Capítulo 16

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Clara apressou o passo, procurando vencer rapidamente a distância que faltava para chegar ao ateliê. Mas não conseguiu escapar de Válter, que a alcançou, segurando seu braço.
— Espere. Está fugindo de mim?
— Estou atrasada. Não posso perder tempo.
— Temos de conversar.
— Não tenho nada a falar com você.
Ela puxou o braço e continuou caminhando depressa. Válter a seguiu:
— Vou esperá-la no fim da tarde. Hoje não me escapa. Vai ter de me ouvir.
— Não quero. Deixe-me em paz.
— Não posso. Você não sai do meu pensamento. Iremos conversar em algum lugar discreto. E importante para nosso futuro.
— Meu futuro não tem nada a ver com você. Tire essa idéia da cabeça.
Haviam chegado a seu destino, e Clara entrou no prédio quase correndo.
Domênico, vendo-a chegar ofegante, perguntou:
— Aconteceu alguma coisa? Você está pálida.
— O de sempre. Válter agora deu para me perseguir.
— De novo? Ele havia desistido.
— Também pensei isso. Mas agora não sei o que deu nele, cismou comigo outra vez.
Domênico olhou pensativo para ela, depois disse:
— Você continua indo àquele centro espírita?
— Sim. Por quê?
— Você está nervosa, e a ajuda espiritual lhe trará calma.
— Nos últimos tempos minha vida estava tranquila. Consegui esquecer o passado, manter minha família, pensei que tudo continuaria assim. De repente as coisas mudaram. Primeiro
Osvaldo apareceu do nada querendo ver os filhos. Agora Válter, com quem em má hora me envolvi e estraguei minha vida, reaparece como naqueles tempos me perturbando. Não sei o
que pensar.
Domênico olhou em seus olhos e disse:
— Para mim está muito claro. O passado está de volta para permitir que vocês se entendam melhor.
Clara sobressaltou-se:
— Entre nós é impossível qualquer entendimento. A presença de Osvaldo me incomoda, torna maior a consciência da minha culpa; a de Válter lembra quanto fui ingênua e vulgar.
Desejo ficar distância tanto de um quanto de outro. Chega de sofrer por um passado que não tem remédio. Não posso voltar atrás e apagar o que já foi. Acho que já sofri bastante,
paguei caro por minha ingenuidade. Tenho direito de desfrutar de paz e de tranqüilidade.
— Enquanto não olhar os fatos de frente, não conseguirá o que deseja.
— Tudo que podia fazer a respeito, já fiz. Agora desejo esquecer
— Não vai conseguir enquanto conservar a culpa no coração.
— Você está dizendo que a situação não tem remédio?
—Claro que tem. Mas se você foge, recusa o remédio, como quer sarar? A evolução caminha em ciclos. A vida deu-lhes vários anos para meditação e agora os está aproximando. É sinal de que pode trabalhar seus sentimentos e procurar alternativas de
convivência que aos poucos vão diluindo o antagonismo que ainda sentem. É a chance de se libertarem de todas as mágoas e seguirem adiante. Quando isso acontecer, cada um trilhará o próprio caminho em paz.
Clara sacudiu a cabeça negativamente.
— Não. Se isso precisa ser assim, ainda não estou pronta.
— Se não estivesse, a oportunidade não viria. Do jeito que você fala, não tenho saída.
— Claro que tem. Só que deixar para depois é como jogar a sujeira para debaixo do tapete: a sujeira não aparece mas continua lá. Para você se acalmar, preste atenção no que sente.
— Ao contrário, O que mais desejo é jogar fora esta sensação de perigo que me amedronta, esta culpa que me oprime, esta cobrança que aparece forte quando recordo o passado. Sinto
raiva por Osvaldo ser sempre o marido bom, dedicado, que, apesar de haver sofrido a ponto de tentar o suicídio, não fala mal de mim.
Preferia que ele me condenasse, me odiasse, até me perseguisse. Ele é sempre impecável, enquanto eu...
Domênico colocou a mão sobre o ombro dela, dizendo com voz firme:
— Não sabia que você era tão moralista.
— Moralista, eu?
— Sim. Ao invés de criticar seu marido por ser do jeito que é, seria melhor admitir que você ainda não perdoou seu erro passado. Aconteceu há tanto tempo e você ainda deseja
continuar sendo castigada. Ou melhor, está se castigando, sofrendo, exagerando os fatos.
Não faça isso com você.
— Não é tão simples como você diz.
— É, sim. Osvaldo voltou, mas, pelo que me contou, está sendo discreto e educado. Não a incomodou em nada. Ao contrário: desejada apoiar os filhos, melhorar a condição
financeira deles. Nem se quer a procurou. Quanto a Válter, não pode obrigá-la a fazer o que não quer. Diga não com firmeza e ele acabará desistindo como da outra vez.
— Então tudo continuará como está. Você disse que a vida nos reuniu para entendimento. Isso eu não quero.
— Entendimento não significa que você deva viver ao lado deles, mas apenas que podem conversar, esclarecer pontos obscuros e acabar com a mágoa que os incomoda. Entender significa analisar as coisas do ponto de vista espiritual, compreendendo as diferenças de
cada um, aceitando sua parte de responsabilidade, seus limites e a parte deles. Feito isso,
notarão que o passado passou e tudo será diferente. Podem ou não desejar conviver. Mas isso não será penoso como agora. Dependendo de como as coisas fluírem, pode até ser
agradável estar junto.
— Você diz isso com uma certeza!
— É assim. As coisas dependem de como você as vê. Quando se olha do ponto de vista espiritual, que abrange a felicidade de todos, fica mais fácil. Pense, Clara. Aceite a presença
deles em sua vida como uma necessidade do momento, apesar de desejar desligar-se deles.
— Só em pensar nisso fico angustiada.
— Então não pense. Seja natural. Não os procure, mas, se for procurada, converse, tente dizer o que sente. Isso pode ajudar. Lembre-se que se atormentar, como está fazendo, torna
tudo mais difícil. Você diz que sabe o que quer. Então não tem o que temer. É esclarecer e posicionar-se. Apenas isso.
— Vou pensar no que me disse.
— Pense. Você tem bom senso. Logo estará melhor.
— Obrigada. Já me sinto melhor.
No fim da tarde, quando Clara saiu do trabalho, encontrou Válter à sua espera. Seu primeiro impulso foi fugir, mas lembrando-se das palavras de Domênico resolveu enfrentar.
Clara, vamos conversar ali na confeitaria.
— Estou com pressa. Tenho de ir para casa.
— Por favor, não tomarei muito tempo.
Resignada, ela o acompanhou. Talvez, se o ouvisse e explicasse de novo o que pensava, ele a deixasse em paz.
Uma vez sentados em uma mesa, ele pediu suco e alguns petiscos. Depois olhou para ela com olhos apaixonados e disse:
— Clara! Tenho sofrido tanto. Não posso esquecer o que houve entre nós!
— Sinto muito. O passado acabou. Prefiro não recordar. Gostaria que entendesse que não é
possível nada entre mim e você.
— Por quê? Somos moços ainda. Temos muitos anos pela frente. Por que ficarmos separados, sozinhos, se podemos reatar nosso amor?
— Eu não amo você. Depois, estou muito bem. Tenho meus filhos, nunca me senti só.
Válter trincou os lábios com raiva e respondeu:
— Ele voltou! Por isso está me rejeitando. Agora ele está rico você está arrependida de ter
se separado.
Clara levantou-se irritada. Válter levantou-se também, dizendo nervoso:
— Sente-se, Clara. Estou desesperado. Se não me ouvir, vai arrepender.
Havia algo na voz dele que a fez sentar-se de novo, assustada. Resolveu contemporizar:
— Você está enganado. Essa idéia nunca me passou pela cabeça Nunca mais vi Osvaldo e não pretendo ver. Se é isso que o incomoda, saiba que nossa separação é irreversível.
— Você diz isso agora. Mas sei que ele tem saído com os filhos. Está rodeando para se achegar.
Clara sacudiu a cabeça energicamente.
— Não sei de onde tirou isso. Ele nem procurou me ver, o achei muito bom. Quanto aos filhos, nada posso fazer. Ele tem direito de vê-los.
— Sei que ainda estão casados legalmente. Isso me atormenta.
— Não vejo por quê. Nós não temos nenhum compromisso. Sou uma mulher livre.
Trabalho para me sustentar. Não preciso do dinheiro dele para nada. Só não posso impedir, nem seria razoável, que ele sustente os filhos. É um direito deles. Gostaria que me deixasse
viver em paz. Chega de intervir em minha vida. Garanto a você que não tenho nenhuma intenção de viver com ele e muito menos com você. Estou muito feliz assim. O que eu
quero é cuidar de minha vida e dos meus filhos, nada mais. Pode entender isso?
— Não. Eu amo você. Depois que Osvaldo nos surpreendeu juntos, nunca mais minha vida
foi para frente. É verdade que tenho algum dinheiro, mas a vida amorosa está estragada.
Não consigo me relacionar com outra mulher. Você não sai do meu pensamento. Só de imaginar que ele é seu marido e que, se quiser voltar para você, nada o impedirá, fico
louco.
Ela abanou a cabeça desanimada.
— Acho que deveria procurar a ajuda de um médico. Sua cabeça não está bem. Depois que Osvaldo me deixou, nunca mais tive nada com você. Por que não aceita que foi tudo uma
ilusão da nossa juventude? Por que teima em querer uma coisa que nunca terá?
— Não pode ser verdade. Você me amava. Correspondia aos meus carinhos. Lembra-se?
— Eu estava iludida. Se o amasse, teria ido viver com você.
— Eu agora sou empecilho à sua reconciliação com ele. Enquanto eu estiver vivo, ele não vai esquecer.
— Não é nada disso. Está ficando tarde, tenho de ir. Não adianta ficarmos aqui repetindo a
mesma coisa. Você está resistente. Não quer ver a verdade. Vá para casa, pense bem, reconheça que o melhor será não nos vermos mais.
Ele segurou a mão dela com força e disse com voz rancorosa:
— Não vou desistir. Se um de nós precisar morrer para conseguir o que quero, garanto que não serei eu.
Clara empalideceu e disse nervosa:
— Você está louco! Não pode estar falando sério. Não há motivo para violência.
— Vai depender de você. Estou no limite da minha paciência.
Clara levantou-se decidida. Estava muito assustada. Não podia ficar ali ouvindo aquelas ameaças.
— Nem ouse fazer nada contra Osvaldo. Ele foi a vítima nisso tudo e nunca tentou nada contra você.
— Estou impressionado em ver como o defende! Ainda diz que não pensa em voltar com ele!
— Vou embora. Não dá para ficar aqui ouvindo suas ameaças. Ela se voltou rápida e saiu quase correndo. Ele a deixou ir, seguindo-a com os olhos. Naquele momento, duas sombras
escuras o abraçaram alegres enquanto ele pedia uma bebida forte ao garçom.
Clara chegou em casa abatida. Domênico tinha razão ao aconselhá-la a ouvir o que Válter queria dizer. Apesar de aterrorizada, descobrira o quanto ele estava perturbado. Estaria
mesmo pensando em matar Osvaldo ou disse aquilo apenas para pressioná-la!
Difícil saber, mas havia muito rancor em sua voz. E se fosse verdade? E se ele estivesse louco a ponto de agredir Osvaldo!
Vendo-a entrar, Rita assustou-se com sua palidez.
— Clara, o que aconteceu!
— Válter. Ele enlouqueceu.
Em poucas palavras contou o que haviam conversado, e Rita considerou:
— É um homem sem escrúpulos. Nunca se sabe de suas intenções. Clara torceu as mãos
nervosa. - Não sei o que fazer. E se ele for procurar Osvaldo?
— Não sei se teria coragem de agir frente a frente. Pode armar alguma cilada.
— Que horror! Nem diga uma coisa dessas.
— Trata-se de um homem que se vale de jogos e manipulações para conseguir seus fins.
— Por isso não sei até que ponto sua ameaça é real.
— Você precisa fazer alguma coisa. Não pode facilitar. E se estiver mesmo pensando em agredir Osvaldo? Você precisa avisá-lo que fique atento.
— Tenho medo de piorar as coisas. Ele pode ficar com raiva e tomar a iniciativa. Não sei o que poderia acontecer. Meu Deus nunca terá fim!
— Calma, Clara. Não adianta ficar assim. Temos de ter a cabeça lúcida para pensar no que fazer.
— Não posso falar com os meninos, porque eles poderiam querer fazer alguma coisa por conta própria. Principalmente Carlos não pode nem saber.
— Nesse caso, você é quem terá de ir procurar Osvaldo.
Clara sobressaltou-se:
— Eu? Você enlouqueceu? Não quero vê-lo. Seria uma situação muito constrangedora.
Depois, nem sei se ele me receberia. Nunca quis e ver. Não. Isso é impossível.
— Então não sei o que fazer. Ele precisa ser avisado. Se acontecer alguma coisa, você nunca se perdoará.
— Já chega a culpa que carrego no coração.
— Por que não fala com Dona Lídia?
— Estou me sentindo exausta. Não vejo hora de ir me deitar.
— Nada disso. Você vai tomar um banho e jantar muito bem. Não pode ficar sem se alimentar. Depois iremos juntas ver Dona Lídia. Se não procurar ajuda espiritual, vai passar
a noite em claro. Pode cair doente. Tome um banho morno e se sentirá melhor.
Clara pensou um pouco e resolveu ir. Depois do banho, ficou mais calma. Rita insistiu, e ela comeu um pouco, sentindo-se mais forte.
Elas chegaram à casa de Lídia pouco antes de começarem as reuniões do centro. Lídia abraçou-as com carinho. Informada do que acontecera, disse com voz calma:
— Você precisa reagir. Não pode entregar-se ao desânimo. Vamos pedir ajuda aos amigos espirituais. Mas devo esclarecer que eles trabalham com as suas energias. Você vai precisar ser o ponto de apoio da ajuda deles. Sem isso, não poderão fazer nada.
— Vai ser difícil. Estou muito assustada.
— Onde está sua fé? Você merece ser feliz. Depois, seu marido é um homem de bem, terá proteção. Você precisa confiar na vida.
— Parece que o tempo não passou. Só que a situação está invertida . Osvaldo foi a vítima e Válter ainda quer atingi-lo. Não é justo.
— Mais uma razão para confiar na vida. O que você precisa é enfrentar o medo. A certeza de que está sendo protegida pelas forças do bem a ajudará a conseguir isso.
— Sinto o peito oprimido, tenho a sensação de que vai acontecer alguma coisa ruim.
— E só uma impressão, que você não deve alimentar. Pense que a pode estar sendo sugerida pelo seu medo ou ate mesmo por entidades desencarnadas que desejam
desequilibrá-la para poderem sugar energias.
— Pensei que fosse intuição de algo que vai ocorrer.
— Impressão é muito diferente de intuição. Quando você pensa, ouve ou vê alguma coisa, pode impressionar-se com ela. Essa impressão poderá ser leve e passageira ou forte e constante. Depende do grau de importância que lhe der. Certamente nunca acontecerá o que teme, não ser que se obstine tanto e acabe atraindo exatamente o que não deseja.
Já a intuição é a linguagem da alma. Quando ela fala, você se: sente que é verdade. Sabe que aquilo é do jeito que ela lhe mostra.
— Tenho andado confusa. Como diferenciar uma coisa da outra — E fácil. Quando se impressiona, está olhando com os olhos mundo, das aparências, do que há fora de você. Na intuição, está observando a vida com os olhos da alma.
— Gostaria de entender melhor.
Você se impressionou muito com o que Válter lhe disse, apesar de reconhecer que ele pode
querer apenas pressioná-la. Na sua cabeça já formulou várias desgraças e ficou muito assustada.
É que ele pode estar falando sério.
— Pode. Mas seu descontrole não vai ajudar em nada. Ao contrário: está confundindo sua cabeça, impedindo-a de encontrar una solução boa.
— Isso é verdade. O que me aconselha?
— Não saberia dizer. Mas eu, quando sinto que não tenho como resolver um assunto desagradável, faço minha prece com humildade coloco o caso nas mãos de Deus. Depois,
procuro fazer minha parte melhorando meu padrão de pensamento. É o mínimo para que
nos amigos espirituais possam me inspirar e ajudar. Para isso eles precisam me encontrar serena, confiante, disposta a fazer o que for necessário Quando menos espero, a situação fica mais clara e tudo se resolve
— Gostaria de ser como a senhora — tornou Clara.
— Você é uma mulher forte, corajosa. Tenho certeza de que irá fazer isso melhor do que eu. Vou experimentar.
— Nós podemos receber ajuda espiritual? — indagou Rita.
— Claro. Ia sugerir que tomassem um passe.
Elas foram para uma sala iluminada por delicada luz azul, havia algumas pessoas em prece e música suave. Clara sentou-se no lugar que lhe foi indicado e, enquanto uma pessoa em
sua frente trabalhava suas energias, ela orou fervorosamente pedindo inspirações força para fazer o melhor.
Lágrimas lavavam seu rosto e aos poucos a opressão no pensamento desapareceu, enquanto uma brisa suave e delicada dava-lhe agradável sensação de conforto.
Depois de beber a água que lhe ofereceram, Clara saiu em silêncio. Sentia-se mais calma.
— Este lugar é uma bênção — comentou Rita ao saírem.
— É verdade. Sinto-me muito melhor.
No dia seguinte, na mesa do café, depois que os meninos saíram, Clara considerou:
— Estive pensando, Rita. Você tem razão: Osvaldo tem de ser prevenido.
— Você irá procurá-lo?
— Não. Você irá em meu lugar.
— Eu?
— Sim. Contará a ele o que está ocorrendo para que fique atento.
— Está bem, irei.
— Precisa tomar cuidado com o que vai dizer. Diga apenas que Válter está com raiva dele e nós desconfiamos que ele pode querer prejudicá-lo de alguma forma. Não convém dizer
que ele o ameaçou até de morte.
— Terei de falar a verdade, senão ele não vai tomar cuidado.
— Vai ter de notar como ele reage. Não quero provocar um mal maior. Se ele ficar muito revoltado, suavize o caso.
— Quando quer que eu vá?
— Hoje mesmo. Ligue para a casa dele e combine a hora.
Acertaram que ela iria a casa dele às duas horas.
Foi com impaciência que Osvaldo esperou que Rita chegasse. Ele sabia que ela continuava morando com a família, e os meninos falavam muito bem dela.
Quando José a introduziu a sala onde Osvaldo esperava, ele se levantou emocionado. Ela estava mais cuidada, bem vestida, mas seu rosto pouco havia mudado. Ele a abraçou com
prazer.
— Rita, o tempo não passou para você! Está mais bonita.
— O senhor também, continua o mesmo.
— Sente-se, mas, por favor, não me chame de senhor.
Ela sorriu levemente e respondeu:
— Sempre o chamei assim.
— Depois do que tem feito pelos meus filhos, você é como se fosse da família.
— Obrigada.
Vendo que ela hesitava um pouco, ele tomou:
— Sua visita me dá muito prazer. Mas percebo que você tem alguma coisa para me dizer.
— É verdade. Nem sei como começar. Aconteceram algumas coisas que nos deixaram apreensivas. Clara me pediu que viesse aqui para lhe contar.
Osvaldo esforçou-se para conter a emoção. Clara a enviara!
— Alguma coisa com os meninos?
— Não. Eles estão muito bem. Mas o assunto é delicado e por isso Clara preferiu deixá-los fora disso.
— Do que se trata?
— Bem, não sei se o senhor... se você sabe o que aconteceu em nossa casa depois que foi embora.
— Os meninos contaram como sobreviveram. Sei como você ajudou Clara a manter a família. Sei que agi mal abandonando-os daquele jeito. Mas fiquei transtornado, Rita, quase
perdi a razão.
— Não precisa explicar nada. Eu sabia que minha presença o faria se recordar do passado.
Mas vim para lhe falar do presente.
— Vocês estão precisando de alguma coisa? Eu disse ao advogado que se colocasse à disposição de Clara.
Também não é isso. Não estamos precisando de nada. Clara tem um bom emprego e temos nossa loja. Nada nos falta financeiramente. Depois que nos deixou, Clara se arrependeu muito do que fez e rompeu com Válter definitivamente. Ele a perseguiu durante muito
tempo. Por fim, vendo que ela não o queria, deixou-a em paz.
— Eu sei. Marcos me contou.
— E agora, depois que você voltou, ele recomeçou a persegui-la.
Osvaldo crispou as mãos irritado:
— O que ele pretende, uma vez que ela não o quer?
— Deseja viver com ela.
Osvaldo empalideceu, mas controlou-se e não respondeu. Rita continuou:
— Ela não quer. Não gosta dele. Ao contrário, diz que sua presença a faz recordar o erro, sentir-se mais culpada. Ele vai esperá-la na saída do trabalho e insiste. Ontem ela
concordou em ouvi-lo. Pensou que, se explicasse a verdade, ele desistiria. Ele, porém, está
muito desequilibrado. Tem medo de que vocês se reconciliem, tem ciúme, ameaçava de matar você e... — ela hesitou um pouco e depois concluiu: — Clara ficou com medo de que
ele o procure e o prejudique de alguma forma Osvaldo levantou-se e começou a andar de um lado para outro nervoso. Era o cúmulo. O
homem que lhe roubara o amor de Clara, que destruíra sua vida e sua família, ainda tinha o
desplante de chantagea-la e ameaçar a paz que eles tão duramente estavam tentando
reconquistar.
— Clara mandou dizer que tenha cuidado, que fique atento está muito perturbado e é capaz de tudo. Ela teme por sua segurança.
Osvaldo parou e olhou para ela emocionado. Apesar de tudo, Clara ainda se preocupava
com ele. Sentiu um brando calor no peito e esforçou-se para dominar a emoção. Quando se viu mais calmo, disse:
—Agradeça a ela por ter enviado você para me avisar. Mas diga lhe que não tenha medo. Sei me cuidar. Depois, penso que esse sujeito não terá coragem de vir me enfrentar.
— Bem, o recado está dado. Espero que não fique aborrecido por eu ter vindo. Sabia que minha presença o faria recordar-se do passado.
— Não. Foi muito bom ver você.
— Posso fazer-lhe uma pergunta?
— Faça.
— Você ficou muito tempo longe. Conseguiu reconstruir sua vida?
— Consegui com muito esforço compreender os fatos. Vivi no inferno, mas encontrei amigos dedicados que me ajudaram e me ensinaram a olhar a vida de outra forma. Eu era
uma pessoa sem Deus. Foi preciso o vendaval que me abateu para que eu me voltasse para Ele. Assim consegui sobreviver em paz.
— Você nunca foi religioso.
— E não sou. Mas creio na espiritualidade.
Rita levantou-se e Osvaldo pediu:
— Por favor, não vá ainda. Fique. Tome um chá comigo. Gostaria de conversar, contar-lhe
o que tem sido minha vida agora.
Ela concordou. Ele mandou José servir um lanche e, enquanto tomavam o chá, Osvaldo
contou-lhe tudo que havia acontecido com ele desde que saíra de casa.
Rita ouvia emocionada, bebendo suas palavras, sensibilizando-se com o drama que ele vivera. Osvaldo não omitiu nada e finalizou:
— Agora já sabe de tudo. Tem sido difícil voltar aqui, onde o passado ainda me constrange.
Muitas vezes pensei em voltar para o interior, continuar meu trabalho espiritual, reencontrar minha paz.
— Pretende ir embora de novo?
— Quando Carlos me contou que Válter voltou a assediar Clara, fiquei perturbado. Não sei se teria condições de suportar tudo de novo. Fui procurar Antônio em busca de conselho.
— Carlos me disse que você havia viajado.
— Voltei ontem. Estive lá durante uma semana, visitei os amigos. Antônio fez-me compreender que só enfrentando meus medos conseguirei vencer meus desafios.
— Esse seu amigo deve ser muito inteligente.
— Ele, além de ser um homem bom, é um excelente médium curador.
Suas palavras são inspiradas por espíritos de luz que irradiam energias de refazimento e paz.
— Quer dizer que ele o aconselhou a ficar aqui?
— Não. Ele me fez sentir que eu preciso ficar aqui. Há também os meninos. Não desejo mais separar-me deles.
—Fico feliz que seja assim. Eles são rapazes inteligentes, bem-educados e apoiados pela mãe, mas precisam do pai. Você desenvolveu mediunidade, estudou a vida espiritual.
Agora entendo por que apesar do que aconteceu, conseguiu não guardar rancor de Clara.
Osvaldo fez um gesto largo:
— Ninguém pode obrigar uma pessoa a sentir amor. Ela deixou de me amar, interessou-se por outro. Só lamento que não tenha tido coragem de me contar. Apesar de sofrer, eu a teria
deixado ir. Nós nos amávamos. Muitas vezes tenho me perguntado como foi que eu a perdi, que atitudes tomei que a decepcionaram. Mas agora isso é inútil.
— Você precisa saber o que tem sido nossa vida desde que nos deixou. A princípio ela ficou destruída, inconformada, com medo. Dona Neusa e seu irmão Antônio a ameaçaram, querendo saber onde você se encontrava. Muitas vezes os atendi ao telefone. Eles diziam
que iriam à justiça para lhe tirar os filhos. Uma vez Dona Neusa insultou Clara, que a pôs para fora.
— Eu não sabia.
— Minha irmã foi embora para o interior e eu passei a morar na casa de Clara.
— No meu tempo você não dormia em nossa casa. Ainda bem que foi ficar com eles.
— Foi bom para mim também. Clara não saía de casa e queria ver ninguém. Sua mãe e irmão apareceram lá, mas eu não deixei entrar. Válter estava apavorado, com medo de sua reação. Procurou-a para dizer que precisavam dar um tempo até que tudo se acalmasse.
Clara achou bom. Também não queria vê-lo. Aquela atração que a fizera fraquejar desapareceu no dia em que você os surpreendeu. Ficou apenas a consciência de sua culpa.
Ela chorou muito e foi difícil acalmá-la. Por fim, o dinheiro de reserva acabou e ela resolveu reagir.
Rita continuou contando, e a cada palavra Osvaldo ia imaginando as cenas, como em um filme.
Confortava-o saber que Clara não continuara seu romance com Válter.
— Você pode imaginar como foi difícil para uma mulher que era só dona de casa encontrar um jeito de ganhar a vida.
Mas, por outro lado, foi uma forma de sair da depressão e lutar para sobreviver. Seu amor pelos filhos a motivou. Depois, Clara é inteligente, trabalhadora — finalizou Rita.
— Você disse que Clara está estudando a mediunidade. Isso é bom.
— Sim. O conhecimento da espiritualidade nos tem ajudado muito. Dona Lídia, a dirigente
do centro, é pessoa muito boa, ligada aos espíritos de luz. Tem nos aconselhado sempre que
precisamos.
Osvaldo fechou os olhos por alguns instantes, depois disse:
— Tem razão. Atrás de sua aparência modesta esconde-se um espírito iluminado que veio
com mandato espiritual.
— Você esteve com ela?
— Ainda não.
— Como sabe isso?
— Enquanto você falava eu a vi. É uma mulher forte, meia-idade, veste-se sempre de cores
alegres, cabelos louros, curtos, ondulados, rosto redondo e simpático. Quando sorri
aparecem duas covinhas na face. Seus olhos são penetrantes e firmes.
Rita admirou-se:
— Isso mesmo. Ela é assim. Você é médium mesmo.
Osvaldo sorriu:
— Eu lhe disse que tenho trabalhado com os espíritos.
— Tem freqüentado algum lugar aqui?
— Ainda não. Mas tenho mantido contato com meus amigos espirituais. Foram eles que me avisaram que você viria.
— Que bom! O conhecimento espiritual nos ajuda a compreender melhor o que nos acontece. Já conseguiu perdoar Clara?
Osvaldo estremeceu, ficou calado alguns instantes. Por fim disse:
— Consegui entender como aconteceu. Pensei que houvesse perdoado, mas o perdão liberta
e toma possível esquecer. Alguns dias notei que a antiga ferida ainda sangra de vez em quando. Só posso dizer que continuo me esforçando. Um dia conseguirei.
— Mas você não a condena.
— Não. Isso não. Entendo que toda pessoa é livre para amar quem quiser, tem o direito de escolha.
— Nesse caso, por que a mágoa?
— Porque ela não foi sincera. Se tivesse me contado o que sentia, teríamos resolvido tudo de maneira civilizada.
— Clara teve medo da sua reação.
Osvaldo respirou fundo e respondeu:
— Teria sido doloroso de qualquer forma. Mas eu teria me afastado e deixado o caminho livre.
— Você teria sido capaz disso?
— Teria. Eu a amava e desejava sua felicidade acima da minha.
— Desculpe tocar em assunto tão íntimo. Eu acompanhei o sofrimento dela e das crianças.
São como minha família. Farei o que puder para que sejam felizes.
— Tenho certeza disso. Admiro sua dedicação.
—Há muito que Clara deixou de ser minha patroa. Tomou-se mais que uma amiga querida, mas uma irmã. Fico tranqüila sabendo que você não cultiva nenhum rancor.
— Amo meus filhos. O que puder fazer pelo bem-estar deles, farei. Você pode contar comigo para o que precisar.
Estava escurecendo quando Rita deixou a casa de Osvaldo. Depois que ela se foi, ele se sentou na sala pensativo. Clara havia se preocupado com ele! Sua raiva por havê-los
abandonado sem recursos teria passado?
O que haveria de verdade na ameaça de Válter? Teria sido apenas uma maneira de pressionar Clara? Era provável que sim. Mas a idéia de que a presença de Válter
incomodava seus filhos o fazia sentir que precisava tomar alguma providência. Talvez fosse
prudente investigar a vida de Válter, saber como ele agia, o que fazia. Olhou para o relógio:
passava das seis. Ligou para Felisberto e convidou-o para jantar em sua casa, precisavam conversar.
Felisberto, por sua postura ética, a lisura com que tratara os negócios de Ester durante tanto tempo, granjeara não só sua confiança mas também sua amizade.
Depois do jantar, sentados na sala de estar, Osvaldo contou ao advogado o que estava ocorrendo. Finalizou:
— Talvez não signifique nada. Acha que eu deveria tomar alguma ma providência?
— Sim. Clara se preocupou. Pode ter notado algo mais sério.
— Foi o que pensei. Mas não sei o que fazer.
— O melhor seria investigar a vida desse Válter. Saber como é pode nos dar uma idéia mais verdadeira. Conheço um investigador de confiança que faria isso para você. De posse desses dados, daremos o passo seguinte.
— Bem pensado. Gostaria de falar com ele amanhã mesmo.
— Está bem. O número de seu telefone está em minha agenda de casa. Hoje mesmo falarei
com ele.
— Estarei esperando.
Depois que Felisberto se foi, Osvaldo sentiu-se mais calmo. Válter havia machucado sua família uma vez, não iria permitir que fizesse isso de novo.
Na hora de dormir, Osvaldo sentou-se na cama, fechou os olhos e evocou a presença de seus guias espirituais. Sentiu uma brisa leve e um brando calor à sua volta e orou pedindo
proteção e ajuda para aqueles que amava. Depois se acomodou, sentindo-se calmo, e logo adormeceu.

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