Capítulo 19

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— Você vai fazer o que eu mandar, senão acabo com você aqui mesmo. Estou decidido. Se não quer ser minha, não será de mais ninguém.
Clara parou estarrecida. Nesse momento ela viu um homem aparecer atrás de Válter. O homem encostou um revólver em suas costas e disse com voz firme:
— Largue essa arma ou eu atiro.
Apanhado de surpresa, Válter estremeceu. O homem insistiu:
— Largue ou eu atiro. Juro que não estou brincando. Ponha a arma no chão e levante as mãos.
Lentamente Válter obedeceu. O homem aproximou-se apalpando o corpo de Válter para ver se havia outra arma. Não encontrou nada.
Clara olhava calada, pálida.
— Não se assuste, Dona Clara. Sou da polícia. A senhora vai ter de me acompanhar até a delegacia.
— O senhor chegou em boa hora. Mas prefiro ir para casa. Estou no limite das minhas forças.
— Lamento, mas, se a senhora não formalizar a queixa, não poderei detê-lo.
Clara suspirou resignada:
—Está bem.
— E uma formalidade necessária. Prometo que vou liberá-la o mais rápido possível. A senhora quer ir no meu carro conosco?
— Obrigada, mas eu o acompanharei com o meu.
— Está calma o bastante para dirigir? Está trêmula.
— Estou bem agora.
Na delegacia, o detetive, depois de pedir ao delegado que prendesse Válter, foi ter com Clara, que o esperava.
— Agora podemos conversar. Meu nome é Durval Menezes, sou detetive particular.
— É um prazer conhecê-lo. Se você não tivesse aparecido, nem sei o que poderia ter acontecido. Nunca pensei que Válter pudesse chegar a tanto.
— Ele está desequilibrado. Eu temia o que aconteceu hoje.
Clara não conteve a curiosidade:
—Não estou entendendo. Do jeito que está falando, parece que já o conhecia. Depois, chegou me chamando pelo nome. Tenho certeza de que não nos conhecemos.
— Fui contratado pelo Sr. Osvaldo de Oliveira para protegê-la e a seus filhos. Ele estava muito preocupado com a segurança da família.
Clara abriu a boca e fechou-a novamente. Não sabia o que dizer. Por fim indagou:
— Faz tempo que o senhor trabalha para ele?
— Quase um mês. Durante esse tempo, eu e meu sócio temos acompanhado Válter. O Sr. Osvaldo desejava saber se ele oferecia algum tipo de perigo. Acabamos entendendo que
sim, uma vez que observamos que ele estava ficando pior a cada dia.
—Vocês trabalharam muito discretamente. Nunca notei nada. Mas foi bom você estar ali naquela hora.
Ele sorriu satisfeito e respondeu:
— Era preciso vir à delegacia e dar a queixa. Assim, ele ficará de tido algum tempo.
Poderemos avaliar melhor os riscos.
— Ele estava com muita raiva, nos ameaçou.
— É natural. Mas ele será alertado. Agressão a mão armada é grave. Foi preso em flagrante, o que nos possibilitará conseguir uma prisão preventiva.
Clara suspirou triste:
— Não sei o que fazer. Ele ficará preso durante algum tempo, mas quando sair vai continuar me perseguindo. Parece loucura. Ele havia desistido, mas ultimamente voltou pior.
— Por isso a senhora vai formalizar a queixa, contando a perseguição que tem sofrido. Isso poderá intimidá-lo.
— Espero que sim.
Uma hora depois, Clara foi para casa. Sentia-se triste, preocupada. Aquela situação estava tomando um rumo muito perigoso. Sentiu vontade de sumir, mudar-se com a família para
um lugar distante, sem deixar endereço, para que ele não pudesse encontrá-la.
Vendo-a entrar, Rita abraçou-a inquieta.
— Ainda bem que você chegou! Eu estava angustiada, aflita, com um pressentimento ruim
o dia todo.
— Realmente, por pouco não aconteceu uma tragédia.
— Você está pálida. Venha, sente-se aqui e conte-me tudo.
Clara contou em poucas palavras. Quando terminou, Rita não se conteve:
— Abençoado Osvaldo! Ele tornou providências, conforme me prometeu.
— Depois do que eu lhe fiz, não esperava isso dele.
— Eu, sim. Tinha certeza de que nos protegeria. Vamos à cozinha, vou preparar alguma coisa quente para você comer.
— Minha fome desapareceu. Sinto um bolo no estômago.
— Nada disso. Você vai tomar pelo menos uma sopa. Temos aquela de que você gosta.
— Não sei o que será de nós daqui para frente. Válter estava com muita raiva, não vai desistir. Estou desanimada.
— Nada disso. Além de Osvaldo, há a proteção divina, que nunca nos desampara. Somos pessoas boas, estamos fazendo nossa parte, por isso não devemos temer nada nem ninguém.
— Estou precisando do seu otimismo
— Acho melhor reagir. Você tem andado muito deprimida nos últimos tempos. Esse não é seu natural.
— Desde que Osvaldo voltou, não tenho estado bem. Preferia que ele continuasse lá onde esteve todos estes anos.
— Assim você não teria de pensar nele nem enfrentar o passado. Mas o que tenho aprendido é que não adianta fugir dos problemas. Eles aparecem para podermos encontrar soluções.
— Estou cansada, confusa. Não estou com cabeça para tomar decisões.
— Nesse caso, deixe o tempo correr. Mesmo assim, precisa fazer sua parte: reagir, olhar a vida pelo lado positivo. Ninguém pode ser feliz sem procurar alegria, bons pensamentos, luz.
— Dona Lídia sempre nos ensina isso. Vou tentar, mas há momentos em que a tristeza, o medo, a insegurança aparecem com força e não consigo sair.
Rita sorriu.
— Você tem estado muito dramática. Leva tudo muito a sério. Às vezes é bom brincar com os problemas, olhar o lado engraçado das coisas.
— O que aconteceu hoje não tem graça nenhuma.
— Tem, sim. Fico imaginando a cara de Válter quando viu o detetive aparecer com revólver e tudo.
— Nessa hora eu não tinha nenhum senso de humor. Não sabia quem ele era. Cheguei a pensar que fosse um assalto.
— Viu como olha tudo pelo lado pior? Ele a estava socorrendo.
— Agora eu sei.
— Sabe de uma coisa? Depois desse susto, Válter vai desaparecer por um bom tempo. Quanto tempo ele ficará detido?
— Não sei. Mas, agora que você falou nisso, me recordo que ele, de rubro que estava, ficou pálido, tremia. Nessa hora a paixão acabou depressa. Ele tentou negar, porém o detetive sabia de tudo.
— Pois eu queria mesmo ter visto a cara dele na delegacia.
— A cara de quem? — indagou Carlinhos.
As duas tentaram disfarçar:
— Não vimos você chegar — disse Clara, tentando sorrir.
— Eu estava no quarto e ouvi vocês conversando. Desci para comer alguma coisa.
— É isso que dá não jantar direito. Você come na rua e fica mal alimentado — reclamou Rita.
— Não adianta fugir do assunto. Ouvi muito bem quando falou “a cara dele na delegacia”.
Clara trocou um olhar com Rita e decidiu:
— Foi Válter. Ele ficou inconveniente e dei parte dele na polícia.
Carlos sentou-se, dizendo com animação:
— Até que enfim reagiu! Como foi?
Clara contou por alto o que havia acontecido. Carlos considerou:
— Papai disse que tomaria conta de nós. Tomou mesmo. Agora esse sujeito não terá coragem de voltar. Vou contar a Marcos.
Ele subiu apressado, e Clara tornou:
— Não sei se fiz bem em contar.
— Fez, sim. Os meninos estavam preocupados. Agora ficarão mais tranqüilos.
Elas ficaram silenciosas por alguns instantes. Foi Rita quem quebrou o silêncio:
— Você não acha que deveria falar com Osvaldo e agradecer?
Clara sobressaltou-se:
— Você está louca?
— Seria o mais acertado.
— Nada disso. Depois de tudo que tenho passado, ainda ter de ouvir as acusações dele? Já basta a culpa que me atormenta.
— Você se atormenta sem necessidade. Ele não está lhe cobrando nada. Ao contrário:
reconhece que você tinha o direito de preferir outro. Só lamenta que não tenha tido a coragem para dizer-lhe a verdade.
— Não quero vê-lo nunca mais.
— Até parece que foi ele quem errou..
— Não precisa me lembrar disso. Assumo o que fiz. Mas prefiro que ele me ignore. Não lhe pedi nem lhe pedirei nada. O que ele fez foi porque quis.
— Está bem. Se prefere assim... Nesse caso não tocarei mais no assunto.
— Eu sei que o defende, gosta dele. Mas o que quer?
— Nada. Só penso que seria bom se vocês pudessem se perdoar, mesmo que nunca mais se encontrassem depois. Ele é o pai de seus filhos e isso você nunca vai poder mudar. Quanto ao passado, não estou aqui para julgar nada. Se vocês erraram, não é da conta de ninguém.
Mas guardar ressentimentos, manter-se como inimigos, faz mal.
— Se eu pudesse, arrancava essa culpa do peito, talvez assim conseguisse esquecer. O que mais me incomoda é ter causado tanta confusão por causa de um traste como Válter.
— Talvez, se conversasse com Osvaldo, falasse tudo que sente, ou visse o que ele tem a dizer, consiga lavar a alma e esquecer. Você pode não querer, mas eu sei, eu sinto que um dia a vida ainda moverá o destino e fará isso acontecer.
— Pode ser, mas agora não posso. A sopa estava boa, fez-me sentir melhor. Estou com sono e vou me deitar.
Rita foi para o quarto. Sentou-se na cama e orou pedindo harmonia e paz para todos da casa. Sentiu-se bem e acomodou-se para dormir.
Semanas depois, Osvaldo estava trabalhando no galpão que ha construído no sítio quando um dos empregados o chamou:
— Seu Osvaldo, chegaram visitas para o senhor.
Ele parou o que estava fazendo.
— Mande entrar na sala e esperar. Eu já vou.
Espiou pela janela e reconheceu sua mãe e irmão. Fez um gesto de contrariedade. Como eles haviam descoberto o sítio?
Lavou as mãos, livrou-se do avental e foi ter com eles na sala.
Vendo-o entrar, Neusa levantou-se e o abraçou.
— Meu filho! Você nunca nos visita, viemos ver como está. Eu estava morrendo de saudade.
— Tenho andado ocupado, mãe.
Antônio aproximou-se:
— A mãe estava me deixando louco. Queria ver você de qualquer jeito.
— Aconteceu alguma coisa! Neusa hesitou um pouco, depois disse:
— Não. O de sempre: Antônio ainda não arranjou emprego e continuamos passando necessidade. Mas não vim por causa disso. É que eu estava mesmo querendo vê-lo, saber
como vão as coisas.
— Está tudo bem. Não precisam se preocupar. Como me encontraram aqui?
—Eu sabia que tia Ester tinha este sítio. Uma vez, com um amigo, passei perto daqui. Foi há muito tempo, mas não esqueci. Quando sua empregada me disse que você estava aqui,
resolvemos vir. É um lindo lugar, e agora é todo o seu. Mas acho que não rende dinheiro.
Sítio só dá despesa e trabalho. Você pretende vender?
— Não. Tenho um projeto para ele.
Pediu que se sentassem, chamou Rosa e solicitou que preparasse um lanche. Neusa olhava tudo atentamente, admirando-se de que alguém colocasse tanto luxo e objetos caros no
meio daquele mato.
— Como vieram até aqui? A estação fica longe.
Antônio esclareceu:
— Há um ônibus que passa há um quilômetro daqui. Descemos e viemos andando.
— Podiam ter me avisado, e eu os mandaria buscar na estação. Temos telefone.
— Nem pensei que pudesse haver telefone em um sítio! — retrucou Neusa. —
Naturalmente, é coisa de milionário, como você.
Osvaldo desconversou. Perguntou que tipo de emprego Antônio estava procurando, quanto queria ganhar, e ele disse:
— Bem, você sabe que não tenho muita saúde. Por isso não posso fazer serviço pesado.
Mas tenho de ganhar bem. Quero dar conforto à nossa mãe. Ela depende de mim.
Osvaldo não respondeu logo, e Antônio continuou:
— Não tenho conseguido nada. Já que estamos tocando nesse assunto, talvez você, que está rico agora, possa nos ajudar. Afinal, somos sua família. Sei que você não gosta de nós, mas,
que diabo, temos o mesmo sangue. Não pode renegar sua família.
Osvaldo olhou sério para eles e disse com voz firme:
— Você tem razão. Apesar de nossos desentendimentos, posso ajudá-los.
O semblante de Neusa distendeu-se:
— Eu sabia, meu filho, que você não ia nos deixar ao desamparo.
Rosa avisou que o lanche estava pronto, e Osvaldo convidou-os para ir à sala onde seria servido.
Ao entrar na solarenga sala de jantar, mobiliada com gosto e luxo, os olhos de Neusa brilharam de cobiça. Sentada na mesa bem posta, olhando a louça bonita, o lanche apetitoso, ela pensava que seria bom irem morar com o filho e usufruir tudo aquilo.
Terminado o lanche, Osvaldo conduziu-os de volta à sala. Depois de se acomodarem, Neusa não se conteve:
— Este lugar é muito lindo. Gostaria até de morar aqui.
— Seria maravilhoso — ajuntou Antônio.
— Vocês estão acostumados a viver na cidade. Não se acostumariam a viver aqui. Amanhã mesmo falarei com o meu advogado para providenciar uma mesada.
Os olhos dos dois brilharam curiosos. Neusa perguntou:
— Posso saber de quanto? Gastamos muito com remédios, a casa nossa mas está velha, precisando de reforma.
— Vou pensar. Apesar da minha ajuda, Antônio terá de trabalhar. Um homem não pode viver na ociosidade.
Antônio irritou-se:
— Está me chamando de vagabundo? Deus sabe que tenho me esforçado.
— Não disse isso. Só penso que a vida sem trabalho acaba por trazer doenças. Basta olhar para a água parada para entender isso. Assim somos nós. Precisamos desenvolver nossa
capacidade, usar a inteligência, aprender coisas novas. Caso contrário, morreremos mais cedo.
— Vou continuar procurando.
Osvaldo pensou um pouco, depois disse:
— Talvez possa arranjar um trabalho para você.
— É preciso escolher bem — atalhou Neusa com ar preocupado.
— Antônio é muito fraco. Não quero que ele fique pior. Afinal, é meu arrimo na vida.
—Não se preocupe. Ele vai encontrar trabalho. Vou ver o que posso fazer. Estou organizando uma empresa.
Os olhos de Antônio brilharam de alegria.
— Conheço serviço de escritório. Posso ser o gerente.
Osvaldo sorriu e respondeu:
— Poderá, depois de provar sua capacidade.
— Posso saber empresa de quê?
— Por enquanto, não. O projeto está em fase de organização. Mas, se você quiser trabalhar, terá essa possibilidade. Mas desde já adianto que não terá nenhum privilégio por ser meu irmão.
— Está bem. Quando estiver pronto, me avise.
—Quando chegar a hora falaremos. Agora preciso voltar ao trabalho.
— Pensei que poderíamos ficar aqui alguns dias... — disse Neusa.
— Não pode. Não temos acomodações suficientes. Meu carro vai levá-los à estação. Há um ônibus que sai daqui à uma hora. Dá tempo até para dar uma volta na cidade.
José conduziu-os à rodoviária. Durante o trajeto eles fizeram perguntas, tentando descobrir detalhes sobre a vida de Osvaldo. José, porém, não lhes satisfez a curiosidade.
Quando se viu a sós com a mãe, Antônio comentou:
— Sujeito antipático esse José. Nunca gostei dele.
— A culpa toda é de Ester e de Osvaldo, com essa mania de dar asa a um empregado.
— Estou curioso de saber que empresa ele vai montar.
— Não fique muito entusiasmado. Pode não ser bom para você trabalhar com ele. Disse
que não vai lhe dar nenhum privilégio.
— Nem sei se essa tal empresa sai mesmo. Afinal, ele não precisa trabalhar. Quanto será que ele vai nos dar de mesada?
— Estou morrendo de curiosidade. Espero que não seja uma porcaria que não dê para nada.
— Seja como for, ele mudou de idéia. Não queria nos dar nada, agora vai mandar alguma coisa. Devemos aceitar tudo. Depois, com o tempo pediremos aumento. Ela concordou
satisfeita.
Osvaldo, depois que eles se foram, voltou ao galpão para continuar o trabalho. Durante a conversa com os dois, havia sentido vontade de ajudá-los.
Estava querendo dedicar-se ao trabalho espiritual, ser canal dos espíritos. Desejava evoluir, aprender a ciência de viver melhor, ser feliz, encontrar harmonia, paz.
Tudo isso tinha um preço: precisava fazer a sua parte, agir de acordo com as leis cósmicas.
Não podia mais ser intolerante, pretensioso, julgar os outros.
Sua mãe nunca havia sido o que ele gostaria. Para ele, Neusa era egoísta, mesquinha,
maldosa, ambiciosa. Porém ela lhe dera a oportunidade de viver no mundo.
Isso não aconteceu por acaso. A vida age com sabedoria, e cada um é responsável por tudo quanto lhe acontece. Por mais que as aparências enganem, não existem vítimas. Ele se perguntava por que havia atraído uma mãe como ela e um irmão preguiçoso, mentiroso,
fraco como Antônio. A presença deles o havia tomado consciente de que, sendo intolerante, recusando-se a dividir com eles um pouco do que possuí estava sendo julgamentoso,
vaidoso, colocando-se acima deles.
Essa era uma perigosa ilusão que Osvaldo não queria. Ao contrário: escolhera o caminho do progresso espiritual. Para seguir adiante precisaria manter atitudes coerentes.
Sem isso, de nada valeria todo o esforço.
Não seria demasiada pretensão desejar ajudar os outros antes de resolver os problemas pessoais que trouxera nesta encarnação?
A convivência com eles sempre lhe foi desagradável. Era livre para afastar-se deles. Mas, fazendo isso, estaria fugindo, adiando a solução.
Eles eram como eram. Nada poderia fazer quanto a isso. O problema era ele, Osvaldo. Por que não podia aceitar as diferenças que havia entre eles? Por que se julgava melhor a ponto
de desprezar sua mãe e irmão?
De repente, a resposta a todas essas perguntas apareceu clara:
— Vaidade. Só vaidade!
Ele se julgava mais honesto, mais sincero, mais trabalhador, muito melhor do que sua família!
A emoção da descoberta fez brotar lágrimas em seus olhos. Logo ele, pensando em se tomar um mensageiro da espiritualidade!
Sentiu-se arrasado. Foi para o quarto, sem vontade de continuar a trabalhar. Sentou-se na cama, orou durante alguns minutos pedindo ajuda. Depois deitou-se e adormeceu.
Pouco depois se viu em uma sala clara e bem arrumada. Os móveis antigos lembravam a casa de Ester, mas ele sabia que estava em outro lugar. Viu um homem sentado em luxuosa
poltrona em frente a uma escrivaninha lavrada, e, embora seu rosto fosse diferente, sabia que era ele.
De repente, dois homens entraram fazendo grande alarido, arrastando um negro que se debatia assustado.
— O que foi, Juventino? — indagou o fidalgo.
— Este safado estava fugindo, carregando este saco de jóias de Dona Ofélia.
No mesmo instante entrou na sala uma mulher de meia-idade, fisionomia sisuda. Vendo-os, gritou enfurecida:
— Que atrevimento. Minhas jóias! Isso não pode ficar assim.
O fidalgo levantou-se irritado. Tinha horror a brigas e a confusões que lhe tirassem o sossego. Não gostava de misturar-se com as questões domésticas. Mais para ver-se livre do
problema, ordenou:
— Coloque-o no tronco por quinze dias a pão e água.
Eles arrastaram o escravo para fora. A dama, segurando seu precioso saco, despejou o conteúdo sobre a mesa, conferindo tudo enquanto o fidalgo aguardava com impaciência que
ela terminasse.
Osvaldo viu-se transportado para outro lugar. Um barracão escuro, iluminado por algumas tochas, enquanto alguns negros cantavam tristemente ao redor de um corpo estendido no chão.
Depois se viu vagando por lugares escuros, procurando inutilmente a saída, sem encontrar.
Vultos sombrios o rodeavam, chamando-o de assassino.
“Devo estar no umbral”, pensou Osvaldo.
Mentalmente pediu socorro e orou chamando por Alberto. Pouco depois viu-se em uma sala simples e agradável. Olhou em volta e viu Alberto aproximando-se.
— Graças a Deus — disse ele aliviado. Estava em apuros.
— O que acha que aconteceu? — perguntou ele sorrindo.
— Penso que voltei a uma vida passada. Não foi nada bom. Estou confuso. Descobri quanto ainda sou vaidoso. Isso não é um progresso?
— Sim. Conhecer nossos pontos fracos nos ajuda a vencê-los.
— Nesse caso, eu deveria ter me sentido melhor.
— Tornando consciência de sua vaidade, você trouxe à tona as energias correspondentes que acumulou através do tempo e com elas as lembranças das atitudes que tomou na época
e que estão influenciando sua vida na atualidade. É uma excelente oportunidade que lhe
está sendo oferecida para limpar sua aura e seguir adiante. Ninguém pode progredir, conquistar a paz, a felicidade, sem passar por esse processo.
— Quer dizer que foi bom.
—Você nunca aceitou sua família como é. Sempre desejou que eles mudassem para que pudesse amá-los. Hoje você percebeu que estava enganado. A dificuldade é sua. Descobriu
o que significa a palavra compaixão.
Osvaldo sentiu um calor agradável invadir-lhe o peito.
— Eu quero aprender. Tenho sido omisso com eles. Estou arrependido. Desejo compensá-los pelo meu erro.
— Cuidado. A culpa é tão perigosa quanto a omissão. Por causa dela você pode ceder às
fraquezas deles, atendendo a tudo que pedirem. Amar uma pessoa como ela é não nos impede de perceber seus pontos fracos. A ajuda que alguém pode dar será sempre a de apoiar os pontos positivos e nunca ceder às fraquezas. O amadurecimento demanda tempo.
Por isso, não espere nada deles. Contente-se em conquistar seu próprio progresso.
— Não é fácil fazer o que me pede. Desejo ajudá-los, mas como passar por cima das maldades que eles fazem e ainda manter a boa vontade? Como não me sentir culpado sempre que notar um defeito deles, o que vai acontecer sempre, uma vez que são como são?
Alberto sorriu:
— Sabia que a crueldade pode ser uma maneira equivocada de se defender ou uma forma de chamar a atenção e conseguir um pouco de valorização?
— Não. Nunca analisei desse modo.
— Tente fazer isso. Medite também sobre como a cobrança da culpa é um instrumento da vaidade.
— Não é resultado do arrependimento?
— Não. Quem se arrepende aprende com os erros, não fica se culpando por não ter feito tudo certo. Cuida de não fazer de novo. Agora tenho de ir. Pense, Osvaldo. Tenho certeza de que encontrará o melhor caminho.
— Vou tentar. Obrigado por ter me ouvido.
Alberto abraçou-o e Osvaldo mergulhou em um sono profundo e reparador. Quando acordou, havia anoitecido. Sentiu-se renovado e sereno.
Sentou-se na cama e recordou palavra por palavra o que havia conversado com Alberto.
Sentiu-se mais forte, confiante.Faria sua parte com disposição e firmeza. Mesmo evitando criar expectativas a respeito do comportamento deles, tinha certeza de que ele, Osvaldo, se sentiria bem melhor por ter tentado ajudá-los.

Quando é Preciso VoltarOnde histórias criam vida. Descubra agora