E então, conseguiu as informações? — indagou Válter.
— Sim. Osvaldo vai abrir uma empresa e me convidou para trabalhar lá.
— E você acreditou? Só se for para ele sugar seu sangue. Nunca fez nada pela família, não vai ser agora.
— Prometeu falar com o advogado e nos dar uma mesada.
— Não acredito. Você acha mesmo que ele fará isso? Deixe de ser bobo. Ele quis ver-se livre de vocês.
Antônio meneou a cabeça pensativo e considerou:
— Acho que você está enganado. Ele me pareceu mudado. Conversou bem, nos ofereceu um lanche caprichado. Ele nunca nos prometeu nada. Sempre foi durão.
— Não é isso que me interessa. Ele falou em Clara?
— Nem tocou no nome dela.
— Como assim? Mandei vocês lá para isso. Preciso saber como estão as coisas entre eles. Você é um inútil mesmo.
— Veja lá como fala comigo. Sou seu amigo, viajei, gastei dinheiro para ir até aquele sítio por sua causa.
— É, mas cuidou mesmo foi de arrumar sua vida.
— O que quer? Não podia deixar que ele soubesse por que foi até lá. Depois, também tenho de cuidar dos meus interesses.
Acho bom mesmo. Faça enquanto pode. As coisas podem mudar.
— O que quer dizer com isso?
— Nunca se sabe. A vida tem seus mistérios. Assim como ele ficou rico, pode vir a perder tudo de novo.
— Você está mal-humorado. Desde quando anda bebendo cedo?
— Você não tem nada com isso. Bebo para afogar minhas mágoas.
— Se continuar assim nunca vai conquistar Clara e ainda pode perder o emprego.
— O que é isso? Você agora virou conselheiro? Não sabe nem cuidar da própria vida e se mete a cuidar da dos outros. Chega de conversa fiada. Se quer acreditar que Osvaldo vai lhe
dar mesada, emprego, tudo, faça bom proveito. Quando der com os burros n’água, virá correndo me pedir ajuda, como sempre fez. Mas desta vez vou querer fatos concretos antes de dar-lhe algum dinheiro. Consiga as informações, e eu lhe pagarei.
Antônio olhou o rosto corado de Válter e decidiu contemporizar. Afinal, ele poderia ter razão.
— Não se ofenda, amigo. Essa foi uma primeira visita. Verei o que posso conseguir.
— Que seja breve. Não agüento mais esperar pelo pior.
Antônio despediu-se e foi para casa. Neusa, vendo-o entrar, foi dizendo:
— Faço votos de que Osvaldo resolva logo. Consegui fazer um almoço simples com dificuldade. Amanhã não temos dinheiro nem para o pão.
— Válter não acredita que Osvaldo vai nos dar mesada.
— Deixe-o. Está com raiva por ter ficado preso. Apesar do coração duro, Osvaldo
prometeu, e ele sempre cumpriu o que prometia.
— Estou torcendo para isso.
Osvaldo, acompanhado de Rosa e José, regressou à casa da cidade na hora do almoço.
Havia conhecido Honório, um cunhado do antigo caseiro, e o contratara. Simpatizara com ele à primeira vista. Homem do campo, amava a natureza, conhecia profundamente aquelas
terras e as plantas.
Era exatamente o que Osvaldo precisava. Ofereceu bom salário e moradia. Mandou ampliar e reformar uma das casas, e logo ele se mudaria com a família.
Enquanto a casa não ficava pronta, Honório iria todos os dias cuidar das plantas e ajudar na reforma. Com ele cuidando das plantas, Osvaldo teria mais tempo para providenciar os
documentos para seu empreendimento, planejar e comprar o que precisava.
Felisberto esperava-o para o almoço. Depois de comerem, foram tomar o café no escritório.
Conversaram sobre o projeto e, no fim, Osvaldo comentou:
— Meu irmão esteve no sítio com minha mãe. Estão sem dinheiro e decidi dar-lhes uma mesada. Gostaria que providenciasse isso.
— Está certo. Quanto pretende dar?
— O suficiente para viverem modestamente. Você conhece Antônio. Se tiver dinheiro, nunca mais vai querer trabalhar.
Felisberto sorriu e concordou. Osvaldo continuou:
— Talvez uns mil reais. Vou arranjar-lhe trabalho. Prometi a mesada sob essas condições.
— Não será fácil empregá-lo. Eu mesmo, a pedido de Ester, tentei algumas vezes. Mas ele sempre dava um jeito de escapar.
— Ele vai trabalhar comigo, sob minha orientação.
Felisberto olhou surpreendido para ele. Osvaldo sempre mostrara aversão pelos parentes.
— Vai precisar de paciência.
— Talvez não seja tão difícil quanto parece. Estive pensando na maneira como ele foi educado. Minha mãe enviuvou muito cedo, com dois filhos pequenos para criar. Ficou insegura. Julgou-se incapaz. Por isso me mandou para casa de tia Ester. Viveu na defensiva a vida toda. Tornou-se pessimista, e em qualquer ocasião sempre imaginava o pior.
Chamava isso de prudência; eu digo que era negativismo, pois nada que ela temia aconteceu. Apesar de ser uma mulher forte, decidida, não confiou na própria capacidade.
Seu conceito de Deus é mais supersticioso do que verdadeiro. Colocou toda a sua força na defensiva. Tomou- se agressiva, mal-humorada. Antônio sempre foi muito ligado a ela.
— Tenho observado que a fé, quando sincera, dá coragem, força
— Observei que em sua insegurança eles inverteram alguns valores na tentativa de evitar sofrimento. Para eles, bondade é fraqueza, ser inteligente é ganhar dinheiro sem trabalhar,
cooperar é ser explorado. Felicidade é comprar tudo que quiser e viver só se divertindo. O dinheiro acabou se tornando a coisa mais importante.
— Conheço muita gente que pensa dessa forma.
— Eles não percebem que no universo tudo se movimenta, cada ser tem uma tarefa a cumprir. A vida cobra de cada um que faça sua parte. E o preço ao receber o dom da vida.
A maioria não pensa assim.
— É por causa disso que o mundo está no caos. A sociedade na Terra só vai melhorar quando todos aprenderem essa verdade. Enquanto isso, o sofrimento é inevitável.
— Entendi. Na tentativa de evitar o sofrimento, entram na ilusão que fatalmente os levará a ele.
— Exatamente. Meus amigos espirituais me ensinaram a observar atentamente os fatos do dia-a-dia e tentar descobrir como a vida trabalha. Aprendi alguns conceitos óbvios mas que,
sob o verniz da educação formal, poucos conseguem enxergar. Para isso há que questionar as regras preestabelecidas e procurar melhores respostas. Fazendo isso, aos poucos vamos
tendo uma visão da vida mais verdadeira e, a partir daí, com naturalidade, vamos modificando nossos conceitos. Assim, gradativamente vamos aprendendo a viver melhor, com mais coragem e serenidade. Pretendo passar esse conhecimento para minha mãe e
Antônio.
— Acha que vai obter resultado?
— Não sei. Desejo tentar, dar-lhes a oportunidade de olhar a vida de outra forma. Porém o resultado depende deles. Vou mostrar-lhes o que aprendi, mas só eles podem decidir se aceitam ou não. De qualquer forma, estou pensando em mim. Quero fazer a minha parte.
Assim, estarei em paz.
Felisberto olhou para Osvaldo com respeito e carinho.
— Você me surpreende. Dona Ester gostaria de ouvi-lo dizer essas coisas.
— Quem garante que ela não está nos ouvindo?
Felisberto sorriu e considerou:
— Gosto de seus projetos filantrópicos, das verdades que tem me mostrado, mas ainda não consigo acreditar que Dona Ester possa estar nos ouvindo. Tenho pensado no assunto, lido a respeito, mas preciso de uma prova mais convincente.
— Terá, quando chegar a hora.
Passava das cinco quando Marcos e Carlos chegaram. Abraçaram o pai com carinho.
— Soubemos que havia chegado e viemos agradecer sua ajuda —disse Marcos.
— É mesmo, pai — acrescentou Carlos. — Já soube o que aconteceu?
— O que foi?
— O detetive não o procurou?
— Cheguei na hora do almoço e ainda não falei com ele. Vou ligar para lá. Mas vocês me deixaram preocupado... O que aconteceu?
Carlos respondeu:
— Foi aquele sujeito. Se não fosse você ter colocado o detetive para nos proteger, nem sei o que teria acontecido.
Marcos interveio e em poucas palavras contou tudo, conforme Clara lhes havia relatado.
— Esse homem está se revelando perigoso. Eles deram queixa na polícia?
— Sim. Ouvi mamãe conversando com a Rita. Ela disse que gostaria de agradecer sua ajuda.
Um brilho de emoção passou pelos olhos de Osvaldo.
— Ela disse isso?
— Bem, ela reconheceu que a presença do detetive foi maravilhosa — interveio Carlos. — Eu senti que ela gostaria de agir pessoalmente mas não teve coragem. Afinal, vocês não se falam há muito tempo.
— Ela não precisa me agradecer. Estou fazendo isso para protegê-los. Vou ligar para Durval. Quero saber tudo e pensar nos próximos passos.
Pegou o telefone e discou. O detetive não estava, e Osvaldo deixou recado.
Os rapazes resolveram ficar e esperar. Eles também querem saber detalhes.
Estava anoitecendo quando Durval chegou à casa de Osvaldo.Vendo-o em companhia dos filhos, hesitou em falar no assunto. Osvaldo esclareceu:
— Eles sabem de tudo. Pode falar.
— Conforme eu havia suspeitado, o sujeito está ficando inquieto e perigoso. Leia.
Entregou-lhe algumas páginas nas quais descrevia com detalhes os fatos. Quando terminou, ele considerou:
— Não podemos deixar as coisas como estão. Vou falar com Felisberto para que tome as devidas providências legais para mantê-lo preso.
— Infelizmente ele já foi solto.
Osvaldo, irritado, indagou:
— Então o que nos aconselha?
— Ele ficou muito assustado. Nunca imaginou que alguém estivesse vigiando. Isso deve mantê-lo afastado por algum tempo Contudo, ele me pareceu muito irritado. Desconfio que vai dar um tempo mas não desistirá. Por algumas frases que ele disse, notei que é rancoroso
e bastante vaidoso para se conformar em perder. Para ele, esse caso se tornou uma competição em que vale tudo.
— Parece uma obsessão.
— De fato, é. Por isso não podemos descuidar. Além disso, anda bebendo demais.
Osvaldo ficou pensativo por alguns segundos, depois disse:
— E se eu for falar com ele?
Marcos interveio:
— Isso não. Ele está com muita raiva de você.
— Não quero que nada lhe aconteça — reforçou Carlos.
— Acalmem-se. Pensei em conversar com ele, sem brigar.
— Na atual circunstância, isso poderá deixá-lo com mais raiva. Ele tem muito ciúme de
você — disse Durval.
— Ciúme de mim? — estranhou Osvaldo. — Nunca mais estive com Clara. Não pode ser.
— Mas é. Eu o ouvi dizer a Dona Clara que vocês estavam pensando em voltar a viver juntos e que ele nunca iria permitir.
— Ele disse isso?
— Eu sempre soube disso — confirmou Carlos. — Ele não suporta a idéia de que vocês voltem a ficar juntos.
— Foi sua mãe quem disse isso? — indagou Osvaldo.
— Não — respondeu Carlos —, mas é fácil notar. Ele voltou a persegui-la depois que você apareceu. Antes havia sumido.
— Tem razão — concordou Marcos. — Como não pensei nisso antes?
Durval sorriu dizendo:
— Seus filhos são muito observadores. Foi isso mesmo. Como Dona Clara o rejeita, ele imagina que é por sua causa, já que ela nunca arranjou outro depois que se separaram.
Osvaldo sentiu o coração bater descompassado e procurou controlar-se. Essa idéia era disparatada. Havia muito tempo que Clara deixara de amá-lo. Baixou a cabeça na tentativa
de esconder a emoção e tornou:
— Ele deve estar mesmo fora de si. Esquece-se de que nos separamos porque ela deixou de me amar.
— Ele está descontrolado emocionalmente. Esse é o perigo. Mas vamos continuar a vigiá-lo.
— Faça isso. A qualquer atitude suspeita, avise-me. Depois que Durval e os meninos se foram, Osvaldo sentou-se no sofá e fechou os olhos. Desejava fazer alguma coisa mais, contudo estava de mãos amarradas.
Não se sentia com coragem de aproximar-se de Clara. Para que perturbá-la? Não desejava
os agradecimentos dela. Sua proteção a fizera sentir-se mais culpada pela traição do passado.
Talvez estivesse com pena dele. Isso seria insuportável.
Ele a amava como mulher. Ela sempre seria o amor de sua vida.Estava resignado a continuar amando-a a distância, mas nunca acreditaria que ela o procurasse arrependida
com pena do sofrimento dele.
Percebia claramente que seus filhos desejavam que se reconciliassem. Isso seria impossível.
Ele nunca aceitaria as migalhas do amor ela se dispusesse a oferecer-lhe como recompensa pelos seus sofrimentos passados.
Naquele momento arrependeu-se de ter voltado. Se houvesse ficado no interior, nada teria acontecido. Talvez estivesse em tempo ainda de voltar para lá definitivamente.
Pensou nos projetos que havia feito, nas conversas que tivera com Antônio, no trato com os espíritos. Havia pedido oportunidade para dedicar-se ao trabalho espiritual. Deus
concedera-lhe bens, colocara em suas mãos meios de realizar o trabalho.
Sempre que ele precisava de algo para o andamento do projeto as informações, as pessoas, as coisas vinham ter a suas mãos com facilidade. Eram sinais de que estava trabalhando a
favor da vida, de seu caminho estava certo.
Seria justo jogar fora todas essas aspirações por causa de seus problemas pessoais?
As lágrimas desciam pelas faces e ele as enxugou decidido. Seu progresso espiritual era mais importante do que as satisfações momentâneas do mundo. Ele amava Clara e esse amor deveria ser luz em caminho, não dor. Amava os filhos, e esse sentimento deveria ser
instrumento para que eles aprendessem os verdadeiros valores da alma.
Ali mesmo formulou o firme propósito de seguir adiante, procurando fazer sua parte da melhor maneira. Sentia que agindo assim estava agindo de acordo com o que aprendera.
Tinha certeza de que um dia conseguiria encontrar a felicidade e a alegria de viver.
Aquele era o momento de plantar, e ele o faria da melhor maneira possível. A colheita viria na hora certa.
Osvaldo sentiu-se mais confiante e calmo. Quanto a Válter, aconteceria o que teria de acontecer. Fosse o que fosse que lhes reservasse o futuro, ele enfrentaria com coragem e
disposição, na certeza de que não cai uma folha da árvore sem que Deus permita.
Apesar de sentir-se protegida, nos dias que se seguiram Clara conseguia controlar o nervosismo quando ia para o trabalho ou voltava para casa.
Antes de sair, olhava para todos os lados para ver se Válter a estava esperando.
O que via era um dos funcionários de Durval acompanhando-a discretamente. O detetive os havia apresentado a ela a fim de que se sentisse mais segura vendo-os.
Assim decorreu um mês sem que Válter aparecesse, e Clara começou a sentir-se
incomodada pensando em quanto Osvaldo estaria gastando para manter aquela segurança.
O mais provável era que Válter, assustado, teria desistido de persegui-la.
Comentando com Domênico, ele considerou:
Espere um pouco mais para ter certeza.
— Eu conheço Válter. Nunca foi violento.
— Mas ameaçou-a com um revólver. Não se esqueça disso.
— Ele havia bebido. Nunca andou metido com a polícia. Acho que o susto valeu. É hora de Osvaldo parar de gastar dinheiro por minha causa. Isso me constrange muito.
— Por quê? Ele fez isso espontaneamente.
— Se meus filhos não tivessem se queixado, mostrado preocupação, ele não teria feito isso.
— Você acha que não merece os cuidados dele.
— Não mereço mesmo. Ele está dando uma de bom, e os meninos a cada dia ficam mais apegados a ele.
— É natural que amem o pai, que se sintam bem reconhecendo que é um homem bom.
Clara suspirou contrariada:
— Preferia que ele continuasse longe. Durante esse tempo, vive mos em paz. Até Válter deixou de me amolar.
Domênico olhou sério para ela e disse:
— Não fuja do problema, Clara. É hora de enfrentar o passado com coragem, não de procurar culpados.
— Você não compreende que, quanto mais ele demonstra ser bom, mais minha culpa aparece?
— Não se iluda. Quando a força das coisas reúne as pessoas, não é para saber de quem é a culpa dos problemas do passado, mas para que essas culpas se diluam no entendimento.
— Nenhum entendimento será possível entre nós.
— Não é o que me parece. Ele tem se mostrado interessado em ajudar os filhos e em viver em paz.
— Um homem nunca perdoa ou esquece uma traição.
— Essa é a sua versão. Se isso fosse verdade, ele teria voltado cobrar, pedir explicações.
Pelo que me contou, ele nunca a acusou contrário: reconhece que o amor é livre e você tem o direito de escolher a quem amar.
— É disso que eu duvido. Osvaldo sempre foi muito apaixonado ardente. Não o imaginava capaz dessa passividade.
— Quase sempre as pessoas são o contrário do que imaginamos Se eu fosse você, procuraria saber a verdade. Tenho certeza de que faria muito bem.
— Tenho medo da reação dele. Sinto vergonha também.Só em pensar nisso, meu estômago embrulha, as pernas tremem. Se ao menos ele voltasse para o mato...
Domênico sorriu e disse:
— Pare de sofrer pelo que já foi. Hoje tudo está diferente.Você é uma mulher corajosa, honesta, trabalhadora. Criou seus filhos com dignidade. Está na hora de usar toda a sua coragem, sua força, esclarecer definitivamente sua posição com Osvaldo.
— Rita também me aconselhou ir ter uma conversa com ele— Faça isso.
—Definitivamente, não. Isso, não.
Naquela noite, Clara conversou com os filhos:
— Vocês vão estar com seu pai amanhã. Diga-lhe que não preciso mais de segurança.
Válter sumiu e acho que nunca mais vai incomodar. É hora de parar de gastar dinheiro com isso.
— Eu me sentiria mais tranqüilo se esperasse um pouco mais respondeu Marcos.
— Eu também — acrescentou Carlos.
— Bobagem. Ele desistiu.
Osvaldo recebeu o recado e conversou com Durval.
— Depois que o advogado dele conseguiu o hábeas corpus para que ele espere o
julgamento em liberdade, de fato ele nunca mais foi à procura dela. Nós o temos seguido: continua bebendo bastante, mas tem trabalhado e levado vida normal. A propósito, está
sempre na casa de sua mãe. É companhia constante de seu irmão.
— Sempre foram amigos.
— Talvez não seja boa companhia para ele.
— Antônio vai começar a trabalhar comigo. Espero que a deixe essa amizade. Em todo
caso, estarei atento. Apesar de Clara achar que não há mais nenhum perigo, quero que vocês continuem vigilantes. Talvez não tão ostensivamente, mas à distância.
— Concordo. É provável que ele esteja esperando nosso afastamento para investir de novo.
— É o que estou pensando. Por isso, não descuide.
— Deixe comigo. Sei como fazer.
Depois que Durval se foi, Osvaldo ficou pensando em Antônio. Iria chamá-lo para começar a trabalhar.
No sítio, Honório cuidava do galpão, onde selecionava as ervas para Osvaldo começar as pesquisas. Ele se mudara para lá com a família. Seu filho Orlando ajudava-o no cultivo da
terra, a esposa cuidava dos afazeres da casa. Sua filha Marta tinha ficado na capital, morando com uma tia, porque havia concluído seus estudos e trabalhava no laboratório de
um hospital.
Osvaldo já havia aberto uma firma para comercializar as ervas medicinais. Contratara um farmacêutico para ter amparo legal e produzir seus próprios medicamentos. Colocaria
Antônio para ajudá-lo na área administrativa.
Antes de mandar os primeiros produtos para análise a fim de obter permissão para comercializá-los, teria de preparar rótulos e também embalagens.
Havia muito trabalho a ser feito, e Antônio seria de grande utilidade. Telefonou para a casa da mãe perguntando por ele.
— Antônio saiu. Mas não deve demorar. Até que enfim você se lembrou de nós. Quer falar com ele por causa do emprego?
— Sim. Vocês estão recebendo o dinheiro direitinho?
— Sim, estamos. Mas ainda é muito pouco. Não dá para nossas despesas.
— É melhor do que nada. Logo Antônio vai começar a trabalhar e a renda de vocês vai aumentar.
— Quanto vai lhe pagar?
— Vou conversar com ele. Desde já adianto que, se ele se esforçar, vai ganhar bem.
— Ele é doente, não pode fazer muito esforço. Veja lá o que vai exigir dele.
— Fique tranqüila. Sei o que estou fazendo.
Ela desligou e, quando Antônio chegou, foi dizendo:
— Seu irmão ligou e pediu para ir à casa dele conversar. É sobre o emprego.
— Ele disse o que vou fazer e quanto vou ganhar?
— Hmm... A julgar pelo pouco que ele está nos dando de mesada, não tenha muitas esperanças nesse emprego. Não quis adiantar nada. Só falou que, se você se esforçar, vai ganhar bem. Acho que ele quer é explorar você, isso sim.
— Se ele fizer isso comigo, não aceito. Acha que sou bobo?
Mais tarde, quando Antônio chegou à casa do irmão, este já o esperava no escritório.
Sentados um em frente ao outro, Osvaldo foi direto ao assunto:
— Estou precisando muito de sua ajuda.
Não era isso que Antônio esperava ouvir. Olhou admirado para o irmão.
— Mamãe disse-me que era para falar do emprego.
— Também. Estou começando um trabalho muito importante e você é a pessoa certa para ajudar-me a realizá-lo.
Antônio endireitou-se na cadeira e levantou a cabeça, fitando-o sério. Tinha ido preparado para ouvir exigências, cobranças, análise de seus pontos fracos. Pelo caminho havia se
preparado para explicar por que não conseguia emprego fixo. Tinha a lista de desculpas na ponta da língua. A atitude inesperada de Osvaldo deixou- o sem resposta.
— Para que me entenda, preciso fazer-lhe algumas confidências. Trata-se de assunto muito íntimo. Espero contar com sua discrição. Nem mamãe poderá saber disso.
— Bem... não esperava isso. Você nunca me contou nada de sua vida íntima.
— Tem razão. Reconheço isso. Porém você é meu irmão. Nós nos separamos desde muito cedo, não tivemos ocasião para nos conhecermos melhor. Agora chegou o momento.
Vamos trabalhar juntos e meu projeto não poderá ser realizado sem a união de todos os participantes. Por isso chamei-o aqui hoje para essa conversa. Quero que saiba onde está entrando e por quê. Para isso preciso contar-lhe algumas passagens de minha vida. Quero
que me prometa que esse assunto ficará entre nós. Será nosso segredo.
Antônio sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Lembrou-se de Válter. O que Osvaldo diria se soubesse que ele estava ali para fazer exatamente o contrário?
Apesar disso, havia alguma coisa no tom de voz de Osvaldo que o impressionou muito, e foi sem pensar que ele respondeu:
— Prometo. O que me contar morrerá comigo.
— Está certo.
Osvaldo começou a falar sobre sua infância, seu namoro, casamento, o nascimento dos filhos. Sua decepção, sua fuga desesperada, a tentativa de suicídio, o socorro dos amigos e finalmente a descoberta da espiritualidade.
Antônio ouvia-o comovido. A sinceridade do irmão e sua luta interior para refazer a vida o impressionaram. Nunca ninguém havia conversado com ele daquela forma.
Sentiu-se valorizado, com vontade de mostrar-se solidário de alguma forma. Osvaldo concluiu:
— Todos temos muitos desafios nesta vida. A educação, a família, a sociedade não nos preparam para enfrentá-los. Ao contrário. Enchem-nos a cabeça de regras, preconceitos, ilusões, que, por serem falsos, um dia a vida os vai destruir. Então ficamos sem rumo,
sofrendo, sem saber como recomeçar. Hoje sei que nossa maneira de enxergar a vida nos faz tomar atitudes cujos resultados teremos de colher algum dia. Isso é lei universal.
Ninguém escapa à colheita de sua semeadura. Aprendi também que está em nossas mãos rever nossos conceitos, procurar os verdadeiros valores, que, por serem eternos, nunca
mudarão. Dessa forma, nossas atitudes serão mais lúcidas e nossa vida mais serena. O sofrimento irá embora.
— Este mundo é um vale de lágrimas. Até os padres dizem isso. Não existe felicidade.
— Claro que viver aqui tem seus desafios. A Terra é uma escola espiritual onde nos matriculamos para desenvolver nossa consciência. Temos de evoluir, porque esse é o caminho da felicidade. Essa é a destinação de cada um de nós. Mas se você olhar em volta,
se observar as pessoas que conhece, notará que os problemas que têm de enfrentar se devem à maneira errada de fazer as coisas.
Antônio ficou calado por alguns instantes pensando em algumas pessoas que ele conhecia.
De fato, elas provocavam situações que ele tinha certeza que nunca dariam bons resultados.
— Bom... isso é. A mãe, você sabe, ela gosta de ir consultar a cartomante. Às vezes vai a um centro espírita. Sempre pensei que ela estivesse iludida. Você está dizendo que essas coisas existem mesmo?
— Estou dizendo que existe vida além da vida. Quem morre não acaba. Seu espírito vai viver em outro mundo, e lá tudo continua.
— Você nunca foi religioso. E difícil aceitar que você acredite em espíritos.
— Eu não sou místico nem religioso, se quer saber. Mas descobri uma verdade que mudou minha vida, isso não posso negar.
Um dia você também terá sua experiência espiritual. Então entenderá o que estou dizendo.
— Cruz credo! Tenho medo de mexer com isso.
Osvaldo sorriu e respondeu:
— O fato de ignorar não quer dizer que esteja livre de ser rodeado e influenciado por eles.
O mundo astral é coexistente com o nosso. Estou lhe contando tudo porque, se vai trabalhar comigo, terá de respeitar meu trabalho.
— Terei de lidar com espíritos? — indagou ele, assustado.
— Claro que não. Você vai trabalhar na área administrativa. Mas eu quero que você me ajude. Você é melhor do que eu, mais bondoso. Enquanto eu larguei a família, você cuidou da mãe com dedicação e boa vontade. Ser bom trabalhador com alegria, é gratificante.
Tenho certeza de que você vai gostar muito do nosso trabalho.
Antônio sentiu os olhos úmidos. Foi com voz firme que respondei.
— Pode contar comigo. Quando começo a trabalhar?
— Amanhã mesmo. Venha aqui às nove. Tenho uma lista de coisas para você fazer.
Antônio abraçou o irmão dizendo sério:
—Estarei aqui na hora certa.
Ele saiu pensando em tudo que haviam conversado. Durante o trajeto, passagens de sua infância lhe voltaram à mente: alguns sonhos da adolescência que nunca realizara, projetos
que arquitetara mas que não levara adiante.
Quanto tempo perdido! Sua vida era vazia, triste, solitária. Pensando nos dias sem objetivo em que gastava o tempo insatisfeito, algumas lágrimas vieram-lhe aos olhos.
Pegou o lenço e tratou de enxugá-las, olhando dos lados para se algum dos passageiros do ônibus havia notado. Chegou em casa sem vontade de conversar.
Neusa aguardava-o com ansiedade e foi logo dizendo:
— E então? Pela sua cara, vejo que não deu certo. Eu sabia. Osvaldo nunca vai mudar.
Antônio olhou para ela como se a estivesse vendo pela primeira vez.
— Deu certo, sim. Começo amanhã.
— É? E quanto vai ganhar?
Foi então que ele se lembrou de que nem haviam falado nisso.Respirou fundo e respondeu:
— Ainda não sei. Agora vou tomar um banho e arrumar umas coisas. Amanhã não quero perder a hora.
Neusa abriu a boca. Ia falar, mas ele não lhe deu tempo, subindo as escadas e indo para o quarto. Intrigada, ela pensou:
“O que será que aconteceu? Ele está diferente. Escapou agora, mas logo mais terá de me contar tudo direitinho.”
E foi para a cozinha cuidar do jantar.
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Quando é Preciso Voltar
SpiritualA traição da mulher amada doía no fundo do coração de Osvaldo. Açoitado pela desilusão, ele não sabia o que fazer. Como viver carregando o peso dessa dor? Como enfrentar essa dura realidade e continuar vivendo? Amargurado, ele não pensou nos dois fi...