Capítulo 12

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Depois do jantar Clara foi procurar Lídia. Esta a recebeu com prazer e levou-a para a sala,
dizendo alegre:
— Eu a estava esperando.
— Rita falou que eu viria?
— Não, mas eu sei que alguma coisa aconteceu hoje que a deixou nervosa.
— É verdade. Vim pedir ajuda. Sei que é muito ocupada e não gosto de incomodá-la.
— Ele voltou, não é mesmo?
— Como sabe?
— Meus amigos espirituais me contaram. A hora da verdade chegou e você está com medo
de enfrentar.
Clara baixou a cabeça e não conseguiu suster as lágrimas. Estou com medo, Lídia.
— Não há o que temer. Seu marido é um homem bom, ama a família. Só deseja o bem de todos.
— Ele sempre foi bom e amoroso. Eu é que pus tudo a perder. Fui a culpada pela nossa infelicidade. Terei de conversar com meus filhos sobre isso e não tenho coragem. Você nunca se perdoou, não é mesmo?
— Não. Ah, se eu pudesse voltar atrás...
— Não pode. É para frente que se anda. Por que não se vê como é agora? Por que continua
se condenando por um erro perdido no passado, esquecendo tudo de bom que fez depois? Não acha que está sendo muito severa consigo?
— Quanto mais eu penso em como Osvaldo era bom, como ele me amava, como ele nos tratava, mais eu me culpo. Não consigo esquecer. Sinto-me suja, errada, fracassada.
— Você se iludiu, mas aprendeu. Na vida o que importa é o amadurecimento. Um erro
pode ensinar mais do que muitos acertos. Provoca dor, mudanças, situações, mas desenvolve a consciência, obriga a reavaliar valores. Ninguém evolui sem a bênção da experiência. Ela tem um preço, e você o pagou com juros nesses dez anos de vida digna.
Fale com seus filhos, diga a verdade. Tenho certeza de que eles a amarão mais ainda. Agora vamos fazer uma prece juntas, pedir a Deus que lhe dê discernimento e coragem para
vencer mais essa etapa de sua vida.
Lídia pegou-a pela mão e levou-a até o salão do centro espírita ao lado e indicou uma cadeira. Ficou em sua frente, colocou as mãos sobre sua cabeça e murmurou sentida prece
pedindo luz e esclarecimento para ela e todos de sua família.
Clara sentiu que uma brisa leve e agradável a envolvia e aos poucos foi se acalmando.
Quando Lídia terminou, tocou-a no braço e ela se levantou, abraçando a amiga:
— Obrigada, Lídia. Sinto-me aliviada. Deus lhe pague pelo bem que me fez.
Lídia sorriu e respondeu:
— Vá em paz, Clara. Venha sempre que precisar.
Clara voltou para casa sentindo-se melhor. A irritação, a revolta e o medo haviam desaparecido. Ela conversaria com os filhos. Sentia-se preparada.
Esperou que voltassem da escola e jantassem. Depois os chamou e disse:
— Preciso conversar com vocês. Vamos até a sala.
Depois que se acomodaram, Clara disse com voz que se esforçava por tornar natural:
— Precisamos falar sobre um assunto muito sério. Sinto que deveríamos ter conversado anos atrás, porém não tive coragem. Vocês se conformaram com as explicações que dei na
época e nunca mais falamos sobre este assunto.
Fez ligeira pausa, respirou fundo e ficou calada durante alguns segundos. Os dois notaram seu constrangimento. Marcos adiantou-se:
— Se vai falar sobre nosso pai, não precisa. Sabemos por que ele foi embora e nunca mais voltou.
Apanhada de surpresa, Clara sentiu a boca seca e o coração bater mais forte. Esforçou-se para dominar a emoção e respondeu:
— O que é que sabem? Que eu me iludi, errei, joguei fora o amo de um homem bom que nos amava?
Apesar do esforço por controlar-se, Clara não conseguiu reter as lágrimas. Os dois rapazes correram a abraçá-la, emocionados. Carlinhos perguntou com voz trêmula:
— Por que está falando nisso agora? Teve notícias de papai? Ele está morto?
Ela rompeu em soluços abraçada aos filhos. Marcos acariciava seus cabelos dizendo:
— Mãe, não se torture. Seja o que for que tenha acontecido, nós estamos aqui do seu lado.
O passado não importa, nós a amamos e não queremos que sofra. Por favor, não chore!
Quando ela parou de chorar, sentou-se no sofá com um filho de cada lado, segurando a mão deles. Disse por fim:
— O pai de vocês voltou. É sobre isso que precisamos conversar. Em poucas palavras Clara contou-lhes a entrevista com o advogado, finalizando:
— Ele deseja vê-los.
— Ele quer voltar para casa? — indagou Carlinhos.
— Não. Deseja falar com vocês.
Carlinhos teve um gesto nervoso. Levantou-se dizendo:
— Falar o quê? Depois de nos ter abandonado todos estes anos, o que ele quer? Por que não ficou lá de uma vez?
Marcos abraçou o irmão e disse:
— Calma, Carlinhos. Não vamos nos precipitar. O que mais ele disse?
— Quer cuidar do futuro de vocês, agora que está rico. Herdou a fortuna de tia Ester. Parece que é muito dinheiro.
— Não quero nada dele — argumentou Carlinhos, irritado. — O dinheiro dele nunca nos fez falta. Temos você, que trabalhou duro para nos sustentar, enquanto ele nunca se
preocupou conosco.
— Não deve julgar seu pai com tanta severidade. Não sabemos como foi sua vida estes anos todos — disse Clara.
Fez pequena pausa e continuou:
— Até amanhã fiquei de dar uma resposta ao advogado. Ele prometeu respeitar a decisão de vocês. Portanto pensem bem. Têm até amanhã para decidir.
— Por mim já decidi — tornou Carlinhos com raiva. — Não desejo vê-lo.
— Eu quero conversar com ele. Sinto saudade. Sempre foi amoroso e amigo. Desejo ouvir o que ele tem para nos dizer. Assim como não me atrevo a julgar o que houve entre vocês dois, não posso condená-lo sem o ouvir.
Por mim, pode dizer que irei. Quanto a você, Carlinhos, melhor pensar bem antes de decidir. Você era mais agarrado a ele do que eu. Não creio que sua decisão venha do seu
coração. Pense bem para não se arrepender depois.
— Já decidi. Não vou me arrepender. Pode dizer que não quero vê-lo. Está decidido.
— Temos prazo até amanhã no fim da tarde. Não ligarei antes. Se mudar de idéia, me diga.
Quando eles se foram, Rita entrou na sala indagando:
— E então, como foi?
— Penoso. Mas estou aliviada. Marcos quer ver o pai; Carlinhos, não. Está com raiva por ele ter nos abandonado.
— Ele era o mais agarrado ao pai.
— É mesmo.
— Deve ter sofrido muito com a separação.
Clara ficou pensativa.
— Eles sabiam de tudo — comentou triste.
— Claro. Eram grandes já. Marcos algumas vezes tentou conversar comigo. Também sentiu muita saudade do pai.
— Nunca me disseram nada. Pensei que houvessem esquecido.
— Viram sua luta para sustentá-los. Certa vez, Marcos viu você chegar acompanhada por Válter. Lembra quando ele a seguia por toda parte?
—Ele viu?
— Viu e ficou muito nervoso. Procurou-me para saber se você pretendia se casar com ele, e disse que, se você fizesse isso, fugiria de casa e nunca mais voltaria.
— Puxa! Você nunca me contou isso!
— Para que preocupá-la? Eu sabia que você não queria nada com Válter. Conversei com Marcos, contei-lhe que Válter gostava de você mas não era correspondido.
— Esse Válter só me trouxe problemas. Ainda bem que nos últimos tempos desapareceu.
— Pedi para Dona Lídia interceder e nos ajudar.
— Talvez por isso ele tenha se afastado. Nunca mais soube dele.
— Vai ver que arranjou outra, se casou.
— Antes assim.
— Você nunca pensou em voltar a casar?
— Nunca. Estou bem, não preciso de ninguém para me arranjar problemas.
— Diz isso porque nunca se apaixonou novamente.
— Uma vez foi suficiente para não entrar nessa outra vez.
— Ainda gosta de Osvaldo?
Clara sobressaltou-se e fitou-a séria. Depois respondeu:
— Não.
— De vez em quando noto você triste, distante. Imaginei que estivesse com saudade dele.
— Há momentos em que sinto saudade do passado. Nós tivemos bons momentos juntos. Depois me recordo do que aconteceu e a culpa me incomoda.
— Sente falta dele?
— Sinto falta da segurança daqueles tempos. Há muito aceitei o irreparável. Assumi o que fiz. Desde então só conto comigo.
— Pretende passar a vida inteira sozinha?
— Por que não? Tenho os filhos e, quando eles se casarem ou se forem, procurarei viver o
resto da vida em paz. E só o que desejo.
Rita olhou para Clara e não respondeu. Várias vezes se perguntara o que aconteceria se um dia Osvaldo voltasse. Agora, estava acontecendo.
No dia seguinte, Clara ligou para o advogado e disse que Marcos concordava mas Carlinhos, não. Ele continuava se recusando a ver o pai.
Felisberto ligou para Osvaldo e comunicou o que ela lhe dissera. Ele pediu que Marcos fosse à sua casa no dia seguinte. Mandaria o carro buscá-lo à hora que desejasse.
Naquela noite antes do jantar, Clara chamou os filhos e disse:
— Seu pai vai mandar o carro buscá-los amanhã. A que horas desejam ir?
— Eu não vou — respondeu Carlinhos, nervoso.
— À tarde. De manhã tenho aula. Pode ser depois das duas. — Olhando para o irmão, Marcos continuou: — Não seja teimoso. Está se precipitando. Pelo menos ouça o que ele tem a dizer.
— Não quero. Ele nos deixou e nunca perguntou o que nós pensávamos. Agora é tarde. Ele que volte para onde estava.
Clara olhou para os dois e disse simplesmente:
— Façam como quiserem. Vou marcar para amanhã às duas da tarde. Você, Carlinhos, tem até lá para pensar.
Na tarde seguinte, quando o carro chegou, Marcos foi sozinho. Carlinhos continuou se recusando a ver o pai. No trajeto, Marcos sentia-se inquieto, emocionado.
Recordava-se da última vez que vira o pai e sentia voltar a angústia daquele dia. Suas palavras ainda estavam ecoando em sua memória:
“Aconteceram algumas coisas que me forçam a ir embora de casa. Quero que sejam sempre bons meninos e obedeçam à sua mãe.”
Só ficou sabendo o motivo da partida do pai quando sua avó Neusa foi até lá e brigou com sua mãe. Escondido em um canto da sala, ouviu tudo quanto ela dissera e chorou muito.
Sua mãe amava outro, por isso seu pai partira. Naquela hora teve certeza de que ele nunca mais voltaria. O medo de que ela tentasse dar-lhe outro pai incomodou-o durante muito
tempo.
Se ela resolvesse ficar com Válter, ele fugiria de casa. Ele havia sido o culpado de tudo.
Sua mãe era casada e ele não tinha o direito de conquistá-la.
Por isso, sempre que Válter telefonava ou procurava Clara, Marcos ficava nervoso, irritado, escondia-se procurando ouvir o que conversavam. Várias vezes desabafara com Rita, que o tranqüilizava dizendo que sua mãe não pensava em casar com Válter.
Agora, depois de tantos anos, ele se perguntava o que havia acontecido de verdade. Se Clara amasse Válter de fato, teria feito o possível para viver com ele. Sabia que ele estava
muito apaixonado mas ela o recusara. Então por que se envolvera?
Lembrava-se de que certa vez Neusa o procurara na saída da escola. Depois de pedir o endereço de Osvaldo com insistência e ele responder que não sabia, ela continuou:
— E vocês, como estão vivendo? Válter dá dinheiro para sua mãe?
Irritado, Marcos respondera:
— Minha mãe está trabalhando e ganha o suficiente para nos sustentar. Não precisa do dinheiro de ninguém.
— Vou entrar na justiça e pedir a guarda de vocês. Quero que venham morar comigo.
— Não faça isso, vó. Nunca vou abandonar minha mãe.
— Ela não merece. Seu pai sempre foi um bom marido e ela o traiu.Arranjou um amante.
Você não pode querer viver ao lado dela depois do que ela fez.
— Isso não é verdade! A senhora nunca gostou de minha mãe. Ela é muito boa. Não quero
que fale mal dela...
Naquele instante Rita aproximou-se, abraçando-o. Olhando para Neusa, disse com voz firme:
— O que disse a ele? Deixe o menino em paz.
— Eu só disse a verdade. Quero que eles venham morar comigo. Clara não tem moral para
cuidar deles.
Marcos soluçava abraçado a Rita, que respondeu irritada:
— Como se atreve a dizer uma coisa dessas a uma criança? Não tem vergonha de fazer mal a seu próprio neto? Vamos embora, Marcos, sua avó não está bem da cabeça.
Antes que ela tivesse tempo de responder, Rita puxou Marcos pela mão e foram embora.
No caminho, Rita disse-lhe que Neusa falava aquilo porque não gostava de Clara, só por implicância. Ao que Marcos respondera:
— Meu pai foi embora porque minha mãe estava namorando Válter.
Chocada, Rita disse:
— Ele é um conquistador barato que se aproveitou da ingenuidade de sua mãe e a envolveu. Ela nunca amou Válter. Se isso fosse verdade, depois que seu pai foi embora ela
teria se casado com ele. Após esse dia Marcos passou a ficar dentro da escola esperando Rita chegar para sair. Não queria mais ver a avó.
O carro parou na entrada da casa e Marcos desceu com o coração aos saltos. José abriu a porta e, vendo-o, não se conteve:
— Você deve ser Marcos! Meu Deus, como está bonito! Entre. Seu pai o espera na sala.
Sentindo as pernas bambas, Marcos acompanhou José até a sala. Osvaldo levantou-se imediatamente e abraçou-o emocionado.
— Meu filho! Finalmente posso abraçá-lo! Que saudade!
Marcos não encontrou palavras para responder. As lágrimas desceram pelas faces e os soluços brotaram no peito, fazendo transbordarem as emoções tantos anos contidas.
Osvaldo deixou que as lágrimas lavassem o rosto e continuou apertando o filho nos braços.
Aos poucos ambos se acalmaram e por fim Osvaldo disse com voz trêmula:
— Venha, Marcos. Vamos conversar.
— Por que nos deixou sem notícias? Por que nos abandonou?
— Tem razão por estar sentido comigo. Reconheço ter sido egoísta e haver pensado apenas em mim. Mas confesso que não tive coragem de voltar. Eu estava muito descontrolado.
Queria desaparecer do mundo. Mesmo agora, depois de tantos anos, é difícil falar sobre isso Reconheço que fui fraco, deveria ter ficado, enfrentado. Mas não pude. Gostaria que entendesse isso.
— Você pensou que mamãe estivesse amando Outro. Mas não era verdade.
— Não falemos disso agora.
— Eu preciso falar pai. Minha mãe pode ter sido ingênua, ter se envolvido, mas ela não
amava Válter. Durante muito tempo ele a perseguiu, mas ela nunca quis nada. Neste tempo
todo só pensou em trabalhar para nos sustentar.
— Não voltei para cobrar nada de ninguém Eu assumo minha fraqueza deixando-os sem recursos para se manter. Porém eu não tinha nada para oferecer. Ganhava bem, mas era um empregado. Quando deixei o emprego, fiquei sem recursos.
— Como viveu estes anos todos?
Osvaldo estendeu as mãos calosas, dizendo com simplicidade:
— Como um lavrador. Apesar de tudo, quero dizer que gosto muito de vocês. Senti muita saudade. Várias vezes pensei em voltar para vê-los. Tia Ester mantinha-me informado de
tudo que se referia a vocês.
Marcos fitou-o com os olhos úmidos. Por alguns segundos não conseguiu responder. Seu pai não os esquecera, como havia pensado. Não os havia abandonado.
Vendo-o em silêncio, Osvaldo continuou:
— Durante estes anos, tia Ester foi minha confidente e amiga.
— Minha mãe disse que vocês, apesar de viverem na mesma casa, nunca foram íntimos.
— É verdade. Ela era muito reservada, e eu, tímido. Porém, depois que o tio morreu, passamos a nos escrever e pudemos nos conhecer melhor. Tia Ester era uma mulher maravilhosa.
— Nunca nos visitou. Rita é que sempre conversava com ela ao telefone. Mamãe não ficava sabendo.
— Depois que fui embora, tia Ester telefonou para sua mãe. Queria conversar com ela, oferecer apoio, mas Rita informou-a que Clara não desejava receber ninguém. Então tia
Ester disse que, se um dia Clara mudasse de idéia, ela teria prazer em recebê-la. Como ela nunca a procurou, tia Ester manteve-se afastada. Entretanto, nunca deixou de se interessar por vocês e sempre me mandava notícias.
— Não sabia que Dona Ester havia nos procurado. Mamãe sempre nos dizia que ela era uma mulher muito rica e muito orgulhosa.
— Ela era reservada. Orgulhosa, não. Respeitava as pessoas e procurava não se intrometer na vida de ninguém. Mas era mulher sensível, amorosa, digna.
— Você a admira.
—Muito. Eu aprendi a estimá-la de verdade.
— Vovó Neusa é muito diferente dela.
— Eu sei. Ela deve ter dado trabalho a vocês. E sempre muito inquieta, quer fazer as coisas do seu jeito. Carlinhos não quis vir. Deve estar magoado comigo.
— É. Ele era muito apegado a você. Depois que você foi embora ele deu trabalho. Chorava muito, perguntava quando você voltaria. Não dormia direito. Dormia na cama da mamãe,
abraçado a ela. Com o tempo foi esquecendo, não falou mais. Quando soube da sua volta, ficou revoltado.
Foi a vez de Osvaldo ficar calado. A emoção embargou sua voz. Cabeça baixa, esforçou-se para controlar-se. Percebendo como ele se sentia, Marcos levantou-se e colocando as mãos nos ombros dele disse com suavidade:
— Ele ainda está sofrendo. Mas isso vai passar.
Osvaldo abraçou o filho, apertando-o de encontro ao peito.
— Obrigado, meu filho. Sempre amei muito vocês. Estou certo de que um dia ele entenderá isso.
— Ele perguntou se você iria voltar para casa. Quando mamãe respondeu que não, ele se zangou.
Osvaldo puxou Marcos para o sofá e sentou-se ao lado dele.
— Ninguém mais do que eu gostaria que tudo tivesse sido diferente, que nada houvesse acontecido. Mas não foi assim. Apesar de tudo, reconheço que aprendi muito, amadureci.
Conheci pessoas simples, bondosas, iluminadas, que me ensinaram a enxergar a vida com outros olhos.
— Você se casou de novo?
—Não. Estou me referindo aos amigos com os quais tenho vivi do desde que saí de casa.
Com eles aprendi que fugir não adianta nada, uma vez que a dor, a saudade, a infelicidade está dentro de nós e no acompanha em todo lugar. Quando precisei voltar, minha primeira reação foi de não vir, de continuar vivendo no campo, como até agora mas entendi que a
vida quer que eu aprenda a ser forte e corajoso, que essa é a única maneira de resolver os problemas que nos angustiam nos ferem o coração. Por isso estou aqui.
— Não é o que mamãe pensa. Eu a ouvi dizendo a Rita que você nunca mais voltaria.
Talvez tivesse se casado e formado outra família.
— Isso nunca passou pela minha cabeça.
Marcos calou-se por alguns segundos, depois disse:
— Você tem muita raiva de minha mãe?
Apanhado de surpresa, Osvaldo pensou um pouco antes de responder. Depois olhou para Marcos nos olhos e falou sério:
— Muitas vezes me perguntei por que ela deixou de me amar, por que me trocou por outro.
Reconheço que sentia frustração, impotência, raiva. Mas a vida me ensinou que qualquer julgamento é errado, uma vez que nossa visão é enganadora e não estamos dentro da pessoa para saber o que ela sente. Passei muito tempo deprimido, magoa do, sem vontade de viver,
mas a sabedoria e a fé de um homem simples e bom fez-me entender quanto estava errado.
— Como assim?
— O amor é um sentimento espontâneo, aparece independentemente da nossa vontade e, quando acaba, não há nada a fazer. Eu não tinha o direito de exigir o que sua mãe não tinha mais para dar. Ela deixou de me amar, apaixonou-se por outro. Lamento que não tenha tido
coragem para me contar. Embora sofrendo, eu teria deixado o caminho livre. A traição deixou-me inconformado durante muito tempo. Hoje, porém, percebendo o quanto fui
fraco, fugindo sem coragem de enfrentar a verdade, reconheço que não tenho o direito de exigir dela um comportamento que eu mesmo não consigo ter.
Marcos abriu a boca e fechou-a de novo sem encontrar palavras para responder. A postura do pai, sua generosidade emocionaram- no muito. Osvaldo notou e, procurando dar um tom
natural à voz, considerou:
— Chega de falar do passado. Quero saber tudo sobre você: o que tem feito, quais seus planos para o futuro.
— Você pretende ficar na cidade?
— Sim. Tia Ester manteve os negócios do tio e colocou tudo em minhas mãos. Estou assumindo o comando Soube que você está na faculdade.
— Estou fazendo Letras. Gosto de escrever.
— Tia Ester contou-me que você escrevia para o jornal do colégio desde os dez anos.
— É verdade. Desejo ser escritor. Mamãe gostaria que eu escolhesse outra carreira porque essa não dá futuro em nosso país. Pode ser que tenha razão, mas eu já decidi. Prefiro ser pobre e fazer o que me dá prazer a ganhar dinheiro em uma profissão de que não gosto.
— Você está certo. A vocação é fundamental para fazer um bom trabalho. Foi bom tocar nesse assunto, porque agora tudo mudou. Estamos ricos. Você não precisa se preocupar
com o futuro. Por isso pretendo ficar aqui, assumir os bens que tia Ester me deixou.
Osvaldo fez ligeira pausa, hesitou um pouco e depois disse:
— Fale-me de Carlinhos. Como ele é?
— Seu temperamento é alegre, brincalhão. Vive agarrado a um violão que carrega aonde vai, gosta de cantar e contar piadas.
— Não fazia essa idéia dele. Já escolheu uma carreira?
— Ainda não. Mamãe tem conversado com ele, tentando orientá-lo. Mas ele não leva nada a sério.
Os dois continuaram conversando e aos poucos Marcos sentia-se alegre e muito à vontade.
Osvaldo contou-lhe que havia aberto uma conta bancária em seu nome e depositado boa soma em dinheiro. Todo o mês lhe daria uma mesada para as despesas. Pediu-lhe que
assinasse os papéis do banco e logo receberia os talões de cheque
— Carlinhos ainda não pode abrir conta em banco. Mas todos os meses meu procurador irá
à sua casa entregar-lhe o dinheiro
—Diga-lhe isso. -
— Ele vai relutar em aceitar. É muito teimoso.
— Mandarei mesmo assim. Gostaria de falar com ele, contar o que me aconteceu depois que os deixei, explicar por que não dei notícia Quero pedir-lhe que compreenda e me perdoe. Sou apenas um homem Se possuo algumas qualidades, tenho ainda muitos pontos fracos. Ma todo este tempo, jamais os esqueci. Peça-lhe que venha me ver. Faça melhor: traga-o aqui.
— Farei o possível para que ele compreenda.
Passava das dez da noite quando o carro de Osvaldo deixou Marcos em casa. Clara chegara do trabalho nervosa, preocupada. Sabendo que Marcos estava com o pai, ela não conseguiu trabalhar direito A tarde custou a passar.
Domênico notou sua inquietação e tentou conversar:
— O que está acontecendo Clara?
— Marcos foi encontrar-se com o pai. Liguei para casa e até agora ainda não voltou.
— É natural. Depois de tantos anos, têm muito que conversar.
— É isso que me preocupa. Deve estar com raiva de mim. Certamente vai voltar ao passado, dar sua versão dos fatos. O que Marcos vai pensar?
— Não dramatize, Clara. Você não sabe o que está acontecendo de verdade. Se ele ama o filho, não vai lhe dizer nada que possa causar-lhe mal. Você me disse que Osvaldo era um homem bom, educado, muito diferente da megera de sua sogra.
— É. Ele era. Mas depois do que fiz pode ter mudado.
—O que a está incomodando é a antiga culpa que nunca a deixou estes anos todos. Quando
vai perceber que o passado morreu? Você hoje é uma mulher digna que vive do seu
trabalho e não tem nada de que se envergonhar.
— É, tem razão. Mas Osvaldo pode não pensar assim.
— Deixe de fantasiar. Vou mandar fazer um chá que vai acalmá-la. Em sua cabeça acho que já imaginou a conversa dos dois, falando o pior. Quando vai aprender a não se
atormentar com o que ainda não aconteceu? Calma. Tem de primeiro saber a verdade para depois decidir como agir.
— Você está certo. Vou tentar esquecer este assunto.
—Mas, apesar de tentar, não conseguiu. Cada vez que o telefone tocava, ela sentia o coração bater descompassado, imaginando que seria Marcos. Ao chegar em casa as oito e saber que ele ainda não havia voltado, ela não conseguiu dominar o medo:
— Como, Rita, Marcos ainda não voltou? Vai ver que ele vai tentar me tirar os filhos. Acho que é isso que ele quer. Esperou que crescessem e agora apareceu para roubá-los de mim.
—Ainda bem que Carlos não quis ir. Eu não devia ter deixado Marcos comparecer a esse encontro.
— Calma, Clara. Osvaldo não fará nada disso. Depois de tantos anos, é natural que eles conversem, matem a saudade.
— Ele bem que podia ter ficado lá onde viveu todos estes anos. Por que voltou? Por quê? Onde está Carlinhos?
— No quarto. Disse que tinha de estudar para a prova de amanhã. Ele não quis ir ver o pai, mas ficou triste o dia inteiro. Nem tocou no violão. Adalberto veio chamá-lo para ir ao
clube, mas ele não quis ir.
— Nossa vida estava calma, tudo em seu lugar, e agora virou de pernas para o ar. Tenho vontade de ir falar novamente com aquele advogado e pedir-lhe que deixe meus filhos em
paz.
— Você está com medo de dividir o amor de seus filhos com Osvaldo. Mas ele é o pai.
Tem todo o direito de estar com eles.
— Eu sei, Rita. E isso que me assusta. Ele tem direito e eu não vou poder fazer nada.
— É melhor aceitar, deixar as coisas correrem normalmente. Não há razão para se preocupar. Ele não quis lhe tirar os filhos naquele tempo, não vai fazer isso agora. Depois, deve saber que você tem lutado, trabalhado, mantido seus filhos com dignidade. Não há razão para que ele faça uma coisa dessas.
— É. Acho que tem razão. Vou tomar um banho, me acalmar.
Quando Marcos entrou em casa, foi direto para o quarto falar com Carlinhos. Clara, que estava em seus aposentos, foi ter com eles.
Carlinhos estava deitado e, vendo o irmão abrir a porta, fechou os olhos. Marcos acendeu a luz, dizendo:
— Sei que está acordado e louco para saber tudo.
— Apague a luz. Quero dormir. Amanhã tenho prova logo cedo.
Clara entrou dizendo:
— Puxa, Marcos, você demorou. Por que não me ligou?
— Nós ficamos conversando, o tempo foi passando. Jantamos e quando dei por mim passava das nove e meia.
— Você sabe que não gosto que ande pelas ruas à noite.
— Papai mandou o carro me trazer.
Marcos ficou calado por alguns segundos e notou que, apesar de disfarçarem, tanto a mãe quanto o irmão esperavam que ele contasse tudo. Depois continuou:
— Nosso encontro foi muito bom. Ele não nos abandonou. Recebia notícias nossas por tia Ester. Ela lhe escrevia regularmente.
— Ele diz isso, mas nunca nos procurou. Não acredito em nada que ele diz agora — tornou Carlinhos com raiva.
— Você está enganado. Ele não voltou porque estava muito triste com a separação. Não teve coragem. Pediu perdão por isso.
—O que mais ele contou? — indagou Clara.
— Bem... Ele disse que não pensava em voltar nunca mais. Porém quando tia Ester morreu e deixou-lhe a herança, ele sentiu que precisava assumir esses bens. Fez isso pensando em nós, em nosso futuro.
—Nós vivemos sem ele todos estes anos e podemos viver o resto de nossas vidas. Não precisamos dele. Mamãe sempre foi autosusiciente para nos sustentar. Depois, logo
estaremos trabalhando e cuidando das despesas. Ele que volte para o lugar onde viveu este tempo todo
— Você está sendo injusto, Carlinhos. Papai nunca nos esqueceu. Preocupa-se com nossa
felicidade. Agora que está rico, deseja nos proporcionar uma vida melhor.
— Não quero nada dele.
— Pois ele abriu uma conta no banco em meu nome e vai nos dar todos os meses uma mesada.
— O que ele quer é comprar nossa amizade. Pois comigo não funciona. Não vou aceitar nada dele.
— Apesar disso, ele vai mandar o dinheiro para cá todos os meses.
— Carlinhos tem razão. Não precisamos do dinheiro dele. Amanhã mesmo falarei com o advogado dele sobre isso. Não queremos nada.
— Pois eu aceitei — retrucou Marcos com voz firme. — Sinto que papai nos ama, sempre nos amou e se preocupa com nosso bem-estar. Gosto dele. Sempre foi um pai carinhoso e
um homem de bem. Se foi embora, teve seus motivos. Não devemos julgar. Cada um tem seus pontos fracos. Ele não teve forças para voltar depois do que aconteceu. Agora deseja
compensar sua ausência, mostrar que sempre nos amou. Não vejo por que recusar. Eu vi suas lágrimas quando me abraçou, senti sua emoção ao falar de você, Carlinhos. Este encontro me fez muito bem. Reencontrei um pai que havia perdido e um homem muito generoso que me inspirou respeito e admiração.
Os olhos de Marcos brilhavam emotivos e Clara sentiu um aperto no coração. O que teriam conversado?
Depois de alguns instantes de silêncio, Clara tornou:
— De fato, seu pai sempre foi um homem bom.
Clara teve vontade de perguntar se ele havia comentado sobre ela, mas não teve coragem.
Marcos percebeu o que ela queria saber, mas não disse nada. Era-lhe difícil mencionar o deslize de sua mãe que ocasionara aquela separação. Por isso disse apenas:
— Agora vou me deitar. Ele me pediu que o convencesse, Carlinhos, a ir visitá-lo. Quis saber como você era, do que gostava, tudo.
Poderemos ir amanhã à tarde.
— Eu não vou. Não quero ir.
— Vai se arrepender. Está sendo injusto.
— Cuide de sua vida e eu cuidarei da minha. Agora apague essa luz. Quero dormir.
Marcos e Clara apagaram a luz e saíram. Carlinhos remexeu-se na cama, pensando com raiva:
“Ele não me ama! Se me amasse não teria me abandonado. Não vou perdoar. Não vou!”
As lágrimas desciam-lhe pelas faces e ele as enxugou com a ponta do lençol, dizendo rancoroso:
— Ele vai ver. Tem de sofrer muito para pagar o que me fez.
Clara acompanhou Marcos até a porta do quarto:
— Filho — disse por fim —, seu pai falou alguma coisa sobre o passado?
— Eu é que perguntei se ele ainda sentia muita raiva de você.
Clara levou a mão aos lábios para abafar uma exclamação assustada:
— Você não devia ter perguntado isso.
— Eu quis saber. Ele disse que muitas vezes se perguntou por que você tinha deixado de amá-lo.
Sentiu raiva, frustração, mas depois reconheceu que quando o amor acaba não se pode fazer nada. Disse que aprendeu com a vida que não podia julgar você, porque sua visão era
enganadora. Ele não estava dentro do seu coração para saber o que você sentia. Fiquei emocionado, mãe. Meu pai é um homem de sentimentos nobres. Por isso não quero que
falem mal dele.
Clara sentiu que as lágrimas estavam prestes a cair e disse emocionada:
— Você está certo. Seu pai sempre foi um homem nobre e bom. A única culpada fui eu. Ele não merecia o que fiz.
Marcos abraçou-a com carinho:
— Eu penso como ele, mãe. Você se envolveu, não pensou no que poderia acontecer. Mas o passado passou. Você era muito jovem. Não deve se culpar. Nós a amamos muito e a
respeitamos pelo que é e sempre foi. Tenho orgulho de ser seu filho. Sempre a amarei. Pode ter certeza disso.
Clara, abraçada ao filho, deixou que as lágrimas lavassem o rosto e aliviasse sua culpa do passado. Quando parou de chorar, sentiu se mais calma.
— Obrigada, meu filho. Eu também o amo muito.
Beijou-o com carinho e foi para o quarto. Deitou-se e finalmente conseguiu adormecer.

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