Capítulo 21

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Clara chegou ao centro espírita para a reunião costumeira deparou com uma fila que virava o quarteirão. Intrigada, entrou no pátio e perguntou a uma voluntária:
— O que está acontecendo? Para que esta fila?
— Para marcar consulta com o médium de cura. Ele vem realizando verdadeiros milagres.
— Ele vai trabalhar aqui?
— Não. As pessoas terão de ir ao sítio onde ele atende. Ele curou a filha da Dona Mariquinha. Lembra? Aquela que vinha sempre e tinha problema de andar. Eu vi. Depois que se tratou com ele, ficou completamente curada.
— Você já foi lá?
— Ainda não. Mas pretendo ir.
— Você não está doente.
— Não. Mas ele dá aulas, ensina a manter a saúde.
— É médico?
— Não. Os espíritos é que fazem tudo. Dizem que são eles que ensinam a fazer os remédios de ervas que dá ao povo.
—Tenho visto Dona Lídia dar esses remédios sem receita médica. Não será perigoso?
A outra sorriu e respondeu:
— Se fosse, Dona Lídia não o faria. Depois, esses medicamentos têm licença e tem um farmacêutico responsável. O nome dele está no rótulo.
Clara olhou para as pessoas da fila. Eram de todas as idades, algumas bem vestidas, outras mais humildes. Ela entrou, foi para a reunião costumeira. Estava freqüentando o centro uma
vez por semana e sentia-se muito bem.
Dormia melhor, sentia-se mais calma, e Válter não voltara a incomodar desde que haviam dado parte dele na delegacia, havia quase um ano.
Lídia dissera-lhe que suas energias eram boas para ajudar as pessoas. Por isso, depois de um curso de bioenergética, colocou-a para dar passes aos que procuravam a ajuda espiritual.
Clara começou a participar dessas reuniões sem grande entusiasmo, mais para atender à indicação de Lídia, em quem confiava. Porém com o tempo percebeu que sua sensibilidade
se abria de maneira surpreendente.
Quando se aproximava de uma pessoa, sentia emoções, pensamentos diferentes. Tinha vontade de dizer algumas palavras a ela, mas reprimia, uma vez que ninguém fazia isso e
todos ficavam em silêncio na penumbra da sala ao som de música suave.
Conversando com Lídia, ela lhe dissera:
— Sua mediunidade está se abrindo, Clara. Um dia você vai poder diferenciar os vários tipos de energias que a envolvem.
— Eu já sinto. Algumas vezes sai de minhas mãos um calor forte, elas chegam a transpirar.
Outras vezes, passa por mim uma brisa leve suave, refrescante. A pessoa a que estou atendendo começa a bocejar. Algumas choram, outras estremecem. No começo eu me assustava, mas agora não, porque algumas me disseram que se sentiram muito melhor.
— É assim mesmo. Continue firme. Você vai se surpreender.
O que Lídia dissera se confirmou. Algumas vezes Clara chegava a perceber o que a pessoa estava sentindo, onde estava doendo, que tipo de problema a preocupava. A conselho de
Lídia, quando terminava o atendimento, Clara procurava desligar-se de todas essas emoções, pedindo aos espíritos que a ajudassem a esquecer o que havia sentido.
Naquela noite, na saída da reunião, ela encontrou Lídia e aproximou-se. As pessoas já estavam saindo, e ela perguntou:
— Hoje quando cheguei havia uma fila enorme. Esse médium de cura é mesmo bom como dizem?
Lídia olhou intrigada para ela e respondeu:
— Sim. Tem uma mediunidade muito boa e está fazendo um trabalho sério.
— Soube que os remédios que a senhora distribui têm farmacêutico responsável.
— Claro. A mediunidade é uma ferramenta preciosa, mas o médium, para utilizar-se dela, precisa usar o bom senso. Eu sou daquelas que, quando um espírito desencarnado vem e me
dá um conselho, analiso bem antes de aceitar.
É um velho conselho de Paulo, o apóstolo: “Não acredites em todos os espíritos; antes verifica se eles são de Deus.”
— Ouvi dizer que esse médium tem ajudado muita gente.
— De fato, faz um trabalho muito bom. Por isso encaminho as pessoas para ele. Nós aqui não temos um médium de cura do nível dele.
— Dizem que ele também faz palestras, dá conselhos. Gostaria de conhecê-lo.
Pelos olhos de Lídia passou um brilho de emoção. Ela respondeu:
— Qualquer dia vou convidá-lo para vir aqui fazer uma palestra.
— Que bom. Não deixe de me avisar.
— Todos serão avisados.
Depois que ela se foi, Lídia recolheu-se pensando naquela conversa. Como Clara reagiria se soubesse que esse médium era seu ex- marido? Deveria contar-lhe a verdade? Se contasse, ela com certeza não apareceria.
Mas seria correto não dizer nada? Ela se recusava a vê-lo. Encontrá-lo não seria um choque muito forte?
Sem saber o que fazer, Lídia orou pedindo ajuda aos espíritos amigos. Quando acontecia isso, entregava o assunto nas mãos de Deus. Por isso resolveu não fazer nada, apenas
esperar. Tinha certeza de que a vida se encarregaria de fazer o que fosse melhor, sem precisar de sua interferência.
Clara chegou em casa bem-disposta. Rita esperava-a para o costumeiro chá que tomavam sempre que ela voltava do centro. Sentadas uma em frente à outra, Clara tornou:
— Hoje havia uma fila imensa no centro para consultar aquele médium que manda os remédios para Dona Lídia. Você ouviu falar dele?
Rita estremeceu. Pensou que Clara soubesse quem ele era.
— Já. Nunca pensei que Osvaldo fosse ficar tão conhecido.
Clara deu um salto:
— Osvaldo? O que tem ele a ver com esse médium?
Rita hesitou um pouco e respondeu:
— Pensei que você soubesse! Ele é esse médium. Está realizando um trabalho admirável.
Clara ficou pálida e balbuciou:
— Você não está enganada? Esse mora num sítio, enquanto Osvaldo vive na cidade.
— Você não tem ouvido os meninos dizerem que ele passa a maior parte do tempo no sítio que herdou de Dona Ester?
Clara deixou-se cair na cadeira boquiaberta.
— O sítio de tia Ester! Tem certeza? Dona Lídia não me disse nada. Ela sabe?
— Acho que sim. Mas é discreta.
— É difícil crer. Ele nunca foi dado a coisas espirituais. Era um homem normal, como tantos outros. Trabalhava, divertia-se, namorava... Enfim, estou surpresa. As pessoas falam
dele como se fosse um santo.
— Exageram, como sempre. Só porque ele é médium,trabalha com os espíritos, não significa que seja um santo. O povo gosta de se iludir. Depois, quando percebem um traço
humano nesses “santos” que elegeram indevidamente, eles o crucificam, esquecem tudo de bom que eles fizeram e lembram-se apenas de suas fraquezas. Tenho horror a essa fama de
santidade.
— Tem razão. Mas é difícil separar uma coisa da outra. Um médium é um missionário, precisa se purificar. Pelo menos é o que dizem.
— Nada mais errado. Um médium é só uma pessoa que tem sensibilidade para perceber além dos cinco sentidos. Só isso. Agora, quanto ao uso que ele fará dessa sua sensibilidade,
isso sim vai depender do seu nível de progresso espiritual. Quanto mais evoluído ele for, mais lúcido, coerente, correto ele se mostrará no trato com a mediunidade.
— Tem lógica. Não sabia que você conhecia tanto esse assunto.
— Tenho aprendido com Osvaldo.
— Você tem ido vê-lo? Por que nunca me contou?
— Porque você evita o assunto, e eu não queria incomodá-la. Procuro tirar meu dia de folga quando ele faz palestra no sítio e vou passar o dia lá com ele.
Clara olhou curiosa para ela.
— É verdade mesmo o que dizem?
— Você precisa ir para ver. Quando ele fala, o povo fica mudo, não tira os olhos dele, procura não perder uma só palavra.
— Não sabia que ele era bom orador.
— São os espíritos que falam através dele. Em alguns momentos, sua voz muda completamente, dá para sentir uma emoção diferente no ar. Não dá para explicar. Só estando lá. Só sei que saio daquele lugar muito bem-disposta, pensando em suas palavras,
procurando fazer o que ele ensina.
Clara ficou calada pensando no que ouvira. Ela tinha outra visão de Osvaldo. Sentiu-se confusa.
— Sei o que está pensando — continuou Rita
— Duvido.
— Você está comparando o que ele é hoje com a idéia que tinha dele quando viveram juntos.
— É justamente por isso que me parece uma fantasia o que você está afirmando.
— Mas não é fantasia. Você viveu ao lado dele alguns anos e pensa que o conhece bem.
Nada mais falso do que isso. Nós mudamos todos os dias. A vida vai nos desafiando, e sob sua competente ação nós vamos desenvolvendo nosso potencial interior. Dona Lídia
explicou isso outro dia.
— Sei o que quer dizer, mas penso que ninguém vira médium de uma hora para outra, ainda mais assim, como vocês dizem que ele é. Eu nunca notei nada de estranho nele. Era
até um homem equilibrado, procurando fazer tudo dentro das regras. Como, de um momento para outro, pode transformar-se em um curador tão poderoso?
—Ele não se transformou em um curador poderoso. Nasceu com essa capacidade, porém ela só se manifestou de algum tempo para cá.
— Não consigo ver Osvaldo como um curador.
Rita sorriu e respondeu:
— Talvez você tenha essa dificuldade, mas, que ele é um bom curador, é. Essa é a verdade.
Se não acredita, vá ver com os próprios olhos.
Clara não respondeu. Sentia-se curiosa, porém a idéia de encontrar-se de novo com Osvaldo assustava-a. Rita observou:
— Apesar da curiosidade, você não tem coragem para fazer isso. A vida de Osvaldo não me interessa nem um pouco. Só estranhei o que vocês dizem dele.
Por quê? Ele sempre foi um homem bom. Você mesma disse agora a pouco que ele era equilibrado, cumpridor de suas responsabilidades. Não é de estranhar que os espíritos bons o tenham escolhido como intermediário.
— Sempre viveu na cidade e agora faz remedinhos de ervas para os doentes. Isso não tem coerência.
— Pode não ser racional na sua cabeça, porque você o imagina diferente do que é.
— Isso não. Eu sei como ele é. Nós vivemos juntos muitos anos
— Isso não é suficiente para conhecer intimamente uma pessoa Depois, como eu disse, nós mudamos a todo instante.
— Já vi que não dá para conversar com você. Está encantada com Osvaldo, e nada que eu disser sobre ele você aceita.
— Pode me dizer as coisas boas que ele sempre fez. Inclusive como está tentando ajudar os filhos e até você, apesar de não estarem mais juntos.
—Os filhos, é seu dever. Quanto a mim, não preciso de nada dele. Estou muito bem. Sou suficiente para cuidar de mim e da família.
— Não seja ingrata, Clara. Afinal, o que a irrita? Foi você quem se apaixonou por outro.
Ele nunca a teria deixado. Depois, ele se ausentou e só voltou quando se equilibrou, e agora tenta proteger a família. Se não fosse ele, talvez Válter tivesse provocado uma tragédia.
Clara baixou a cabeça e não respondeu logo. Instantes depois, disse:
— Tem razão. O que me irrita é ele ser o bom e eu a traidora, ele ter todas as virtudes e eu ser a mulher adúltera. Até quando terei de suportar a idéia de que ele sempre foi e é melhor
do que eu?
As lágrimas começaram a cair. Rita aproximou-se e colocou as mãos em seu ombro, dizendo:
— Desculpe, não tive intenção de magoar você. Não estou julgando quem é melhor.
Falávamos dele, não de você. Não se compare. Cada um de nós tem pontos positivos e fracos. Mas ninguém é melhor do que ninguém. Alguns estão mais conscientes do que
outros, mas diante da vida todos somos iguais, cada um vivendo seu processo, trabalhando com sua experiência.
Clara levantou o olhar, sorriu levemente por entre as lágrimas e respondeu:
— Você é um exemplo vivo de como se pode progredir. De alguns anos para cá você tem mudado muito. Sempre admirei sua maneira direta e simples de dizer as coisas, mas agora você está indo muito mais longe. Está se tomando sábia. Entendo que Osvaldo pode ter
progredido também.
— Assim como você, os meninos. Assim é a vida.
Clara levantou-se e abraçou-a com carinho:
— É bom ter uma amiga como você. Agora vamos dormir.
Rita concordou e, depois de tirar as xícaras da mesa, subiu para o quarto. Estava pensando,
perguntando-se até quando Clara resistiria à vontade de ver Osvaldo.
Antônio chegou em casa e Neusa esperava-o impaciente.
— Puxa, pensei que não voltasse mais. Não aguento ficar tanto tempo só. Você está me abandonando.
— Estou trabalhando, mãe. Tem de entender.
— Ficou dois dias fora de casa.
— Você sabe que estive trabalhando no sítio.
Neusa observou sarcástica:
— Aí tem coisa! Essa sua repentina dedicação ao trabalho me intriga, O que há lá? Alguma mulher interessante? Você nunca foi disso!
Antônio levantou a cabeça e respondeu com altivez:
— Sei o que estou fazendo. Por que reclama? Não era você quem vivia dizendo que eu precisava trabalhar? Agora que estou me esforçando, não está contente.
Não estou acreditando nesse seu súbito interesse pelo trabalho.
— Chega de conversa. Agora vou tomar um banho e depois terei de ir à cidade fazer algumas compras. Osvaldo volta do sítio amanhã e precisa encontrar tudo pronto.
Ele subiu e Neusa balançou a cabeça pensativa. Antônio estava mudado. Falava menos, levantava cedo, ficava fora o dia inteiro, não reclamava de estar trabalhando. Não lhe
dissera quanto estava ganhando, mas ela imaginava que recebia um bom salário, uma vez que se vestia melhor, comprava roupas finas e, o que era mais intrigante, nem usava a mesada que Osvaldo lhes mandava todos os meses. Até as despesas da casa ele sustentava.
Aquilo não era natural. Às vezes pensava que ele estava preparando um grande golpe para arrancar dinheiro do irmão. Por isso ela precisava se precaver, não gastar o dinheiro da
mesada. Assim, caso a situação estourasse e ele fosse despedido, ela teria uma reserva para se sustentar.
Antônio, porém, dizia que ela precisava vestir-se melhor, cuidar mais da aparência, arrumar-se. Antes, ele nunca reparava em como ela se vestia. Precisava tirar aquele assunto
a limpo.
Quando ele desceu, depois do banho, ela serviu o almoço e, antes que ele se levantasse da mesa, foi direto ao assunto:
— O que está acontecendo? Você está mudado. Tenho andado preocupada.
— Não precisa se preocupar. Nunca estive tão bem.
— Não sei... Você parece outra pessoa.
Ele riu bem-humorado.
— Estou me sentindo outro mesmo, se quer saber. Minha vida agora tomou um novo rumo.
— Como assim? Apareceu alguma mulher?
Ele riu sonoramente.
— Ainda não. Mas, se aparecer e valer a pena, posso até gostar.
— Logo você, meu filho, está pensando em me abandonar?
— Estou crescidinho para ficar embaixo da saia da mãe.
— Está vendo? Tenho motivos para me preocupar.
— Não tem, não. Mesmo que um dia apareça alguém em minha vida, nunca a deixarei.
Pode ter certeza disso.
Ela suspirou aliviada.
— Ainda bem. Fico nervosa só de pensar nisso.
— Se bem que um dia, quando um de nós morrer, teremos de nos separar.
— Deus me livre! Nem fale uma coisa dessas.
— Por quê? Nos últimos tempos tenho pensado muito sobre isso. A morte faz parte da vida.
— Vamos mudar de assunto. Não quero falar sobre isso. Ele ficou sério e respondeu:
— Você precisa ir qualquer dia destes ouvir uma palestra de Osvaldo no sítio.
— Palestra? De Osvaldo? Sobre o quê? Ele continua com aquela mania de falar em espíritos?
— Continua. Os espíritos falam através dele.
— Você me disse que ele recebe os espíritos de gente morta. Fico arrepiada só em pensar.
Acho que a traição de Clara tirou alguns parafusos da cabeça dele. Só pode ser. Antes, ele nunca falava nisso.
Antônio não respondeu de imediato, ficou pensativo. Ele também se surpreendeu quando começou a trabalhar com o irmão. A princípio descrente, depois curioso, ultimamente
intrigado com o que via.
Alguns fatos que ocorriam no sítio desafiavam sua lógica. Não conseguia encontrar explicações. Apesar disso, pessoas melhoravam, resolviam problemas, mostravam-se
emocionadas, agradecidas.
Ele mesmo, sem Osvaldo saber, havia levado algumas amostras dos produtos de ervas que fabricavam no sítio para um médico seu conhecido; que, analisando-as, garantira que se
tratava de drogas inofensivas à saúde, mas sem grande poder curador.
Todavia, com elas as pessoas recuperavam a saúde e algumas doenças graves eram curadas.
Só podia ser sugestão. Tinha ouvido falar do placebo, remédio sem potencial de cura mas que pode agir como fator psicológico.
Porém, se alguns casos que presenciara poderiam ser encaixados nessa explicação, outros havia em que só a cirurgia poderia resolver, em que certos órgãos estavam muito comprometidos, mas que, apenas com o uso daquelas ervas, tinham se resolvido.
O tumor desaparecera, os órgãos se refizeram como por milagre.Observando tudo isso, Antônio foi se transformando completamente. Depois, o respeito com que Osvaldo o tratara desde o início foi muito prazeroso. Ele não estava habituado a ser tratado daquela forma.
Sentiu-se bem, útil, digno. Ficou emocionado com os casos dolorosos que apareciam no sítio em busca de ajuda. Sentiu vontade de fazer alguma coisa, de cooperar.
Descobriu que era gratificante ser bom, que ajudar alguém a sentir-se melhor, confortar, mostrar-se solidário causava-lhe muito bem-estar. Aos poucos foi se tornando mais
interessado no trabalho que faziam.
Levantou-se da mesa dizendo:
— Já estou saindo, mãe. Não sei a que horas voltarei. Tenho muitas coisas para fazer.
Vasculhou os bolsos e encontrou a lista de compras, apanhou a pasta e saiu sem responder a Neusa, que resmungava que estava cansada de comer sozinha.
Estava uma tarde quente, e Antônio andava apressado quando alguém o puxou pelo braço.
— Até que enfim o encontro. Onde tem andado?
Válter estava em sua frente e, vendo-o, Antônio surpreendeu-se com sua aparência. Sentiu uma impressão desagradável, um cheiro de álcool, e instintivamente susteve a respiração
para evitá-lo.
— Estou trabalhando, como você sabe.
— Sei. Tenho ido à sua casa e você nunca se encontra lá. Sua mãe está cansada de me ver.
Ultimamente finge que não há ninguém em casa. Mas eu sei que ela está lá.
— Não a leve a mal. Sabe como ela é.
— Temos de conversar. Vamos tomar uma cerveja em algum lugar.
— Obrigado. Mas acabei de almoçar, comi demais e não tenho vontade de nada.
— O que é isso? Uma cerveja sempre cabe. Vamos. Agarrou-o pelo braço. Antônio olhou para o relógio: podia dispor de alguns minutos. Entraram em um bar, sentaram-se e Antônio
pediu um refrigerante e Válter, uma cerveja.
Enquanto esperavam, Antônio considerou:
— Não acha que ainda é cedo para começar a beber?
— Nada disso. Para mim, qualquer hora é hora. Mas, fale, como vão as coisas?
— Bem.
— Estou vendo. Você anda bem vestido, elegante. Pelo jeito está mesmo indo muito bem.
Qualquer dia destes vai aparecer até com um carro.
— Estou pensando nisso mesmo.
— Conseguiu as informações que lhe pedi?
— Você ainda não se esqueceu disso?
—Dei um tempo, mas não esqueci. O que sei é que Clara não voltou com Osvaldo. Se ela fizesse isso, iria se arrepender.
Havia tanto ódio em sua voz que Antônio estremeceu, sentiu um aperto no peito e uma sensação de desconforto. Teve vontade de levantar-se e sair dali. Controlou-se, porém.
— Não vejo por que tem tanto ódio de Osvaldo. Foi você quem arrasou com a vida dele.
Ele é quem poderia sentir ódio de você. No entanto, ele nunca fala nisso.
— Pelo jeito você se baldeou para o lado dele. Eu estava desconfiado. Você sumiu. Anda todo emproado, orgulhoso. Você não era assim. Agora tenho certeza de que você se vendeu mesmo. Não é mais meu amigo. O que faz um pouco de dinheiro!
Tentando conter a impressão desagradável, Antônio respondeu:
— Não seja tão maldoso. Não me baldeei para o lado dele. Osvaldo é meu irmão, deu-me um bom trabalho, trata-me com respeito, consideração. Tem se mostrado meu amigo. É um homem decente, como sempre foi. Não vejo razão para ficar contra ele em nada. Ao contrário: a cada dia gosto mais do que estou fazendo.
— Você é um bobo. Com um punhado de dinheiro ele está conseguindo manipular você, que só faz o que ele quer. Quando não lhe convier mais, vai dar um pé no seu traseiro e pronto.
Antônio levantou-se.
— Não dá para conversar com você. Vou embora. Tenho mais o que fazer.
Válter puxou-o pelo braço, forçando-o a sentar-se.
— Ainda não terminei. Sempre tive você como meu melhor amigo. Quando Osvaldo não ligava para você, arranjei-lhe um ótimo emprego.
— Que eu perdi quando você teve o caso com Clara.
— Sempre amei aquela ingrata. Não fiz de propósito. Não pensei que você fosse pedir demissão por causa disso. Você é muito falso, nunca foi meu amigo.
— Está enganado. Continuo sendo seu amigo. Mas não gosto de ver você do jeito que está.
Se continuar assim, vai acabar perdendo o emprego.
— Isso já está acontecendo. Não tenho vendido nada, qualquer dia destes eles vão me despedir. Mas de quem é a culpa? De vocês. De Clara, que me enlouquece, e de você, que prometeu me ajudar mas nunca cumpriu.
— Olhe aqui, Válter, vamos esclarecer isso de uma vez. Não tenho culpa se Clara não quer nada com você. Há anos que não converso com ela, nem sei por onde ela tem andado.
Tenho visto os meninos com Osvaldo, falamos de outros assuntos, mas nunca de Clara.
Seria bom que você esquecesse o passado, cuidasse da sua vida, não bebesse tanto, procurasse manter uma boa aparência.
— Não posso esquecê-la. Depois, de que me adiantaria manter boa aparência se ela não me quer?
— Mas poderá encontrar outra que o ame e refazer sua vida.
— Não quero. Um dia ela ainda vai voltar para mim.
Antônio meneou a cabeça negativamente.
— Você não tem jeito mesmo. Pare de culpar os outros pelos problemas que conseguiu arranjar com sua atitude. Agora preciso ir. Tenho muito que fazer.
Levantou-se apressado para não dar tempo a que Válter o segurasse. Foi se afastando, mas ouviu-o dizer:
— Vocês me pagam! Não vou deixar passar. Juro que não.
Antônio continuou andando sem olhar para trás. Pela primeira vez observara quanto Válter era rancoroso, injusto, desequilibrado, desagradável. Sentia-se atordoado, indisposto, cansado. Respirava e tinha a sensação de que seus pulmões não recebiam todo o ar de que
precisavam.
O encontro com Válter fizera-lhe mal. Entrou em uma lanchonete e pediu um copo de água mineral. Respirou fundo e foi tomando a água em pequenos goles, tentando se refazer.
Aos poucos foi melhorando. Olhou no relógio e decidiu continuar seu trabalho. Apesar do esforço que fez para esquecer aquele desagradável encontro, de vez em quando a figura de
Válter e suas palavras voltavam-lhe à lembrança. Ao pensar nele, sentia um aperto no peito e certa inquietação da qual ele lutava para sair.

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