainda continuava machucando
seu coração. Mesmo sabendo que Clara se arrependera e continuava sozinha, trabalhando para o sustento dos filhos, ele não conseguia esquecer seu amor traído.
Talvez fosse melhor não vê-la. O advogado poderia tratar de tudo.Decidiu não se encontrar
com ela. Sua preocupação era só com os filhos e Eles haveriam de entender seu ponto de vista.
Clara chegou em casa nervosa. Rita esperava-a com impaciência. Vendo-a entrar, perguntou:
— Então?
— Ele voltou e quer ver os filhos.
— É natural.
— Não penso assim. Osvaldo está rico. Tia Ester deixou-lhe toda a sua fortuna. Deseja dividir o dinheiro com os filhos.
— É justo.
— Agora? Depois do duro que nós demos para sustentar os meninos, ele aparece do nada e quer assumir seu lugar de pai! Não posso concordar.
— Você vai ter de falar com Marcos e Carlinhos.
— É isso que eu quero evitar, O que lhes direi? Que meu marido me surpreendeu aos beijos com o amante e nos abandonou? Não tenho coragem para fazer isso.
— Não precisa se expor desse jeito. Basta dizer que ele se foi por que se desentenderam.
— Marcos tinha oito anos. Embora nunca tenhamos falado no assunto, ele deve saber a verdade.
— Por que não tem uma conversa franca com eles? Diga a verdade. Depois desse deslize,
você tem levado vida decente. Não tem do que se envergonhar.
—Pois eu me envergonho. Não sei onde estava com a cabeça quando me iludi com Válter.
—Você era jovem e isso pode acontecer a qualquer uma. Mas sofreu, assumiu sua vida com
dignidade.
— Apesar disso, tremo só em pensar que teremos de conversar sobre isso.
— Pois eu acho que será muito bom. Você nunca os esclarecer sobre o passado. Nem sequer sabe o que eles pensam a respeito. Podem ter guardado impressões erradas a respeito de vocês. A verdade em qualquer tempo é sempre um bem. Não deve temer essa conversa.
Eles já são adultos. Seja sincera, exponha seus sentimentos, diga-lhes como aconteceu.
Tenho certeza de que se sentirá aliviada depois disso.
— Você acha mesmo?
— Tenho certeza.
— Fale com Lídia. Peça-lhe para fazer uma prece por mim.
— Por que não vai até lá falar com ela? Garanto que se senti muito melhor.
— Irei depois do jantar. Preciso de forças para enfrentar essa situação.
Clara subiu para tomar um banho e Rita ficou pensando em como a vida muda situações, separa ou agrupa pessoas na seqüência interminável do destino, trabalhando as emoções de
cada um, tentando desenvolver a consciência, renovando valores, ensinando sempre.
O que ela estaria querendo ao trazer Osvaldo de volta? A resposta estava guardada nos segredos do tempo, contudo ela sabia que, quando a vida age, sempre faz o melhor.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Quando é Preciso Voltar
SpiritualA traição da mulher amada doía no fundo do coração de Osvaldo. Açoitado pela desilusão, ele não sabia o que fazer. Como viver carregando o peso dessa dor? Como enfrentar essa dura realidade e continuar vivendo? Amargurado, ele não pensou nos dois fi...