Capítulo 6

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Clara olhou desanimada para o jornal que acabara de folhear. Como vinha fazendo nas últimas semanas, recortou todos os anúncios que lhe pareceram de algum interesse e
preparou um roteiro para o dia seguinte.
Depois, colocou-os em um envelope e guardou-os na bolsa. Estava cansada. Mesmo economizando, o que faria quando o dinheiro acabasse?
Fazia três meses que Osvaldo havia desaparecido. Nem uma notícia, nada. Aonde teria ido?
A princípio pensara na hipótese de ele haver sofrido algum acidente e estar recolhido num hospital, mas, se isso houvesse acontecido, certamente sua família teria sido avisada.
Mesmo que ele não quisesse lhe dar notícias, pelo menos procuraria a mãe ou os irmãos.
Mas a insistência de sua sogra ao telefone indagando por notícias do filho mostrava que eles também não sabiam onde Osvaldo estava.
Apesar da culpa que sentia, momentos havia em que tinha raiva dele por deixar as crianças naquela situação de penúria. Mesmo que a odiasse e não quisesse ajudá-la, pelo menos deveria preocupar-se com o bem-estar dos filhos.
Mas não. Ele nunca mais deu notícias. Todos os dias Clara levantava-se cedo e saía de casa carregando o envelope de anúncios na bolsa. Procurava um emprego com salário que pelo
menos desse para manutenção das mínimas despesas da casa. Logo percebeu que isso não
seria possível. Esses empregos faziam exigências que ela não tinha como satisfazer.
À medida que os dias iam passando, ela ia se conformando em procurar salários menores, mas ainda assim não conseguia ser admitida. Precisava ter prática, referências, o que ela
não tinha.
Insistiu em conversar com Válter, que concordou em marcar um encontro. Compareceu
com ar preocupado, receoso de estar sendo seguido, o que fez Clara dizer:
— Não se preocupe. Osvaldo sumiu e ninguém está interessado em nos seguir.
— Não sei. Para mim ele está escondido em algum lugar só esperando darmos uma brecha
para cair em cima de nós. Não me leve a mal, mas no momento acho que precisamos dar
um tempo em nosso caso.
— Eu o procurei não foi para reatarmos nada. Se quer saber, estou muito arrependida por
ter traído meu marido. Não o estou culpando de nada. Eu é que deveria ter resistido à
tentação.
—Ainda bem que compreende. Tenho enfrentado situações desagradáveis na empresa, com
meus pais e a família de Antônio. Acho que erramos e o melhor que temos a fazer agora é
não nos ver mos mais.
— Estou em situação difícil. Meu dinheiro acabou e ainda não consegui arranjar um
emprego. Estou desesperada, não sei o que fazer. Pensei que talvez você pudesse
aconselhar-me. Conhece tanta gente, poderia falar com algum amigo e arranjar-me um
emprego.
— De forma alguma. Não posso misturar as coisas. O escândalo foi grande, e se eu pedir
um emprego para você eles pensarão que continuamos a nos ver. Para dizer a verdade,
quero esquecer esse pedaço de minha vida.
Os olhos dela brilharam estranhamente quando ela disse:
— Quer dizer que não vai me ajudar?
— Olha, vou dar-lhe um cheque. E o que posso fazer por ora. Minhas finanças também não
estão bem. Sabe como é: o reflexo do escândalo prejudicou-me nos negócios.
Vivo rubor subiu nas faces de Clara. Não respondeu. Quando ele preencheu o cheque e o
entregou, ela sentiu vontade de rasgá-lo e atirar os pedaços na cara dele. Conteve-se. Na
situação em que se encontrava, não podia dar-se ao luxo de ser orgulhosa.
Rapidamente o apanhou e guardou na bolsa. Disse simplesmente:
— Percebo que, para você, nossa relação não passou de uma aventura. Pensa que com este
cheque vai apagar sua responsabilidade. Aceito. Estou me sentindo como uma prostituta,
que deve ser a forma como você me vê.
Ele fez um gesto de surpresa. Reagiu:
— Dei-lhe dinheiro para suavizar sua situação. Nunca pensei em pagar pelos momentos de
amor que vivemos juntos.
— Seja como for, muito obrigada. Pode ter certeza de que nunca mais o incomodarei.
— O que é isso? Não leve as coisas por esse lado. Tenho certeza de que vai arranjar
emprego e tocar sua vida. Depois, quem sabe seu marido aparece e acaba perdoando.
Afinal, ele deve amar as crianças.
— Não precisa justificar-se. Se arrependimento matasse, eu estaria morta. Mas agora é
tarde. Não tenho outro remédio senão levar minha vida para frente.
Despediram-se com frieza e Clara intimamente jurou nunca mais o ver, O dinheiro que
Válter lhe dera permitiria o sustento da família durante mais um mês. E depois?
Em casa, apanhou os sapatos e engraxou-os, tentando melhorar sua aparência. Estavam
velhos, mas ela não podia comprar outros. Quem daria emprego a uma pessoa mal
arrumada?
Rita apareceu na porta do quarto, dizendo:
— A senhora não comeu nada no jantar. Não pode continuar sem comer. Está
emagrecendo. Se ficar doente, o que será das crianças? Elas agora só têm a senhora. Venha,
tome pelo menos uma xícara de café com leite, como uma fatia daquele pão doce que eu
trouxe esta tarde. Está tão gostoso! As crianças adoraram.
— Estou sem fome, mas você tem razão: preciso alimentar-me.
Rita sorriu satisfeita e, notando o abatimento de Clara, tentou animá-la:
— Ainda bem que sabe disso. Esta situação é temporária. Logo encontrará trabalho e tudo
estará bem. Não pode desanimar.
— Estou cansada, Rita. Tenho procurado e nada. Infelizmente não tenho formação
suficiente para obter um bom emprego.
— Nesse caso, o melhor será procurar fazer alguma coisa por conta própria.
Clara sentou-se à mesa e serviu-se de café com leite, adoçando- o pensativa.
— Não tenho dinheiro para abrir um negócio. Mesmo que tivesse, não sei o que faria.
— Minha mãe sempre falava que o melhor negócio é fazer comida. As pessoas podem
deixar de comprar uma roupa, um objeto de uso, mas nunca vão deixar de comer.
— Se eu pudesse abrir um restaurante ou pensão, talvez desse certo. Mas como arranjar
dinheiro para tanto? Depois, sei cozinhar o trivial mas nunca nada que as pessoas se
interessassem em comprar. Não isso não daria certo.
— Tudo dá certo quando acreditamos e nos empenhamos. Existem muitos cursos de doces,
salgados, de coisas para festas. Logo a senhora, que tem tanto bom gosto! Não sei, não, mas
penso que se fizesse isso ganharia muito dinheiro.
Clara sorriu e respondeu:
— Isso é você, que gosta de mim e acha que eu poderia ser bem- sucedida nisso. Amanhã
tenho alguns lugares para visitar, talvez consiga alguma coisa. Vamos ver.
— O que não pode é desanimar. A senhora tem estado triste, e isso não resolve nada. Ao
contrário: só atrapalha.
— Sei que tem razão, mas não me conformo com o que aconteceu. Estou arrependida, mas
agora é tarde. Se pudesse voltar atrás, não faria o que fiz.
— A gente só dá valor ao que tem quando o perde. Mas, por outro lado, não adianta agora
ficar se culpando e se arrependendo. O que passou passou e não volta mais. A senhora tem
de tocar a vida para frente com alegria e coragem. Tudo isso vai passar e logo as coisas
estarão melhores, a senhora vai ver.
Clara colocou a mão no braço de Rita, dizendo com comoção:
— Você é o anjo bom que Deus colocou na minha vida para me ajudar nesta hora difícil
Não sei o que faria sem você.
— Eu é que não sei o que faria sem aqueles dois anjinhos que estão dormindo. Por eles
farei tudo que puder.
— Obrigada, Rita. Deus a abençoe.
— Por falar em Deus, Dona Clara, rezar faz bem, cura as feridas da alma
— Eu tentei, Rita, mas Deus não aceitou minhas preces e não quis me perdoar.
— Não diga isso! Deus é amor e sempre perdoa. Tenho certeza de que está ajudando a
senhora e logo tudo vai melhorar.
— Gostaria de ter sua fé. Mas não me sinto com coragem de voltar à igreja. Eles não me
aceitam lá.
— Eu também não vou a nenhuma igreja, mas converso com Deus todos os dias. Tenho
certeza de que ele me escuta. Não é preciso ir à igreja para encontrar Deus. Ele está em
todo lugar. Eu sinto que ele está dentro do meu coração e é lá que converso com ele. Sabe,
nesses momentos eu sinto um ar gostoso, como uma brisa delicada que me dá muita paz e
alegria. Eu sei que é Deus respondendo à minha oração, dizendo: “Fique em paz porque eu
estou aqui, protegendo-a”.
Clara suspirou fundo. Bem que ela gostaria de encontrar a paz. Disse com simplicidade:
— Gostaria de aprender a rezar como você e sentir paz.
— É fácil. Quando for deitar, preste atenção aos sentimentos do seu coração e tente jogar
fora toda tristeza, ressentimento, arrependi mento, desânimo. Depois, pense em alguma
coisa bonita, leve, agradável. Eu penso numa rosa aberta numa linda roseira. Ela me fala da
bondade de Deus e da beleza da vida. Depois eu começo a conversar com Deus, conto a ele
todos os meus segredos e peço-lhe que me esclareça, que me faça sentir qual é o caminho
melhor, e peço que esse caminho se abra à minha frente. Depois disso, agradeço a ajuda
que ele me dá e pronto. Faça isso, Dona Clara, e verá que sua vida logo começará a
melhorar.
A simplicidade de Rita comoveu-a. Ela era uma mulher de fé. Foi com respeito que Clara
respondeu:
— Vou tentar, Rita.
Ela sorriu alegre.
— Pode ter certeza, Dona Clara, que, quando não podemos fazer nada, Deus pode. Por isso,
fazemos nossa parte e pedimos a ele que faça a dele. Assim, o bem e a luz nos envolvem e
nossa vida melhora.
Clara sorriu e deu-lhe boa-noite. Uma vez no quarto, ficou pensando nas palavras que
ouvira.
“As pessoas simples conseguem levar a vida melhor do que aquelas que se acreditam mais
instruídas”, pensou. “Gostaria muito de ter a serenidade de Rita e poder olhar a vida sem
complicações.”
Preparou-se para dormir. Sentou-se na beira da cama. Fazia tempo que não rezava. Estava
revoltada com ela mesma pelo que fizera, e acreditava que Deus não ouviria suas preces.
Ela precisava ser castigada pelo seu erro.
Lembrou-se dos filhos. Eles não tinham culpa de nada. Seria jus to que eles pagassem pelo
crime que ela havia cometido? Não era justo, mas, de uma forma ou de outra, eles também
estavam sofrendo. Reconheceu que, ao entregar-se àquela paixão, nem se lembrara dos
filhos. Sentira-se dona de sua vida e mergulhara fundo na aventura. Entretanto, seus filhos
eram ainda pequenos e dependentes. Sentiam falta do pai, foram obrigados a viver em um
ambiente tenso, doloroso. Seu padrão de vida e de alegria havia baixado.
Querendo ou não, suas atitudes causaram sofrimento a várias pessoas, inclusive aquelas a
quem ela mais amava.
Tinha sido leviana, inconseqüente. Estava arrependida, mas isso não lhe devolvia a
tranqüilidade de antes.
O mal estava feito e não havia como retroceder.
Essa importância a deprimia, aumentando sua culpa. Mas, por outro lado, sentia que, se não
podia voltar à antiga situação nem contar com o apoio da família, precisava se dedicar aos
filhos fazendo o possível para devolver-lhes um pouco do que haviam perdido.
Pensou em Deus. Haveria perdão para ela? Ajoelhou-se ao lado da cama e pediu ajuda. As
lágrimas desciam-lhe pelas faces e ela sentiu a força do seu arrependimento pelo que
acontecera.
Desesperada, disse em voz alta:
— Meu Deus! Preciso da sua ajuda. Sei que errei muito, mas estou arrependida. Peço
perdão para meus pecados, mas eu mesma não consigo me perdoar. Entretanto, o senhor é
compaixão e bondade, tenha piedade de mim. Prometo que nunca mais me deixarei iludir.
De hoje em diante, vou cuidar apenas da felicidade dos meus filhos. Permita, senhor, que
eu possa compensar um pouco do mal que lhes fiz. Meu dinheiro acabou. Por favor, me
ajude a encontrar trabalho para que não lhes falte o sustento. Estou disposta a trabalhar o
mais que puder, no que aparecer. Obrigado por ter me ouvido.
Murmurou um pai-nosso e levantou-se. O desabafo fez-lhe bem.
Sentiu-se mais calma. Deitou-se e, como o sono demorou para aparecer, tentou imaginar o
que poderia fazer para ganhar dinheiro. Nenhuma idéia boa lhe ocorreu.
Finalmente sentiu sono. Ajeitou-se, respirou fundo e pensou:
— Rita está certa. Não posso desanimar. Deus vai ouvir minhas preces. Amanhã é outro
dia.
Acordou e olhou no relógio. Eram sete horas. Levantou-se sentindo o cheiro gostoso de
café que vinha da cozinha. Rita já havia se levantado.
Lavou-se e foi se vestindo enquanto descia para o café. As crianças ainda dormiam. Rita
estava na despensa sentada no chão em meio à montanha de jornais e revistas.
— Você se levantou cedo hoje Esta fazendo faxina da despensa — É. Tive uma idéia, e, se
a senhora concordar, poderemos conseguir algum dinheiro.
—O que é?
Vender estas revistas e jornais velhos. Eles pagam um cruzeiro o quilo.
—Tem certeza?
—Tenho. Posso vender?
— Claro.
— Sem falar que abrimos espaço na despensa para guardar mais alimento.
— É, mas o dinheiro que vão pagar por isso não vai dar para comprar muita coisa. Temos
espaço de sobra.
— Sabe, minha avó costumava me ensinar que a vida não gosta de ver espaços vazios em
casa. Ela trata logo de mandar coisas para ocupá-los.
— Não estou entendendo aonde quer chegar.
— Nós costumamos guardar muitas coisas inúteis de que não precisamos nem nunca mais
vamos utilizar. Elas ocupam muito espaço e ficam paradas atravancando a casa. Nossa vida
emperra e não prospera. Por isso, de tempos em tempos precisamos reavaliar tudo, jogar
fora o que não serve e dar para os outros o que não serve mais para nós mas que ainda pode
ser utilizado. Fazendo isso, movimentamos os bens e os recursos, e nossa vida prospera.
— Tem lógica... Mas isso funciona?
— Claro. Minha avó não era rica, mas nunca lhe faltou nada.
— Muito bem. Ela deveria ser sábia como você.
Rita riu satisfeita e continuou acertando a pilha de jornais. Clara ficou pensativa. Em outros
tempos não se preocupava com dinheiro. Osvaldo ganhava bem, era generoso, gostava de
conforto e de ver a família bem.
Lembrou que seu guarda-roupa estava atulhado de coisas que ela guardara e não usara
mais: vestidos que saíram de moda, lembranças de momentos especiais, sapatos bonitos
mas que lhe apertavam os pés e por isso estavam encostados.
Havia também alguns presentes que ela ganhara e estavam sem uso, guardados, uns porque
não combinavam com o estilo da casa, outros porque ela não gostara.
Terminou o café e comentou:
— Rita, preciso fazer isso nos armários da casa. Tenho muitas coisas de que posso me
desfazer.
— É uma boa idéia. Posso tirar tudo de dentro, mas a senhora tende estar junto para decidir
o que vamos mandar embora.
— Vou sair agora e ver se arrumo algum emprego. Recortei vários anúncios. Quando eu
voltar, veremos.
Foi a três lugares e não conseguiu nada. Abriu o envelope e tirou um dos recortes. Era de
um ateliê de alta-costura na rua Barão de Itapetininga. Ela não tinha muito jeito para
costura, mas ali dizia que precisavam de uma recepcionista.

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