A tarde ia morrendo, já os últimos raios solares coloriam o céu. Osvaldo entrou em casa sobraçando um cesto com ervas.
Estava magro, deixara crescer a barba, vestia-se como um lavrador, as em seus olhos havia um brilho novo, que o tornara muito diferente do que era quando três anos antes chegara
em casa de Antônio.
O homem ferido, machucado, desiludido e triste dera lugar a outro , mais introspectivo, mais maduro, mais forte.Tinha ido para ficar um mês, porém nas atividades espirituais Antônio desenvolvia com tanta dedicação descobrira com surpresa uma forma de sentir-se útil, de cooperar para aliviar o sofrimento das pessoas.
Sensibilizado pela maneira simples e amorosa com que Antônio empenhava suas tarefas,
identificando-se com elas, entregou-se a trabalho com alma, sentindo-se feliz com as curas que conseguiam. Sua mediunidade se abriu e ele assustado passou a ver cenas e pessoas de
outras dimensões, bem como os problemas de cada paciente.
A princípio ele se desequilibrou, mas Antônio ensinou-o a lidar com essas energias, e aos poucos ele foi se adaptando. Em pouco tempo a fama correu pela vizinhança e muitos o
procuravam em busca de ajuda.
Sua mágoa pela traição de Clara havia desaparecido. Só a saudade o incomodava.
Quando fez seis meses que ele estava morando na casa de Antônio, precisaram ver um doente na vila. Então, Osvaldo procurou um telefone ligou para sua tia Ester.
Apesar do temperamento retraído dela, naquele momento Osvaldo sentia que era a única pessoa com a qual poderia manter contato sem problemas.
Ela atendeu admirada:
— Osvaldo, é você?
— Sim, tia. Como vai?
— Bem. Ainda hoje estava pensando em você.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa?
— Não. Você desapareceu e sua família pensa até que está morto.
Osvaldo fez silêncio por alguns instantes, depois disse:
— É melhor assim. Não tenho vontade de falar com eles. Gostaria que não contasse que liguei.
—Tem certeza?
— Tenho, tia.
— E você, como está? Sabe que, se precisar de alguma coisa, farei o que puder para ajudá-lo.
— Obrigado, tia, não preciso de nada. Estou bem.
— E o coração, ainda dói?
— Já passou. A única coisa que me incomoda é a saudade dos meninos. Sabe como estão?
— Sei. Estão bem.
Osvaldo hesitou um pouco, depois disse:
— E quanto à situação financeira, isto é, como Clara está se arranjando com as despesas?
— Melhor do que você poderia supor. Está trabalhando em um ateliê de alta-costura e parece que vai bem. Rita continua com ela.
— Quer dizer que ela...
— Está sozinha. Depois que você partiu não quis nada com Válter. Pensei em oferecer ajuda, mas ela nunca me procurou e eu não quis me intrometer. Tenho falado com Rita, que me dá notícias das crianças.
— Sinto-me aliviado.
— Gostaria de saber onde você está. Poderei escrever de vez em quando e mandar notícias.
— Faria isso por mim?
— Claro, meu filho. Estou feliz por ter me ligado. Sabe que pode contar comigo.
Osvaldo deu o endereço da caixa do correio para correspondência. Assim tomou conhecimento da morte do tio e escreveu à tia falando de suas atividades espirituais, de sua
certeza de que a vida continua depois da morte.
Passou a corresponder-se regularmente com ela. Pelo menos uma vez por mês ela lhe escrevia. Se antes era para falar das crianças, depois da morte do marido e da carta comovida que Osvaldo lhe mandou, ela passou a abrir-se mais, contando-lhe seus problemas.
Mesmo distantes, a amizade entre os dois estreitou-se. Era com prazer que Osvaldo recebia aquelas cartas e as respondia com carinho. Dessa forma acompanhou os filhos à distância,
sabendo que Clara abrira uma loja e cuidava da educação dos meninos com dedicação.
Ela sempre foi boa mãe, amorosa, dedicada. Como esposa, cuidou dele com carinho e, quando ele se recordava disso, ainda sentia certa revolta, perguntando-se se tudo tinha sido fingimento.
Nesses momentos, metia-se no mato, perto do rio, e entregava-se à meditação, procurando libertar-se de toda emoção desagradável, orando, em busca de conforto e esquecimento.
Depois, refeito e sereno, voltava às suas atividades com Antônio.
Foi com ele que aprendeu a controlar as emoções, restaurando seu equilíbrio interior.
— Meu filho, quando a tempestade vem, nos assustamos com sua violência. Raios cortam o ar, arrancando os galhos das árvores. As plantas feridas, sem folhas, resistem como podem.
Quando passa, algumas estão vergadas pelo vento forte; outras, tendo seus galhos arrancados, exibem suas feridas. Mas sua passagem deixa tudo limpo, o ar fica mais leve e
algum tempo depois as feridas cicatrizam, as plantas se cobrem de verde novamente. Então entendemos que tudo aconteceu para o melhor.
— A tempestade que se abateu sobre mim passou, mas as feridas ainda não cicatrizaram.
— Você está vendo só um lado. Dessa forma não tem condições de enxergar.
— Para mim só existe um. Tenho consciência de que fui um bom marido, fiel, trabalhador, sincero, um bom pai. E difícil justificar a traição.
— Não precisa justificá-la. Apenas enxergar os outros lados.
— Só consigo ver o meu. Quando tento colocar-me no lugar de Clara na tentativa de saber por que ela me traiu, é ainda pior. Ela não tinha nenhum motivo.
— Ninguém age sem motivo.
— Ela nunca demonstrou insatisfação. Nunca deixou transparecer que estava gostando de outro.
— Você não esperava que ela sucumbisse à tentação.
— Para mim ela era uma santa, cheia de virtudes.
— Ela é apenas um ser humano. Seus erros revelam suas fraquezas mas não anulam suas qualidades, elas ainda permanecem.
Depois, o erro quando aproveitado fortalece e imuniza para o futuro. Nunca ouviu dizer que gato escaldado tem medo de água fria?
— Para mim foi como se um raio me destruísse.
— Foi um desafio difícil.
— Destruiu minha vida.
— Você quase se destruiu com a situação. Naquele tempo você colocava sua felicidade nas mãos de sua esposa. Essa é uma ilusão que infelicita e enfraquece.
— Mas o casamento é uma troca. Eu precisava fazê-la feliz e ela deveria fazer o mesmo. É o mínimo que esperamos no matrimônio. Não juramos isso no altar?
— Prometem o que não sabem se vão cumprir e passam a vida se cobrando, insatisfeitos e infelizes. Acontece muito, tanto na cidade com pessoas instruídas como aqui, com gente
simples.
— Clara era uma moça direita. Nunca pensei que acabasse me traindo.
— Ela também não pensou. Mas as tentações surgem e nessa hora só os fortes resistem.
— Eu também tive tentações. Algumas mulheres me provocaram, e olhe que a sociedade é muito mais tolerante com o homem que trai. Mas eu não cedi. Fui um marido fiel. Isso é o
que mais me revolta. Se eu pude resistir, por que ela não?
— Por que as pessoas não são iguais. Você foi mais forte. Mas en quanto você pode se controlar, porque usa sua força interior, nada pode fazer para impedir que ela tenha
sucumbido. Acredite: na vida você só pode contar consigo mesmo. Seu poder só funciona em você. É lei universal. Nem Deus moverá uma palha se você não fizer sua parte, se não estiver pronto.
— Nesse caso não podemos confiar em ninguém. Como viverei em paz dessa forma?
— É preciso usar o bom senso. Ser astuto como as serpentes mas manso como as pombas. O povo fala isso, mas não faz.
— Não vejo como cumprir esse ditado.
— Pois para conquistar a paz interior é preciso praticar isso.
— É difícil.
— Se continuar pensando como a maioria, não consegue. Primeiro é preciso aprender como a vida é. Saber como ela age.
— Eu não quero mais me relacionar com ninguém. Nunca mais vou gostar de nenhuma mulher.
— Isso é contra sua natureza.
— Eu não poderia viver com alguém que a todo o momento pode me trair.
— As pessoas não são iguais. O bom senso nos ensina que cada um é como é. E isso que precisamos aprender quando lidamos com os outros. O gostar de uma pessoa não nos
impede de perceber seus pontos fracos. Ao bom observador não será difícil enxergar através das aparências. O perigo é que, quando alguém se apaixona, deixa de enxergar os lados negativos que o outro tem. Endeusa, como você fez. Quando a pessoa erra, faz uma
tragédia. Mas com certeza sua mulher deu muitas advertências indicativas de suas fraquezas e você não quis ver.
Osvaldo ficou pensativo. Lembrou que nos últimos tempos Clara tinha se tornado mais exigente com ele, reclamando mais atenção, comprando roupas mais modernas, arrumando-
se melhor e insistindo para que ele fizesse o mesmo. Seria um sinal de que ela estava em crise?
— Sinto que você percebeu e sabe o que eu quis dizer.
— É, pode ser.
— Esses sinais são um pedido de ajuda inconsciente. No momento de tentação, quando a pessoa deseja resistir, eles aparecem. Quando o outro percebe e age positivamente,
fortalece a resistência.
— Quer dizer que se eu houvesse prestado atenção, entendido as atitudes dela, cooperado,
Clara não teria me traído?
— É difícil dizer, mas é o que poderia ter acontecido.
Osvaldo remexeu-se na cadeira, inquieto.
— Você conseguiu fazer com que eu comece a me sentir culpado por ela ter fraquejado.
— Não é isso o que eu quero Você não pode se culpar pela falta de habilidade para lidar com uma situação. Naquele tempo agiu como sabia. Mas agora amadureceu. Quero que aprenda a usar sua força para manter sua paz, aconteça o que acontecer. A serenidade é conquista de quem conhece a verdade das coisas e não se deixa impressionar pelo que os outros fazem.
— Gostaria de ter essa elevação.
— A serenidade é fruto de um trabalho interior constante. É preciso confiar na vida, conhecer a espiritualidade. A observação sem preconceitos, o esforço para manter um diálogo positivo com você mesmo, a ligação com a fonte do amor divino, tudo isso é uma conquista que só você pode fazer. Mas, quando conseguir, terá encontrado a paz e a felicidade verdadeiras.
Osvaldo fitou Antônio comovido. Era um homem simples, sem cultura acadêmica, mas um sábio. Abraçou-o com carinho, dizendo:
— Obrigado, mestre. Farei o possível para alcançar isso. A partir daquele dia, Osvaldo foi perdendo a amargura e aos poucos sua mágoa foi desaparecendo. Já conseguia pensar em Clara sem revolta. Muitas vezes rememorava cenas de sua convivência e, quanto mais o
fazia, mais ficava claro que ela realmente lhe dera sinais de que estava em crise. Não que a
justificasse, mas questionava a fragilidade dos relacionamentos. Ninguém lhes ensinara a
lidar com os problemas humanos nem com suas emoções. Nenhuma escola trata desse tema, entretanto é com ele que cada um depara no dia-a-dia, seja no trato com a família ou
com a sociedade.
Ele começava a vislumbrar que a vida tinha outros lados para quem se dispõe a observá-la, que podem ajudar a viver melhor.
Ele colocou o cesto sobre uma mesa, sentando-se para descansar um pouco antes de preparar as ervas para fazer os remédios. Apesar do tempo decorrido e de sentir-se conformado com a situação, naquela tarde a saudade dos filhos o entristecia.
Antônio entrou convidando-o para o café. Sentados ao redor da mesa tosca, enquanto saboreavam o gostoso bolo de fubá de Zefa, Antônio perguntou:
— Não está gostando do bolo?
Arrancado de seus pensamentos íntimos, Osvaldo respondeu:
— Está bom, como sempre.
—Pois não parece. Você estava comendo com uma cara...
Zefa interveio:
— Ele cresceu bem, será que não ficou bom?
— Não é isso, Zefa. O bolo está delicioso. Eu é que não estou muito bem.
— A saudade dói — tornou Antônio —, mas só existe um jeito
— Vendo que Osvaldo olhava atento para ele, concluiu: — É você voltar para sua família.
Osvaldo colocou a caneca de café sobre a mesa e disse:
— Não pretendo voltar nunca mais. Aqui encontrei sossego, Se não puder ficar com vocês, procurarei outro lugar, mas voltar...
— Você pode ficar aqui pelo resto da vida. Tem me ajudado tanto e sou grato. Mas, se não quer voltar, precisa aceitar a saudade e se entristecer.
— É difícil. Mas é isso que eu quero. Tenho acompanhado a vida dos meus filhos e tudo está bem. Não estou fazendo falta. Clara está cuidando de tudo.
— Um dia terá de voltar.
— Não quero. A vida na cidade não é mais para mim. Lá tudo é falso, as pessoas vão atrás das aparências, só pensam em dinheiro. Aqui o povo é simples, amoroso, acolhedor. Tenho
muitos amigos. Vocês me ensinaram a ver a vida de maneira diferente. Quero ficar. Ajudar os outros é um bênção, e não vou perder essa chance.
Antônio fitou-o sério por alguns segundos, depois disse:
— A vida trouxe você para cá e nos deu a alegria de estarmos juntos. Mas sinto que um dia ela o levará de volta. Então, terá de enfrentar todos os desafios dos quais você está tentando fugir.
— Nada me fará voltar.
Antônio sorriu, pegou a caneca sorveu um gole de café e não respondeu. Mas em seus olhos havia um brilho malicioso que Osvaldo não viu.
Os anos foram passando e Osvaldo continuou trabalhando e morando na casa de Antônio.
Era muito conhecido pelas pessoas que o procuravam ora em busca de ajuda espiritual, ora trazendo-lhe alguma guloseima caseira em agradecimento pela ajuda obtida.
Osvaldo continuava correspondendo-se com a tia regularmente.
Fazia dez anos que ele deixara a família e, embora a saudade continuasse, não pensava em
voltar.
Uma tarde, quando passou no correio, havia um envelope diferente. Abriu-o e leu:
“Sr. Osvaldo de Oliveira, Saudações.Cumpro o doloroso dever de comunicar que Dona Ester dos Santos Freire faleceu no dia dezoito de outubro passado, acometida de um mal súbito. Como o senhor é seu único parente, pedimos que compareça ao nosso escritório o mais rápido possível para tratarmos das providências legais.Assinado: Dr. Felisberto Antunes advogado.”
Osvaldo sentiu um aperto no coração. Tia Ester nunca lhe disse que estava doente.
Chocado, conversou com Antônio:
— Eu não gostaria de ir até lá.
— Ela não tem outros parentes?
— Não. Era viúva e não teve filhos. Vivia sozinha.
— Nesse caso, é melhor ir.
— Isso aconteceu há dez dias. Ela já foi enterrada.
— Mas é bom ir até lá, cuidar das coisas dela.
—Tem razão. Eu vou, cuidarei de tudo e voltarei dentro de uma semana. Tia Ester sempre foi muito boa para mim. Ela me criou. E os meus doentes?
— Pode deixar que eu cuido deles. Fique o tempo que precisar.
— Vou pegar um cavalo e ir à vila. Tenho de ver passagem, comprar algumas roupas.
— Precisa de dinheiro?
— Não. Ainda tenho algum. Deve dar para tudo. Aqui não gasto nada.
Enquanto ele saía em busca do cavalo, Zefa apareceu na porta e perguntou:
— Aonde Osvaldo vai com tanta pressa?
— Voltar para a cidade.
— Ele volta?
—Diz que sim.
Ela abanou a cabeça, dizendo:
—Não sei, não. Alguma coisa me diz que ele vai ficar por lá.
— Pode ser. O futuro está nas mãos de Deus.
Osvaldo foi à vila e comprou a passagem de segunda classe. Tinha pouco dinheiro. Depois foi comprar roupas. Precisava pelo menos de uma calça, camisa, meias e sapatos. Terno, nem pensar. Além de o dinheiro não dar, a qualidade era tão ruim que ele preferiu nem comprar.
Sua tia era de classe e ele não podia apresentar-se àquele advogado com as roupas surradas que usava, O dinheiro era pouco e não dava para comprar tudo. Precisou pechinchar e acabou conseguindo. Gastou tudo que tinha, não sobrou nada para a viagem.
Antônio arranjou-lhe algumas economias que ele finalmente aceitou, prometendo pagar tudo quando voltasse, e Zefa preparou algumas guloseimas para ele comer na viagem.
Seriam cinco horas dentro do trem.
Osvaldo não quis viajar sem se despedir da família de João, que o havia salvado e dos quais se tornara amigo. Antônio acompanhou-o até lá. Dalva havia se casado com um lavrador e vivia em sua própria casa. Diocleciano e Aninha moravam com os pais.
Osvaldo despediu-se dos amigos, afirmando que voltaria em breve. Diocleciano ofereceu-se
para levá-lo à estação. Foi com emoção que Osvaldo se despediu dos amigos, prometendo visitá-los na volta para contar-lhe as novidades.
Osvaldo teve de levar não só frango com farofa de Zefa mas também o pão que Aninha fizera especialmente para ele. Com lágrimas nos olhos ele disse adeus aos amigos e embarcou.
Sentou-se perto da janela e, quando o trem partiu, ficou acenando até desaparecer em uma curva. Depois sentou-se pensativo.
Voltar! Ele estava voltando. Dez anos era muito tempo, mas ainda assim o barulho do trem, o balançar cadenciado do vagão faziam- no lembrar-se do dia em que, desorientado, louco, desesperado, embarcou sem rumo, querendo desaparecer, acabar com aquele sofrimento.
Agora, mais sereno, tendo aprendido a ver outros lados da vida, era outro homem, bem diferente do que tinha sido. Sabia que era melhor enfrentar uma situação desagradável do
que fugir. Estava disposto a fazer isso. Olhando a paisagem através da janela, ele se perguntava o que aconteceria quando chegasse.
Estava decidido a não procurar a família. Seus filhos estavam crescidos, não desejava perturbá-los depois de tanto tempo de ausência. Quanto à sua mãe, seria melhor não
procurá-la. Para quê? Seu irmão Antônio perdera o emprego por causa do que houve com Clara e teve dificuldade de arranjar outro. Vivia revoltado e sua mãe o apoiava. Vê-los seria reviver o rancor sem que pudesse fazer nada para ajudá-los.
O trem rodava sobre os trilhos e Osvaldo continuava pensando, pensando.
Mais uma vez a vida o chamava para novos acontecimentos. Desta vez, o que desejava ensinar-lhe? Havia aprendido a confiar na sabedoria divina, que dispõe tudo para melhor.
Sabia que, embora o poder de escolha seja de cada um, as oportunidades estão submetidas à força das coisas e contra elas é melhor não lutar.
Antônio ensinou a observar os recados que a vida lhe mandava através dos fatos do dia-a-dia, procurando fazer o melhor e aceitando os que não pudesse mudar. Essa forma de ver a vida dera-lhe serenidade e desenvolvera sua lucidez.
Reconhecia que havia aprendido muito e que esse conhecimento aliviara seu coração inquieto, fazendo-lhe grande bem..
Ao dedicar-se com Antônio ao esclarecimento e ajuda das pessoas que os procuravam, notando que elas, da mesma forma que ele, ficavam aliviadas e mais serenas, mais
gratificado.
Agora que ele estava atento procurando compreender como a vida funciona, percebeu o
quanto as pessoas se infelicitavam carregando durante anos algumas crenças aprendidas, cobrando-se, mergulhando na ilusão e sofrendo por descobrir quanto estavam distancia das da verdade.
Ele pretendia resolver os negócios da tia e voltar logo para a vida calma no sítio de Antônio. Ao chegar em São Paulo, o ruído da cidade incomodou-o e mais do que nunca firmou o propósito de ficar pouco tempo.
Tomou um táxi e foi para a casa da tia, onde o advogado o esperava. A bela casa da avenida Angélica estava igual aos anos de sua infância. Ao entrar, sentiu o mesmo cheiro de flores
misturado a canela que Ester usava para perfumar todos os cômodos, e pareceu-lhe que ela a qualquer momento iria aparecer para abraçá-lo.
O Dr. Felisberto aguardava-o na sala. Vendo-o, levantou-se procurando dissimular a surpresa com as mudanças que Osvaldo sofrera. Por onde ele andara todos aqueles anos?
Lembrava que ele era um jovem elegante, bem vestido, muito diferente do homem que
estava cumprimentando, que mais parecia um camponês.
Em poucas palavras o advogado contou a doença de Ester, que a levara em menos de uma semana. E finalizou:
— Nós éramos muito amigos, e eu a visitava sempre. Uma tarde ela me chamou e disse que queria fazer o testamento. Pensei que fosse um capricho, mas agora sei que ela sabia que lhe restava pouco tempo de vida.
Em suas cartas ela nunca me disse que estava doente.
Eu também não percebi. Parecia bem. Mas insistiu na urgência e fiz-lhe a vontade. Sou seu testamenteiro e, como cuidei de seus negócios desde o tempo do Dr. Freire, tenho todos os
documentos em minhas mãos para a prestação de contas. Mas você deve estar cansado da viagem. Vim para dar-lhe as boas-vindas e marcar um encontro para isso e para a leitura do testamento.
— Não estou cansado. Pode marcar com as outras pessoas hoje mesmo.
— Não há outras pessoas. Só você. Como sabe, ela não teve filhos. Deixou tudo para você.
Osvaldo levantou-se admirado:
— Para mim? Ela tinha outros sobrinhos.
— Segundo as próprias palavras dela, eles nunca a visitaram tiveram para com ela alguma manifestação de amizade. Ela gostava você como um filho. Adorava suas cartas, que
conservava caprichosamente guardadas em uma caixa, relendo-as de vez em quando.
Várias vezes a surpreendi nesse mister. Ela sorria e falava-me da sua sabedoria e do seu progresso.
Os olhos de Osvaldo brilharam emocionados. Pena não haver descoberto antes o quanto
eles se afinizavam.
— Não sei o que dizer. Não esperava isso.
— Você herdou tudo que ela possuía. Tornou-se um homem rico.
Osvaldo sentou-se de novo, passando a mão pelos cabelos. O advogado continuou:
— Vamos fazer o seguinte: descanse hoje, e amanhã voltaremos a conversar. Cuidei para que a casa se mantivesse como ela sempre foi. Naturalmente, você vai morar aqui. Eis as chaves. No escritório, na gaveta da escrivaninha, há uma carteira com dinheiro. É um adiantamento para suas despesas. Voltarei amanhã à uma hora para nossa reunião. Os
criados também vão participar, porque ela os gratificou no testamento.
Osvaldo concordou e o advogado retirou-se. José apareceu na sala perguntando se ele desejava alguma coisa. Tratava-se de um antigo empregado, ainda do tempo que seu tio era vivo, que ficou na casa cuidando de tudo com dedicação mesmo depois da morte do patrão.
Osvaldo recordava-se dele.
— Como vai, José?
— Triste com a morte de Dona Ester.
— Todos estamos.
Ele se remexeu um pouco inquieto, depois perguntou:
— O senhor não quer um café, um lanche, uma água?
— Vou tomar um banho e depois tomarei um café.
— Os outros empregados são os mesmos de antes?
— Não. Só minha mulher e eu continuamos. As outras o senhor não conhece. Já que tocou no assunto, senhor, Rosa está inconformada. Além de sentir falta da amiga de tantos anos, a quem adorava, está com medo do nosso futuro. Estamos velhos demais para encontrar trabalho. Se nos despedir, não teremos para onde ir.
Osvaldo olhou sério para ele. Essa era uma realidade que ele teria de enfrentar.
— Não se preocupe, José. Farei o que puder por vocês.
— Obrigado, senhor. Venha comigo. Já arrumei o quarto, e sua bagagem está lá.
Observando o luxo da casa, Osvaldo lembrou-se de que na cidade as pessoas vestiam-se de outra maneira. Teria de comprar algumas roupas para representar a tia com dignidade.
— Dona Neusa telefonou perguntando se o senhor já havia chegado.
Osvaldo estremeceu:
— Ela sabe que eu viria?
— Sabe. Quando Dona Ester morreu, ela veio e conversou com o Dr. Felisberto. Ficou sabendo que o senhor viria para a leitura do testamento.
Osvaldo mudou de assunto. Preferia não se encontrar com a mãe e o irmão.
— Quero sair e fazer algumas compras.
— Vou mandar tirar o carro.
Osvaldo lembrou que a tia tinha um motorista sempre à disposição.
— Está bem.
Depois que José saiu, foi ao escritório, abriu a gaveta da escrivaninha e encontrou a carteira com dinheiro. Abriu-a e verificou havia mais do que necessitava. Pensava em comprar
pouca coisa, nas o suficiente para alguns dias. Assim que resolvesse tudo, voltaria para o campo.
Ao sair, José acompanhou-o até a garagem, perguntando:
— A que horas deseja o jantar?
— Na que vocês costumavam. Não quero quebrar a rotina da casa
— Dona Ester jantava às sete.
— Para mim está bem.
Vendo-o acomodar-se no carro e sair, José foi à cozinha, Rosa o esperava.
— E então? — indagou curiosa.
— Pode servir às sete.
— Não foi isso que perguntei. Quero saber como ele está.
— Mudado. Nem parece o mesmo. Mais velho, e parece que determinado.
— Confirmou se vamos ficar aqui?
— Disse que vai nos ajudar.
Rosa suspirou triste. Depois disse:
— Espero que ele não pense em vender a casa e ir embora não, não guarda boas recordações daqui. Se Dona Ester não tivesse morrido, não teria voltado.
— Não vamos pensar no pior. Saiu para comprar roupas. Está precisando mesmo. Esse é um sintoma de que está voltando para a cidade. Vamos fazer tudo para que ele se sinta bem
aqui e deseje ficar.
— Isso mesmo. Eu sempre gostei de Osvaldo. Foi sempre muito educado e nos tratou com respeito. E um bom moço e não merecia o que a esposa fez.
— Não vamos julgar. Nós não sabemos como aconteceu. Depois, não temos nada com isso.
Não é delicado nos metermos nos assuntos dos patrões.
— Será que ele vai ver os filhos? Dona Ester me disse que Clara nunca mais se casou. Certamente arrependeu-se do que fez.
— Já disse que não temos nada com isso e é melhor você não ficar por aí comentando sobre o assunto.
— Nem precisa recomendar. Sei o meu lugar. Mas vou rezar para ele. E um bom moço e merece ser feliz.
José abanou a cabeça e não respondeu. Saiu para verificar a correspondência. Precisava cuidar de tudo para que Osvaldo se sentisse confortável e bem atendido.
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Quando é Preciso Voltar
Tâm linhA traição da mulher amada doía no fundo do coração de Osvaldo. Açoitado pela desilusão, ele não sabia o que fazer. Como viver carregando o peso dessa dor? Como enfrentar essa dura realidade e continuar vivendo? Amargurado, ele não pensou nos dois fi...