Capítulo 1

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Enquanto ele olhava através da janela do trem, seu pensamento se perdia em amargas reflexões, seus olhos não percebiam as paisagens que se sucediam e seus ouvidos ignoravam o ruído cadenciado que movimentava seu corpo no banco duro e frio.
Ele não queria olhar para trás. Preferia seguir adiante, recomeçar. Entretanto, estava sendo difícil. O passado o oprimia e ele não sabia como sair dele, como esquecer, como apagar da memória aqueles mo mentos de desilusão e de agonia.
Tudo passa neste mundo...
Alguém, à guisa de consolo, dissera-lhe isso, e ele pensou:
“Talvez porque esteja olhando do lado de fora e não seja ele o envolvido. Tudo fica fácil quando não se trata de nós. Todos temos sempre na ponta da língua um remédio para a dor alheia, uma solução infalível. Para mim esse recurso não vale nada.”
Inconformado, ele deixara sua casa andando sem destino, preso aos seus pensamentos angustiados. O que ele queria mesmo era sair dali, deixar tudo, como se, indo embora, estivesse arrancando a ferida que o consumia.
Dirigira-se à estação, tomara um trem, sem se importar para onde o levaria. Queria fingir, esquecer. No entanto, embora o trem se distanciasse, a mágoa seguia com ele, não o
deixava.
Ah, a dor da traição! A vergonha, a desilusão! Dez anos de casamento, dois filhos, uma relação que parecia bem estabelecida. Nada disso era verdade. Nada estava bem. Tudo
estava errado. Quando ela teria começado a trair? Desde quando ela tripudiava sobre seus sentimentos?
A esse pensamento, a angústia voltava mais forte do que nunca e a cena chocante dos dois se beijando reaparecia diante de seus olhos.
O susto deles percebendo sua presença, a tentativa de explicar, como se isso fosse possível.
O medo de que ele os matasse.
Vontade ele teve, mas como poderia? Não acreditava que a morte fosse solução. Alguns parentes mais próximos esperavam isso. Ele continuou preso ao fio de seus pensamentos:
“Eu sei que eles esperavam. Chegaram até a dizer que a lei estaria do meu lado se eu resolvesse fazer justiça com as próprias mãos. O adultério é justificativa mais do que aceita
pela justiça. Mas e eu? Como ficaria? Não sou um assassino. Não tenho o direito de tirar a vida de ninguém, seja lá pelo que for.”
O pensamento de que Clara não o amava mais o feria fundo. Ele tinha consciência de haver cumprido da melhor maneira sua parte compromisso conjugal. Ela nunca demonstrara estar aborrecida nem sem interesse.
Haviam passado tantos momentos bons juntos! Tantas alegrias esperanças! Ela com certeza
esperava mais. Por que nunca falara nada? Por que não expusera sua insatisfação para que pudessem melhora relacionamento?
Ele tinha a certeza de ser compreensivo. As pessoas costumavam apontá-los como exemplo de felicidade conjugal. Que ilusão! Ela não era feliz! Ele havia fracassado. Por mais que tentasse esquecer, o pensamento de fracasso o oprimia. Ele era o culpado de tudo. Não sou alimentar a felicidade do seu lar.
Depois disso, haveria lugar para ele no mundo? Não seria melhor desistir de viver? Talvez essa viagem não conseguisse apagar a dor. Esquecer estava difícil. Onde quer que ele fosse,
a ferida iria junto, estava dentro dele.
Morrer. Apagar todas as lembranças. Isso sim seria o melhor. Nunca mais lembrar de nada, descansar. Não ver mais a cena odiosa, nem contemplar a própria impotência, o próprio
fracasso. Sim. Talvez essa fosse a solução.
Ninguém diria que ele era um fraco, um covarde ou um insensível. Era preferível acabar com a vida a matar. Poderia atirar-se do trem e acabar de uma vez com tudo.
Osvaldo levantou-se do banco e dirigiu-se para a porta do fundo vagão. Abriu-a e saiu, fechando-a de novo. Segurou na grade mureta sentindo o vento agitar seus cabelos e o corpo sacudido pelos movimentos.
O trem passava por um barranco. Ele estava no último vagão. Olhando os trilhos que iam ficando para trás, pensou:
“Se eu me atirasse barranco abaixo, seria o fim. O esquecimento, a paz.”
Pensou nos dois filhos pequenos. Um dia eles iriam entender seu gesto. Decidido, fechou os olhos e atirou-se.
Seu corpo rolou pela ribanceira e ele desfaleceu. O trem seguiu adiante, e ninguém viu o que aconteceu.
Muitas horas mais tarde, dois homens em uma carroça passando pela estrada viram o corpo.
Pararam imediatamente, desceram e foram até lá.
Pai, acho que ele está morto — disse o jovem, colocando a mão sobre o peito de Osvaldo.
Pode estar só desfalecido. Vamos colocá-lo na carroça. Com cuidado, porque pode ter quebrado alguma coisa.
— Isso pode complicar. E se ele estiver morto?
— Se estiver morto, daremos uma sepultura digna. Não temos nada com isso e não precisamos temer. O que devemos é ajudar. Vamos.
Com muito cuidado, eles levantaram Osvaldo e puseram-no na carroça, sobre o material que haviam ido comprar na cidade.
—Pai, não sei, não. Ele está pálido feito cera. Não sei se fizemos bem trazendo-o.
— Era nosso dever. Deus o colocou em nosso caminho para que pudéssemos ajudar. Aprenda isso, Diocleciano.
— Sim, pai.
Chegando ao pequeno sítio onde residiam, pararam em frente a casa simples mas limpa e imediatamente dois cachorros vieram latindo alegremente, seguidos por duas moças e uma senhora. Vendo o corpo dentro da carroça, pararam curiosas.
— O que aconteceu, João? — perguntou a mulher.
—Encontramos este homem caído no mato. Parece mal.
A senhora aproximou-se de Osvaldo e colocou a mão sobre seu peito.
—Não dá sinal de vida— disse Diocleciano. — Acho que está morto.
— Não está, não — respondeu ela. — Mas está mal.
—Eu não podia deixá-lo lá sem socorro.
— Fez bem, João. Traga-o para o quarto de Juvêncio. Ele foi embora mesmo. Vamos ver o que podemos fazer.
As duas moças olhavam curiosas. A mãe disse-lhes:
— Vocês duas, vão pôr água na chaleira para ferver. Vamos tentar acordá-lo. Se não melhorar, podemos chamar o seu Antônio do vale.
—Vocês dois, carreguem-no com cuidado. Pode ter quebrado alguma coisa.
Os dois pegaram Osvaldo e o levaram até o pequeno quarto que pertencera a um sobrinho de João e que se mudara para a cidade havia poucos dias.
— É melhor colocá-lo na esteira primeiro. Está coberto de poeira.
Rapidamente, a esposa de João apanhou uma bacia e voltou em seguida com água quente e sabão.
— Diocleciano, pode sair enquanto João me ajuda a lavá-lo. Quando for para colocá-lo na cama, eu chamo.
O rapaz obedeceu e foi logo cercado pelas duas irmãs, que queriam saber todos os detalhes.
Embora não tivesse muitas coisas para contar, ele fez suspense e fantasiou o mais que pôde.
Quando a mãe chamou, ele atendeu e ajudou o pai a colocar Osvaldo na cama.
—E agora, o que faremos? Ele não dá sinal de vida. Parece mesmo morto.
— Morto ele não está. Ponha a mão aqui. O coração está batendo. Vou pôr um saco de água quente nos pés, estão gelados.
Ela providenciou tudo, mas Osvaldo não recobrava os sentidos.
Maria apalpou cuidadosamente o corpo dele, dizendo ao marido:
— Parece que não quebrou nada. Não há sinal disso nem nos lugares onde ele bateu que estão roxos. Veja você.
João apalpou e concordou:
— Ele parece que não quebrou mesmo nada. Mas quem sabe bateu a cabeça, machucou por dentro.
— É, pode ser. Nesse caso é melhor mesmo chamar seu Antônio. Ele é um bom curador.
— Agora já está quase escurecendo. Ele mora muito longe. Amanhã cedinho Diocleciano vai buscá-lo.
— Vou matar uma galinha e fazer um caldo. Seu Antônio vai ficar para o almoço. Ele gosta muito de galinha.
— Mande Aninha fazer um bolo de milho para o café.
Maria concordou e disse:
— Vou fazer um chá de arnica. Quem sabe ele consegue beber um pouco. Também vou fazer umas compressas nos lugares inchados.
— Isso, mulher. Talvez ele acorde antes de amanhã. Vou chamar o Brinquinho para tomar conta dele.
Saiu para o quintal chamando:
— Vem, Brinquinho. Você vai ficar aqui tomando conta dele. Se ele acordar, me avise.
Maria riu enquanto dizia:
— Como um cachorro vai avisar?
— Ele fala comigo sempre. Ele late e eu sei o que ele quer dizer.
Ela abanou a cabeça.
— Você e suas idéias...
— Ele é tão inteligente quanto uma pessoa. Você vai ver.
Enquanto ela na cozinha preparava o chá, João olhando o rosto arranhado e um pouco inchado de Osvaldo pensava: como aquele moço fora parar ali? Tinha boas roupas, parecia
pessoa da cidade e de trato, o que estaria fazendo por aquelas bandas? Teria sofrido algum acidente? Não havia nenhum indício no local. Talvez houvesse alguns documentos em suas
roupas.
Maria trocara-as por uma limpa. Foi procurá-la.
— Maria, onde estão as roupas do homem?
— Na tina para lavar. Por quê?
— Quero ver se há alguma coisa, algum documento. Já procurou?
— Ainda não. Melhor você ver.
João saiu e voltou logo com uma carteira e alguns documentos na mão.
— Olhe aqui. O nome dele é Osvaldo de Oliveira. Nasceu em São Paulo. Aninha leu tudo para mim. Tem dinheiro na carteira.
— Vamos guardar tudo direitinho.
— Está certo. Parece gente de bem.
— Não preciso de documento para ver isso. Olhando nele eu já vi. É gente boa.
— Como terá se metido nessa aventura? O que estará fazendo por aqui?
Maria deu de ombros:
— Saberemos tudo quando ele acordar.
— E se ele não acordar?
— Não diga isso. Se ele não acordar até amanhã, seu Antônio dá jeito.

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